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Capítulo II – Das motivações iniciais à aparente ruptura com o pessimismo

Seção 5 A aparente ruptura com o tema do pessimismo

A temática do pessimismo continua presente nas reflexões de Nietzsche após a publicação de O nascimento da tragédia, sobretudo nas suas anotações pessoais289, ainda que na obra publicada perca espaço para a discussão acerca da cultura, que caracteriza o conjunto das quatro Considerações extemporâneas. Isso não implica, contudo, que o autor esteja iniciando um processo de ruptura com a mesma, que culminaria na célebre formulação do aforismo 28 do primeiro volume de Humano, demasiado humano, objeto de análise da presente seção: “Fora com as palavras ‘otimismo’ e ‘pessimismo’, utilizadas até a saciedade!” (KSA 2, p. 48). A minha tese é a de que essa ruptura é apenas aparente, uma vez que o pessimismo segue como um dos temas privilegiados de sua produção. O que ocorre nesse período é, a meu ver, uma profunda revisão do tema, que encontrará uma nova formulação nos prefácios que Nietzsche redige em 1886 às suas obras publicadas anteriormente e em alguns de seus textos contemporâneos. O meu objetivo nesta seção é, entretanto, demonstrar apenas os principais momentos dessa revisão e como ela ocorre em estreita relação com o afastamento de Schopenhauer, preparando o terreno para o próximo capítulo, no qual a significação do pessimismo no período dos prefácios supracitados será abordada minuciosamente.

Nietzsche apresenta na primeira das Considerações extemporâneas: David Strauss, o

confessor e o escritor, o conceito de cultura (Kultur) como “essencialmente unidade de estilo

artístico em todas as expressões da vida de um povo” (DS, 1. KSA 1, p. 163), opondo-o ao de barbárie (Barbarei): “muito conhecimento e aprendizado não são meios necessários da cultura e nem indícios da mesma, e, se necessário, eles relacionam-se muito bem com o oposto da cultura, a barbárie, o que quer dizer: com a falta de estilo e com a confusão caótica de todos os estilos” (Idem). A partir dessa contraposição inicial o autor irá analisar a Alemanha de sua época e, sobretudo, desenvolverá a figura do filisteu da cultura

289 Cf., sobre o tema do pessimismo nas anotações póstumas de 1872 até 1878, DAHLKVIST, op. cit., p. 169-

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(Bildungsphilister)290, na sua visão igualmente típica dentre os seus contemporâneos, a partir do exemplo histórico do teólogo David Strauss291.

Chama a atenção, nesse contexto, a descrição do otimismo filisteu (Philister-

Optimismus) de Strauss como produto de “certas impressões joviais anteriores, hábitos e

fenômenos patológicos”. Nietzsche está se referindo aqui à sua “‘absoluta dependência’” de Hegel e Schleiermacher, e o coloca precisamente na contracorrente da filosofia schopenhaueriana:

Há uma passagem no livro confessional em que esse incurável otimismo vai passear com um absoluto bem-estar de feriado (...). ‘Se o mundo é algo que seria melhor se não existisse’, diz Strauss, ‘desse modo, também o pensamento do filósofo, que constitui uma parte deste mundo, é um pensamento que seria melhor se não fosse pensado. O filósofo pessimista não percebe como ele explica sobretudo o seu próprio pensamento como mal quando o seu pensamento explica o mundo como mal; mas se um pensamento que explica o mundo como mal é ele mesmo um mal pensar, então o mundo é, ao contrário, bom. O otimismo deve, como uma regra, tornar as coisas mais fáceis para si mesmo; por outro lado, as demonstrações de Schopenhauer acerca do poderoso papel que a dor e o mal desempenham no mundo estão realmente no lugar certo; mas toda filosofia verdadeira é necessariamente otimista, desde que, caso contrário, ela negue o seu próprio direito de existir’ (DS, 6. KSA 1, p. 191-2)292.

O autor não poupa críticas a essa descrição que Strauss empreende do pessimismo schopenhaueriano, afirmando que a sua argumentação nada mais é que uma pretensiosa – e ingênua – tentativa de mostrar como seria fácil refutá-lo (Idem, cf. p. 192-3). Seria natural e até mesmo evidente, dado o propósito da primeira Extemporânea e o contexto de sua

290 “(...) o oposto do filho das musas, do artista, do homem de cultura genuína”. Adiante Nietzsche o descreve

como aquele que se distingue dos demais por crer que seja um filho das musas e um homem de cultura, o que seria indício de sua ignorância em relação ao significado do filisteu e de sua antítese, o bárbaro: “ele se sente firmemente convencido, com essa carência de todo conhecimento de si, de que a sua ‘formação’ [Bildung] seja precisamente a farta expressão da verdadeira cultura alemã”. O filisteu é aquele que confunde “reproduções idênticas de si mesmo” com a “unidade de estilo” que caracteriza a cultura, considerando a identidade de todas as pessoas “cultivadas” (Gebildeten) a existência de uma “unidade de estilo da formação [Bildung] alemã, em resumo de uma cultura [Kultur]”. “Mas o filisteísmo sistemático e trazido ao domínio não é, por isso”, acrescenta Nietzsche, “ainda uma cultura, e nem mesmo uma cultura inferior, mas sempre a contraparte da mesma, isto é, uma duradoura barbárie estabelecida”. Para uma descrição mais precisa das características atribuídas pelo autor a tal figura, cf. todo o capítulo 2 do escrito. As citações anteriores foram retiradas de DS, 2. KSA 1, p. 165-6.

291 Ainda no contexto em que descreve o filisteu da cultura, Nietzsche introduz da seguinte forma a figura de

Strauss: “(...) ele [o filisteu da cultura] inventa ainda, para os seus hábitos, modos de pensar, rejeições e favorecimentos, a eficaz fórmula geral ‘saúde’ e afasta, com a suspeita de ser doente e extravagante, todo o inconveniente perturbador da paz. Assim diz uma vez David Strauss, um verdadeiro satisfait do nosso estado de formação [Bildungzustände] e típico filisteu, com característica expressão idiomática, do ‘filosofar sempre engenhoso de Arthur Schopenhauer, porém de muitos modos não saudável e nada edificante’” (DS, 2. KSA 1, p. 171).

292 O trecho inicial é de difícil tradução: “Es giebt eine Stelle in dem Bekenntnisbuche, in der sich jener incurable

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produção293, que Nietzsche fizesse o mesmo contra Strauss e a favor de Schopenhauer, empreendendo uma defesa do pessimismo. Curiosamente, a despeito da crítica ao teólogo, não é o que Nietzsche faz. Há de se considerar, então, pelo menos duas hipóteses a esse respeito: ou o autor não trata do pessimismo nesse texto pelo fato de que o seu interesse recai em outros temas; ou, considerando que Strauss é nele descrito precisamente com a alcunha de otimista, não há mais uma apologia do pessimismo em detrimento do otimismo. A minha sugestão é a de que a segunda hipótese pode ser uma chave de leitura plausível para o período em questão.

Janz (op. cit., vol. II, cf. p. 227-8) ressalta que já no início de 1874294 os gregos não interessam tanto mais a Nietzsche como no período de O nascimento da tragédia e que a ideia de Bayreuth começa a lhe repelir. O autor se ocupa, além disso, desde 1873 com escritos sobre ciências naturais295. É nesse contexto, de claro afastamento de algumas de suas influências anteriores e o direcionamento para temáticas outrora menos importantes em sua obra publicada, que Nietzsche redige e publica, em fevereiro de 1874, a segunda das

Considerações extemporâneas: Da utilidade e desvantagem da história para a vida. Neste

texto, embora o seu inimigo seja Eduard von Hartmann, cuja Filosofia do inconsciente teve papel fundamental no estabelecimento do pessimismo enquanto tema filosófico, o pessimismo – e tampouco o otimismo – não é discutido explicitamente, mas há uma clara contraposição à noção hartmanniana história (Historie) como Weltprozess (“processo do mundo”), associada aqui, mais uma vez, aos nomes de Hegel e Schleiermacher:

Hegel ensinou-nos certa vez: ‘quando o espírito muda de direção, nós filósofos também vamos juntos’: nosso tempo tomou a direção da auto-ironia, e vede! E. von Hartmann também estava aí e já tinha escrito a sua célebre Filosofia do inconsciente – ou para falar mais claro – a sua filosofia da ironia consciente. Raramente lemos uma invenção mais divertida e uma pândega mais filosófica do que a de Hartmann; quem não é esclarecido por ele quanto ao vir a ser, sim, quem é inteiramente organizado, está realmente maduro para o ter-sido. Começo e meta do processo do mundo, do primeiro rasgo de consciência até o lançar do vir a ser de volta ao nada, incluindo a tarefa exatamente determinada de nossa geração para o processo do

293 Não é a minha pretensão discutir aqui se esse texto foi ou não fruto de uma “encomenda” de Wagner. O que

me interessa é problematizá-la no período em que foi produzida, elencando alguns dos aspectos da relação de Nietzsche com Schopenhauer e o pessimismo.

294 Portanto, apenas alguns meses após a publicação da Extemporânea sobre Strauss, em agosto de 1873. 295 Cf. Chronick zu Nietzsches Leben. KSA 15, p. 47. Os editores da obra completa de Nietzsche destacam que,

dentre várias obras sobre o assunto, destacam-se Philosophia Naturalis, de Boscovich, e Denken und

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mundo, tudo apresentado a partir da fonte de inspiração inconsciente, inventada de maneira tão engraçada e brilhando sob uma luz apocalíptica (...): uma tal totalidade marca o seu criador como um dos primeiros parodistas filosóficos de todos os tempos: portanto, sacrifiquemos um cacho de cabelo em seu altar, sacrifiquemo-nos a ele, o inventor de uma verdadeira medicina universal – para incluir uma expressão de admiração de Schleiermacher (HL, 9. KSA 1, p. 313-4)296.

Pouco tempo depois, Nietzsche já trabalhava na elaboração da terceira das

Considerações extemporâneas: Schopenhauer como educador, que, como o título indica,

trata de um de seus maiores mestres, Arthur Schopenhauer. O autor, assim como ocorre nas duas primeiras Extemporâneas, não discute pormenorizadamente o pessimismo nessa obra. Há, contudo, na abordagem de alguns aspectos do pensamento schopenhaueriano, temas relacionados diretamente ao pessimismo, tal como apresentado em O nascimento da

tragédia. Faz-se necessária, por esta razão, a retomada de três momentos essenciais dessa

argumentação.

O primeiro momento em que isso ocorre é no capítulo 3, quando o autor trata dos perigos em meio aos quais Schopenhauer cresceu: “isolamento” (Vereinsamung), “desespero da verdade” (Verzweiflung an der Wahrheit) e “petrificação na esfera moral ou intelectual” (Verhärtung, im Sittlichen oder im Intellectuellen). Ao tratar do segundo deles, Nietzsche retoma a influência kantiana na filosofia de Schopenhauer, mas sobretudo o seu afastamento da mesma, ao considerar o homem como sofrimento (Leiden) e desejo (Begehren) e não como uma “barulhenta máquina de pensar e calcular” (klappernde Denk- und RechenMaschine). O filósofo se torna para nós, desse modo,

(...) o líder que nos conduz da caverna da obscuridade cética ou da renúncia crítica às alturas da consideração trágica, ao céu noturno e suas estrelas infinitamente sobre nós, e ele mesmo como o primeiro que tomou esse caminho. A sua grandeza reside em ter colocado diante

dele uma pintura da vida como um todo, no intuito de interpretá-la como um todo;

enquanto as mais perspicazes cabeças não podem se libertar do erro de que se aproxima com essa interpretação, se alguém minuciosamente investigar as cores com as quais essa pintura [Bild] é produzida e o material sobre o qual é pintada; talvez com o resultado alguém conclua que a tela é tecida de tal modo intrincado e com tais cores que é quimicamente inexplicável (SE, 3. KSA 1, p. 356. Grifos meus).

296 Cf. também os parágrafos seguintes, nos quais Nietzsche critica a ideia de que o processo (Prozess) do

mundo conduziria à sua redenção (Erlösung): “A tarefa da história é a de ser a mediadora entre eles e assim dar incessantemente lugar à geração do grande homem e lhe emprestar forças. Não, a meta da humanidade não pode residir no fim, mas apenas em seus mais elevados exemplares” ((HL, 9. KSA 1, p. 317). Para uma discussão mais ampla sobre a segunda Extemporânea, cf. DAHLKVIST, op. cit., p. 180-7.

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Esse é o argumento de Nietzsche a favor do modo com que a filosofia schopenhaueriana considera a existência: somente como um todo. O benefício dessa forma de pensamento residiria no fato de que, ao ler a sua própria vida, o indivíduo poderia compreender os “hieróglifos da vida universal” (Idem, p. 357). A discussão de Nietzsche nesse momento é com a pretensão científica – aqui atribuída a Kant – de conhecer todas as coisas particularmente, o que seria impossível, na sua visão297. Essa discussão nos remete ao capítulo 18 de O nascimento da tragédia, no qual o autor havia tratado elogiosamente da “vitória” de Kant e de Schopenhauer diante do otimismo que caracterizaria a lógica moderna. Aqui, como se pode perceber, Kant é criticado precisamente por fazer parte do movimento que ele supostamente havia vencido.

O segundo momento de Schopenhauer como educador que nos remete a discussões de sua obra de estreia é a descrição, no capítulo 4, dos três tipos (ou figuras, Bild) de homem que inspiraram os mortais à transfiguração (Verklärung) de suas próprias vidas. Depois de tratar das imagens do homem de Rousseau e de Goethe, Nietzsche se concentra na figura do homem de Schopenhauer. Nesse momento do texto o “homem schopenhaueriano” é entendido como aquele que “toma voluntariamente para si mesmo o sofrimento da

veracidade [Leiden der Wahrhaftigkeit]”. Este sofrimento, acrescenta Nietzsche, “serve para

aniquilar a sua própria obstinação [Eigenwillen] e preparar aquela completa anulação [Umzählung] e conversão [Umkehrung] de sua existência, que deve se seguir do real significado da vida [der eigentliche Sinn des Lebens]” (SE, 4. KSA 1, p. 371. Grifos meus). A crença do homem da veracidade em um mundo verdadeiro e sem possibilidade de falsificação é o que confere significado à sua atividade metafísica, que é “explicada por meio de leis de uma outra vida, superior, e que é afirmativa no sentido mais profundo” (Idem, p. 372). Pelo fato de que muitas dessas leis parecem ser destrutivas, a sua atividade é necessariamente acompanhada de sofrimento. Mas tal homem sabe que o sofrimento é, como indica Nietzsche por meio de uma citação de Meister Eckhardt, o mais próximo que há da

297 “Atenção aos detalhes mais que à soma de todos os detalhes é o que caracteriza a filosofia científica, na

concepção de Nietzsche. Schopenhauer, por outro lado, expressa a existência como tal, em vez de seus detalhes mínimos. Mas esse breve comentário sobre o método de Schopenhauer é também uma descrição do próprio método de Nietzsche (...). Não é o conteúdo dos livros que é importante: é o caráter do homem que os escreve (...). Isso significa que, o que quer que nós façamos, o nosso objetivo deve ser ajudar a criar condições favoráveis para a criação do gênio filosófico” (DAHLKVIST, op. cit., p. 193-4).

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perfeição. E é com esse ideal que ele conduz a sua vida, consolado pelas “palavras uma vez empregadas pelo seu grande professor, Schopenhauer: ‘uma vida feliz é impossível: o máximo que o homem pode obter é uma vida heroica (...)’” (Idem, p. 373).

A noção de vida heroica (heroischer Lebenslauf), descrita por Schopenhauer nos

Parerga e Paralipomena (vol. II, cap. 14, §172a) nos termos de um alcançamento da nobreza

por meio do nirvana, é retomada aqui por Nietzsche no intuito de descrever a forma com que o homem schopenhaueriano transfigura a sua existência por meio da veracidade e do

sofrimento gerado por ela. Se todo homem deseja precisamente cessar de perceber, de estar

consciente da vida (dass das Leben (...) nicht gespürt werde), por que deseja o homem schopenhaueriano precisamente o contrário, isto é, “sofrer da vida” (am Leben leiden)? “Porque ele percebe que se deseja que ele engane a si mesmo e que há um tipo de acordo para tirá-lo de sua própria caverna”, ao que ele reage descendo “às profundezas da existência, com uma série de curiosas perguntas nos lábios: por que eu vivo? qual lição devo eu aprender da vida? como eu me tornei como eu sou e por que eu sofro deste ser-assim [So-sein]?” (Idem, p. 373-4). Como se pode perceber, Nietzsche retoma aqui um tema que lhe foi caro em O

nascimento da tragédia, o da transfiguração, no intuito de tratar de uma forma de vida

baseada na busca heroica de sua veracidade. O autor não o remete, porém, ao contexto de uma estética, como havia feito em sua primeira publicação.

O terceiro e último momento da terceira Extemporânea em que pode ser localizado um tema que mantém íntima relação com a questão do pessimismo em O nascimento da

tragédia é a discussão, no capítulo 5, sobre o significado do sofrimento. Essa discussão se

segue àquela acerca da transfiguração da vida pelos três tipos de homem anteriormente mencionados e está em relação, sobretudo, com a descrição do último. Nietzsche se questiona aqui sobre a diferença entre homens e animais, e procura estabelecê-la pela forma com que ambos lidam com o sofrimento. Em um primeiro momento, o autor afirma que os animais sofrem da vida (am Leben leiden), mas não dispõem do poder de “virar o espinho do sofrimento contra si mesmo” e, dessa forma, “entender a sua existência metafisicamente”. É por esse motivo, segundo Nietzsche, que se supôs haver escondidas nesses animais “almas de homens carregados de culpa” (Seelen schuldbeladner Menschen), de tal modo que toda

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punição e expiação se dissolveriam na justiça eterna (ewige Gerechtigkeit) (cf. SE, 5. KSA 1, p. 377).

A impossibilidade de reflexão sobre a dor, isto é, viver na fome e no desejo tal como os animais vivem, seria, de fato, para Nietzsche, uma punição severa. O homem é, então, a única espécie animal que, impelida pelo poder da natureza, desenvolveu a capacidade de se redimir (erlösen) dessa condição, ao atribuir uma significação metafísica (metaphysische

Bedeutsamkeit) à existência. O que diferenciaria homens e animais não seria o fato de

desejarem a vida e a alegria, pois ambos o fazem, mas o fato de que os primeiros as buscam de modo mais consciente, enquanto os últimos o fazem por um cego impulso.

Nietzsche, entretanto, dá um passo atrás e afirma que o que acontece em grande parte de nossas vidas é viver precisamente como animal (pois falhamos na nossa tentativa de emergir da animalidade) e que, portanto, o nosso sofrimento sempre nos parece sem sentido. Somente percebemos essa situação em uma “iluminação súbita” (plötzliche Helle), na qual nos damos conta de quão próximos da animalidade ainda permanecemos (Idem, p. 378-9).

Os únicos homens capazes de nos tirar dessa condição de pura animalidade são os

filósofos, os artistas e os santos – e Schopenhauer se enquadra em todas essas categorias de

homens superiores298. A natureza, ao criar tais figuras por um “salto” (springen), “compreende que ela deve desaprender (verlernen) que tenha objetivos (Ziele) e que ela jogou o jogo da vida e do vir a ser (Werden) com apostas muito altas”:

Ela se transfigura [verklärt] por meio desse conhecimento e um suave cansaço noturno, que os homens denominam ‘a beleza’, repousa sobre a sua face. O que ela exprime agora com essa fisionomia transfigurada é o grande esclarecimento [Aufklärung] sobre a existência; e o supremo desejo que os mortais podem desejar é participar, continuamente e com ouvidos abertos, desse esclarecimento (...). Pois como a natureza necessita do filósofo, do mesmo modo ela necessita do artista para atingir o seu alvo metafísico, aquele de seu próprio auto- esclarecimento (SE, 5. KSA 1, p. 380-2).

A raiz do pessimismo schopenhaueriano, afirma Nietzsche, residiria precisamente no fato de que nós em nada podemos contribuir para a nossa redenção: “por isso nós nos odiamos

298 “A tarefa do artista é fazer o homem e o mundo parecerem mais belos: Nietzsche cita aprovadamente um

aforismo de Goethe que afirma que o mundo é bom para uma única coisa somente, para ser material de poesia dramática. O filósofo existe para procurar conhecimento e para ensinar, através de palavras e exemplos. O santo, finalmente, existe para a nossa redenção (Erlösung). Esta redenção tem pouco em comum com o modo pelo qual esse conceito é usado por outros pensadores próximos da tradição pessimista. Não é a redenção da existência como tal (como é o caso da questão da Erlösung de Schopenhauer ou Mainländer, ou aquela de Wagner), mas antes da miserabilidade de todos os tempos”. DAHLKVIST, op. cit., p. 196.

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nessa condição” (Idem, p. 383). Essa é, a meu ver, uma revisão fundamental da significação metafísica do sofrimento, tal como ela está presente em O nascimento da tragédia. Nietzsche insere aqui as figuras do filósofo e do santo, que não estavam presentes na sua obra de estreia, assim como relaciona a transfiguração ao esclarecimento, noção esta associada naquele texto ao socratismo.

Após levar em consideração essas três questões, pode-se chegar à conclusão de que, embora haja uma considerável distância no que diz respeito ao alcance do tema do pessimismo em O nascimento da tragédia e Schopenhauer como educador, este texto constitui um momento fundamental de revisão do mesmo. Nele não se trata mais do pessimismo em termos ontológicos, mas na medida em que ele favorece a formação de determinados tipos de homem de excelência. Além disso, ainda que haja uma apologia da arte em detrimento da ciência, o autor não relaciona tão diretamente o pessimismo a ela, como outrora. Por fim, a questão que envolve o sentido da vida ainda permanece, mas a carga metafísica anterior não pode mais ser percebida.

A figura que se sobressai na suposta apologia que Nietzsche faz de Schopenhauer é, entretanto, Montaigne, a quem o autor se dirige de modo tão elogioso que causa certo espanto, dado o caráter do texto:

Que haja algo chamado honestidade [Ehrlichkeit], e que seja ainda uma virtude, pertence, sem dúvida, na idade da opinião pública às opiniões privadas, as quais são proibidas; e, por isso,