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Capítulo 2: A questão agrária na ditadura militar e o contexto para o surgimento do MST

2.2 O papel do Estado e a questão agrária

2.2.1 O Estatuto da Terra

O Estatuto da Terra foi a lei agrária promulgada logo no início da ditadura militar, em 1964. Existem diferentes visões que justificariam a criação desta legislação. Segundo um dos formuladores do documento, o agrônomo José Gomes da Silva haveria algumas razões políticas para o estabelecimento desta Lei agrária: desde o objetivo de tirar essa bandeira da mão das esquerdas até os seminários sobre o tema dos quais Castelo Branco participou em Recife no ano de 1962. Além da assinatura da Carta de Punta del Este, em que o Brasil se comprometeu a realizar a Reforma Agrária (SILVA, 1985). Já José de Souza Martins (1986, p. 88) afirma que o Estatuto expressa o empenho dos militares em reduzir a questão agrária a uma “questão política aceitável”:

69 O progressivo envolvimento dos militares na questão fundiária está diretamente relacionado com a tentativa de reduzir a questão agrária a uma questão política aceitável, com a tentativa de administrar o conflito no campo sem impor aos grandes proprietários de terra o confisco de suas propriedades, sem impor uma reforma agrária unilateral que liquidasse de uma vez a base econômica das oligarquias.

A historiadora Lígia Osório Silva (1997, p. 20-21) destaca a desmobilização dos movimentos sociais no campo e a pressão norte americana como razões importantes para explicar a elaboração do Estatuto da Terra:

(...) o Estatuto da Terra veio em resposta a duas ordens de fatores: de um lado, aos movimentos sociais do campo, principalmente do nordeste e à grande mobilização popular reformista dos anos 50 e 60, ambos processos estancados pelo golpe de março de 1964; e, de outro, à pressão norte-americana pela adoção de um programa de reformas para o campo. Os militares procuraram dar uma resposta à necessidade de modernização rural ‘dentro da lei e da ordem’, desbaratando os movimentos camponeses organizados. (...) A ação militar e policial contra os trabalhadores rurais, seus líderes e suas organizações pôs fim às pressões da população rural pela reforma. (...)

Assim, o reconhecimento da necessidade de reformar a estrutura agrária pelos militares brasileiros precisou ser precedida do afastamento dos principais interessados do processo.

José Gomes da Silva (1997) conta que no dia 26 de outubro de 1964, o Presidente enviou ao Congresso a Mensagem nº33, encaminhando o Projeto de Lei que dispunha sobre o Estatuto da Terra, baseado na suposição de que seria aprovada a Emenda constitucional que abriria o caminho para o mesmo. A Emenda continha a proposta de mudança do artigo 141 da Constituição de 1946, o qual restringia a desapropriação de terras públicas apenas em troca de pagamento em dinheiro.42 Enfim, a emenda aprovada em 10 de novembro de 1964 introduziu a

possibilidade de pagamento das desapropriações mediante pagamento em títulos da dívida pública, abrindo caminho institucional para a Reforma Agrária.

Tratou-se da primeira lei que deu diretrizes para a realização de uma reforma agrária, definida nos seguintes termos: “Considera-se Reforma Agrária o conjunto de medidas que visem a promover melhor distribuição da terra, mediante modificações no regime de posse e uso, a fim

42 Importa ressaltar que a mesma Emenda havia sido negada quando foi proposta por Goulart, bem como gerou forte

instabilidade no seu governo. Aponta-se a defesa da reforma agrária bem como as ações favoráveis a ela como razões que contribuem para explicar o golpe de 1964.

70 de atender aos princípios de justiça social e ao aumento de produtividade.” (Lei nº 4.504, Art.1°, §1º).

No segundo artigo da Lei aparecia a idéia de que a propriedade da terra deveria cumprir sua função social: “É assegurada a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra, condicionada pela sua função social, na forma prevista nesta lei.” Cumpriria sua função social a propriedade que: favorecesse o bem estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutavam, mantivesse níveis satisfatórios de produtividade, assegurasse a conservação dos recursos naturais e observasse justas relações de trabalho de acordo com as disposições legais. A lei também estabelecia qual seria a origem dos recursos financeiros necessários à Reforma Agrária43. E instituía a necessidade da elaboração de um Plano Nacional de Reforma Agrária, sob

responsabilidade do IBRA (que posteriormente foi substituído pelo INCRA).44 Este Plano não foi

elaborado durante a ditadura e tornou-se uma das bandeiras dos defensores da Reforma Agrária em meio à luta pelo retorno das eleições diretas.

O Estatuto da Terra definia as diretrizes para a realização de uma reforma agrária, no entanto, nada foi realizado neste âmbito.

Havia ainda no Estatuto uma série de normas incentivadoras do “desenvolvimento rural”, as quais expressam em grande medida as diretrizes que guiaram a política agrária da ditadura. Apareciam no Estatuto as três linhas de apoio aos grandes projetos agropecuários, relacionadas à: a) colonização privada; b) incentivos fiscais a projetos agropecuários nas áreas da SUDAM e SUDENE; c) Concentração espacial de investimento e das aplicações subsetoriais em reflorestamento e pesca e infraestrutura geral e específica.

O que chama a atenção é que essas linhas de apoio vão no sentido contrário ao de uma reestruturação fundiária, uma vez que acarretam a valorização de terras. Segundo Delgado (1985, p. 104):

Observe-se que toda essa gama de benefícios diretos ou indiretos à propriedade fundiária, que supostamente se inscrevem nos ditames da ‘política de

43 A Lei também trazia outros avanços: a instituição de um cadastro de todas as propriedades de terra do país; a

criação de um organismo público federal (IBRA) para realizar tal cadastro, desapropriar terras e promover a colonização de terras públicas; a classificação geral para todas as propriedades de acordo com tamanho, utilização e capacidade produtiva; critérios de pagamentos para áreas desapropriadas mais razoáveis, uma vez que permitia o ressarcimento em títulos da dívida pública resgatáveis em vinte anos; a obrigatoriedade do Imposto Territorial Rural (ITR), a criação do conceito e da possibilidade de formação de cooperativas. (STÉDILE, 2005)

71 desenvolvimento rural’, é, na verdade, um enorme reforço ao movimento de valorização da propriedade, um enorme reforço ao movimento de valorização da propriedade territorial, que de resto está presente endogenamente no processo de desenvolvimento capitalista. Está, também, em clara oposição ao espírito do Estatuto da Terra, relativamente às normas que tratam de limitar a formação de latifúndios rurais, que infelizmente ficaram definidas por critérios puramente físicos de dimensão econômica.

Sendo assim, o Estatuto da Terra estava imbuído do espírito que pautou a política agrária da ditadura, relativa ao favorecimento do grande capital, no entanto, representou a primeira legislação sobre a Reforma Agrária no país, definindo seus marcos, seus limites, expresso nos parâmetros legais que restringiam a distribuição de terras, de forma a não afetar os interesses das “empresas rurais”.45 Se, no que tange aos interesses das classes exploradas, ele não foi aplicado e

pode-se dizer que se tratou de um embuste dos militares, a sua importância histórica está na definição dos limites da luta pela terra a partir de então.