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Capítulo II – Das motivações iniciais à aparente ruptura com o pessimismo

Seção 1 Motivações para o pessimismo

O título desta seção encerra em si, propositadamente, uma ambiguidade sobre qual seria a ordem do pessimismo a que Nietzsche é conduzido pelas diversas influências que atuaram sobre ele. Tratar-se-ia de um pessimismo de ordem pessoal, isto é, de uma mera tendência a enfatizar o aspecto negativo das coisas, como consequência de fatos ocorridos na biografia do pensador? Ou estaria Nietzsche preocupado somente com o aspecto filosófico do tema, que é estabelecido na tradição precisamente no momento em que o autor está preparando a sua primeira publicação? Uma pesquisa que lida com um tema controverso como o do pessimismo não poderia fugir de tais questões.

Se a resposta fosse positiva para a primeira pergunta e negativa para a segunda, a presente pesquisa não faria sentido ou estaria simplificando o esforço de Nietzsche em articular o tema com seu pensamento, ao longo de toda a sua produção. Se fosse, ao contrário, negativa para a primeira e positiva para a segunda, a pesquisa estaria mais bem fundamentada – pelo menos do ponto de vista histórico-filosófico –, mas incorreria igualmente em equívoco ao simplificar ou menosprezar outro aspecto fundamental – e que, na minha opinião, jamais deve ser visto como retórico ou como fruto de um mero “romantismo” – da filosofia do autor: o fato de que a relação entre pensamento e vida é extremamente relevante em Nietzsche.

“Minha tarefa geral: mostrar como vida, filosofia e arte podem ter uma profunda relação de parentesco, sem que a filosofia seja superficial [flach] e a vida dos filósofos se torne mentirosa [lügenhaft]” (6[17], Verão de 1875. KSA 8, p. 104)156.

156 “Seu pensamento não busca se desvincular da vida um só momento, muito menos evadir-se dos impulsos de

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A minha tese geral é a de que Nietzsche encontra no pessimismo filosófico uma forma privilegiada de se estabelecer a relação entre pensamento e vida.

Desde os primórdios de suas reflexões, o autor parece sempre dedicar atenção ao tema do sofrimento, mas isso não implica, contudo, que ele esteja lidando com o pessimismo, tanto menos com o pessimismo em sua vertente filosófica – o que ocorre somente alguns anos depois de seu primeiro contato com o tema. Parece-me que uma análise das motivações que conduzem Nietzsche ao pessimismo pode trazer luz a como esse processo se desenvolve ao longo dos anos de formação do autor, até que o mesmo se manifeste publicamente em suas obras acerca da relação entre pensamento e vida e, mais particularmente, entre filosofia e sofrimento.

Aqui se faz necessária uma explicação mais detalhada sobre o que considero como

motivações para o pessimismo. Motivação significa, em primeiro lugar, a influência exercida

pela atmosfera na qual Nietzsche se desenvolveu. Considero essa forma de motivação em sentido exclusivamente biográfico. Motivação pode significar, também, a influência exercida pelas relações mantidas por Nietzsche com pessoas próximas ou de seu círculo mais amplo de amizades. Aqui se coadunam, tal como entendo, elementos de ordem biográfica e

intelectual. E, por fim, motivação significa a influência das diversas leituras do jovem

Nietzsche acerca do tema. Considero essa forma de motivação do ponto de vista exclusivamente intelectual.

é sua expressão. A ‘objetividade’ nem sequer é nele um desiderato, porque é vazia e enrijece uma vida que é sempre superior; e o ‘conhecimento puro’ se lhe apresenta sempre como mero autoengano e paralisia da personalidade criadora. A vida mesma é, para ele, a verdade. Daí que não se possa fazer abstração dela para ascender ao conhecimento de algo ‘verdadeiro em si’. A personalidade criadora é, para Nietzsche, por outra parte, a forma mais alta da vida”. Embora passível de discussão em alguns de seus aspectos particulares, essa tese de Richard Blunck, a quem coube inicialmente a biografia de Nietzsche levada a cabo por Curt Paul Janz, me parece bastante plausível, pelo fato de que aponta para uma preocupação que atravessa todo pensamento de Nietzsche, que é a de tentar, sob várias formas, estabelecer uma relação entre pensamento e vida. Cf. JANZ, C. P. Friedrich Nietzsche: 1. Infancia y juventud. Versión española de Jacob Muñoz. Madrid: Alianza Editorial, 1987. P. 19-20. Em um trecho no qual comenta o capítulo 9 de Para além de bem e mal, Janz afirma: “Finalmente Nietzsche se esforça para esclarecer a sua própria autoimagem em uma espécie de ‘Ecce Homo’. Nietzsche era demasiado consciente do caráter personalizado e vivencial de sua filosofia, da dependência de sua perspectiva com respeito aos seus próprios conteúdos vivenciais (...)”. Todas as menções à biografia de Janz serão feitas, doravante, a partir da tradução espanhola (que, diferentemente da edição alemã, conta com 4 volumes, e não com 3).

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A presente seção tem como meta apresentar essas três diferentes formas de motivação, por meio da análise de como um interesse pessoal pelo tema do sofrimento se torna uma fonte fundamental das reflexões filosóficas de Nietzsche.

1.1 – Aspectos biográficos

A perda de entes queridos157 parece ter constituído uma das principais fontes do “ar melancólico” de Nietzsche, tal como nos transmitem os apontamentos de seu amigo de infância Wilhelm Pinder, que também indica a sua tendência à solidão158. É atestada, além disso, desde os seus tempos de aluno em Pforta até Bonn, uma íntima relação entre estado de ânimo e enfermidades159, relação essa que vai se agravando progressivamente ao longo de seus anos de vida lúcida160. Outro fator de destacada importância em sua biografia é a sua

157 A morte do pai aos 35 anos, em 30 de julho de 1849, e do irmão aos 2, em 2 de agosto de 1850, quando

Nietzsche tinha apenas entre 5 e 6 anos, parece ter afetado, de fato, a sensibilidade de Nietzsche por toda a sua vida. Várias outras mortes são profundamente sentidas pelo autor, como atesta Janz: em 1874, a de seu “protetor” na Basileia Wilhem Vischer-Bilfinger e do pai de seu outro amigo de infância, Gustav Krug, em 1876, próximas ao período em que Nietzsche se separa de Wagner – mortes sentidas pelo autor, segundo Janz, de modo semelhante à morte do próprio pai; a de Franz Dorotheus Gerlach (colega de Nietzsche na Universidade da Basileia, morte também bastante sentida, a despeito de Gerlach ser considerado, ao lado de Jacob Achilles Mähly, “inimigo” de Nietzsche), de sua avó materna Wilhelmine Oehler e de seu professor e mestre desde a Universidade de Bonn, Friedrich Ritschl (ainda que, na época da morte, Nietzsche já estivesse afastado de Ritschl há alguns anos, devido às suas discordâncias em relação a GT); a de Richard Wagner, quiçá a mais sentida de todas (e devido a qual Nietzsche fica enfermo por vários dias), em 1883, e outras duas que o evocaram diretamente para sua relação com o músico: a do rei Luis II da Baviera, o maior patrocinador da empresa de Bayreuth, e a de Franz Liszt, músico e pai de Cosima Wagner, ambas em 1886; e, por fim, a de Wilhelm Vischer-Heusler, filho mais novo de Wilhelm Vischer-Bilfinger, também em 1886, da qual Nietzsche precisa, como em casos semelhantes, de muito tempo para se recuperar e escrever cartas de pêsames à família (JANZ, op. cit., cf. vol. I, p. 40-3; vol. II, p. 243; p. 254; p. 382-3; vol. III, p. 137-40; p. 361-2; p. 388-9; p. 352, 355).

158 “[Pinder] fala a seguir da morte prematura do pai e do irmão de Nietzsche e prossegue: ‘daí talvez que o

traço fundamental de seu caráter fosse certa melancolia, que se manifestava em todo o seu ser. Desde a sua mais prematura infância tem amado a solidão e a ela vinculado seus pensamentos, evitando, de certo modo, a sociedade dos homens e buscando lugares providos de beleza singular por natureza’” (JANZ, op. cit., vol. I, p 53). Tal estado de ânimo se mantém ou se manifesta seguidas vezes ao longo da vida de Nietzsche, como atesta Janz, em referência ainda aos seus primeiros anos de estudante em Leipzig (JANZ, op. cit., cf. vol. I, p. 151).

159 “Se repete, pois, algo que já havia irrompido em Pforta, e depois viria a ocorrer com uma frequência maior:

a coincidência de uma grave crise interior e da enfermidade, coincidência que trazia sempre consigo a necessidade de um tempo de reflexão e reorientação interior” (Idem, vol. I, p. 141).

160 Até o mês de abril do ano de 1875, segundo Janz, Nietzsche pôde exercer suas atividades docentes na

Universidade da Basileia quase sem interrupções significativas. De 1875 até a sua aposentadoria precoce, em 1879, Nietzsche se licencia inúmeras vezes em razão de seus problemas de saúde. Sobre esse período, na ocasião em que o autor se despede de Bayreuth, em meados de 1876, comenta Janz: “a tentativa, desenvolvida durante anos, de unir em uma síntese profissão e vocação, inserção em uma existência burguesa e liberdade existencial, passou a revelar-se com uma claridade crescente como algo sem saída. Seu estado de saúde, em processo de rápido agravamento, deixou simplesmente de estar em condições de suportar a sobrecarga, devido a uma cisão

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participação na guerra franco-prussiana, em 1870. Tal vivência, embora curta, lhe deixou as mais duradouras e decepcionantes impressões: “o que [Nietzsche] viu não foi o esplendor da vitória ou o pathos heroico, mas a sujeira e a miséria, e um irresponsável risco da existência humana” (Idem, vol. II, p. 90). Uma carta de 1869 a Wilhelm Vischer-Bilfinger indica o estado de ânimo em que Nietzsche se encontrava após a guerra: “o meu desejo de me apresentar novamente ao campo de batalha não se realizou; eu estava por demais debilitado e agora ainda sofro frequentemente de excitação nervosa e debilidade repentina, estados que me proíbem todas atividades extraordinárias e que me obrigam uma moderação consciente e uma grande tranquilidade” (KSB 3, p. 146). Janz apresenta uma interpretação que considero bastante frutífera para a minha hipótese sobre as motivações pessoais que levam Nietzsche em direção ao tema do pessimismo:

Nietzsche estava profundamente excitado e nunca mais voltaria a encontrar calma, nem um mínimo de equilíbrio interno. Na dura e irreversível realidade havia se concebido a pergunta pelo sentido da existência humana, ali via ele a contingência e a falta de garantia de sua justificação, e não no jogo intelectual, nem nas fantasias sempre suscetíveis de dissolução da arte (JANZ, vol. II, p. 93).

Os aspectos biográficos supracitados, presentes nos anos de formação de Nietzsche, são massivamente recorrentes ao longo de toda a sua produção, ganhando sempre novos contornos, de acordo com o período em que se situam. Isso pode ser comprovado não só em sua correspondência epistolar e em suas anotações pessoais, mas também na sua obra publicada, como teremos ocasião de discutir ao longo de toda essa segunda parte.

As outras duas classes de motivações para o pessimismo se alternam durante todo o seu período de formação.

1.2 – Ensaio sobre o Édipo Rei, de 1864

Cronologicamente, a primeira motivação importante data de 1863, quando, ainda como estudante em Schulpforta161, Nietzsche se dedica à redação de um ensaio sobre o

interna cada vez mais gritante. Peça a peça, embora muito devagar, veio assim a se consumar o desmanche ao longo de três anos completos” (Idem, vol. II, p. 344).

161 Parte considerável de seus conhecimentos sobre a Antiguidade clássica vem dos anos de estudante em Pforta.

Como destaca Janz, eram prioridades da escola de Pforta uma preocupação com a língua erudita e o estudo dos antigos, fruto de sua tradição de formação humanista. É ainda Pforta que Nietzsche desenvolve grande conhecimento e compreensão filológica dos gregos e latinos (JANZ, op. cit., cf. vol. I, p. 67-71 e p. 110).

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primeiro coro do Édipo Rei, de Sófocles, e lê, como preparação, duas obras sobre a tragédia grega antiga. Trata-se de Die Technik des Dramas (A técnica do drama, obra de 1863), de Gustav Freitag, e de Die religiösen und sittlichen Vorstellungen des Aeschylos und Sophocles (As representações religiosas e morais de Ésquilo e Sófocles, 1861), de Gustav Dronke. Dessas obras, sobretudo da primeira, Nietzsche retira importantes noções que mais tarde serão desenvolvidas e alteradas na ocasião de sua primeira publicação: a definição de tragédia, a função da música do coro e a forma de análise pormenorizada dos tragediógrafos – isso para ficar somente nos exemplos mais importantes162. O meu objetivo aqui não é,

contudo, desenvolver uma análise das fontes que conduzem Nietzsche ao tema da tragédia, questão demasiado extensa, mas apenas destacar como o tema dos antigos e do trágico o ocupa desde os anos de estudante e constitui uma preocupação genuína do autor, a tal ponto que ele se dedica à composição de tal estudo sobre Sófocles163.

1.3 – Eduard Mushacke

Já como estudante da Universidade de Bonn, Nietzsche vai a Berlim a convite do pai de seu amigo Mushacke, em uma de suas poucas (e breves) visitas à cidade. E, a despeito da carta que envia à sua mãe em 22 de outubro de 1865 (poucos dias depois de sua estadia na cidade, entre os dias 1º e 17)164, o seu estado de ânimo ia bastante mal por aquelas datas. Nesse contexto, Nietzsche encontra incentivo na atmosfera pessimista do velho Mushacke, gerando uma profunda admiração pelo pai de seu amigo, nutrida pelos próximos anos:

Tampouco me encontrava então em condições (...) de contemplar e avaliar Berlim com um olhar livre de prejuízos, embora não queira deixar de sublinhar que, apesar do meu estado de ânimo insatisfatório e desassossegado, Sanssouci e os arredores de Postdam me causaram, com sua bela aparência outonal, uma poderosa impressão... Nossas conversas não deixaram, por outra parte, de alimentar meu amargado humor; os sarcasmos do excelente Mushacke, seus juízos agudos sobre a administração escolar superior, sua indignação sobre a Berlim judaica, suas lembranças do tempo dos jovens hegelianos, em resumo, toda a atmosfera pessimista de um homem que olhou muito nos bastidores, me forneceram novo incentivo ao

162 BROBJER, T. H. Sources of and influences on Nietzsche’s The birth of tragedy. Nietzsche-Studien 34

(2005), 278-99. Cf. p. 284-6.

163 Janz também atribui a tal escrito a condição de uma das fontes de GT, tanto pela sua preocupação com a

origem da tragédia e com o significado do trágico, quanto pela sua crítica à ópera moderna (JANZ, cf. vol. I, p. 107-8).

164 “A vida em Berlim foi extraordinariamente amável e agradável. O velho Mushacke é o homem mais amável

que eu conheci. Nós nos chamamos de tu. No meu aniversário brindamos com champanhe à vossa saúde” (KSB 2, p. 90).

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meu estado de ânimo. Naquele tempo, aprendi, com agrado, a ver as coisas em negro, porque a mim mesmo as coisas tinham sucedido dessa forma, sem ser, contudo, por minha culpa, como me parecia outrora (67[1], Início de 1868 – Início de 1869. KGW I/5, p. 29).

É interessante notar que Nietzsche, já nesse período, associa o que ele denomina a atmosfera pessimista (pessimistische Atmosphaere) de uma pessoa à visão dos “bastidores” (hinter die Coulissen). Sobre essa questão, Dahlkvist acredita que, “embora a descrição seja reconhecidamente breve e metafórica, ela está em consonância com o pessimismo schopenhaueriano”; ainda que Nietzsche associe o pessimismo com um Schwarzseherei (“ver as coisas de modo negro”), concepção que não é suficiente para definir o pessimismo filosófico. A hipótese de Dahlkvist (op. cit., cf. p. 120) é a de que o pessimismo do pai de Mushacke fez Nietzsche apreciar o ver as coisas em negro.

1.4 – O mundo como vontade e representação, vol. I

É precisamente por essas datas, entre o fim de outubro e o início de novembro, que Nietzsche se depara com a obra principal de Schopenhauer, em Leipzig. Trata-se de um período em que o autor, desde sua partida de Bonn, encontra-se deprimido e com uma inquietude espiritual que beira o desespero, segundo relata Janz (op. cit., cf. vol. I, p. 151). É no momento de seu ingresso em Leipzig que Nietzsche se entrega fervorosamente ao estudo da filologia, a despeito do fato de que aquela inquietude que lhe assolava o espírito estivesse bastante relacionada com uma busca pelo seu próprio caminho, o qual, Nietzsche estava certo, não seria encontrado na filologia (e ainda esteve distante de ser encontrado nos seus primeiros anos em Leipzig)165.

A “descoberta”166 de Schopenhauer corresponde inteiramente, pois, ao estado de

ânimo de Nietzsche no fim do ano de 1865.

165 “Em sua necessidade de optar por uma profissão, havia se decidido pela filologia, por mais que naquela

época já fosse consciente de que esta não podia ser para ele um fim último, mas somente um meio” (JANZ, vol. I, p. 151). É com a filologia que o autor encontra uma forma privilegiada de conhecer os antigos, ao lhe fornecer imagens de um mundo grandioso, embora tal mundo estivesse “morto” (Idem, cf. p. 154-5).

166 A descoberta de Schopenhauer por Nietzsche tem sido objeto de discussão há alguns anos. Embora pareça

ser quase consensual que Nietzsche começa, de fato, dar especial atenção à filosofia de Schopenhauer somente após o seu contato, em Leipzig, com a obra principal do filósofo, alguns intérpretes apontam para o seu período de estudante em Bonn, quando frequentou, no semestre de verão de 1865, a preleção Allgemeine Geschichte

der Philosophie (“História geral da filosofia”), ministrada pelo professor Carl Schaarschmidt. Johann Figl

demonstra que Nietzsche, na ocasião, teve contato com um trecho da Kritik der kantischen Philosophie, anexo do primeiro volume de O mundo como vontade e representação. De um total de quase cento e cinquenta páginas

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Daí que a sua influência fosse, antes de tudo, moral: como um reflexo de seu eu e de sua circunstância. O desprezo pelos homens, o evangelho da negação e da renúncia que Schopenhauer prega, unidos a esse outro evangelho da redenção por uma arte ‘livre de todo interesse’, cuja forma mais pura Schopenhauer sintetiza precisamente na música, nessa música que Nietzsche tanto amava, tinham que encontrar nele um eco poderoso. A falta de sentido da existência é o que mais fortemente o repreendia nestas páginas (...) (JANZ, op. cit., vol. I, p. 158).

Essa preocupação com a falta de sentido da existência é externada por Nietzsche em uma carta à mãe e à irmã, datada de 5 de novembro de 1865; pouco tempo depois, portanto, de seu contato com a obra principal de Schopenhauer. Nela o autor compara o homem ao animal de carga (Lastthier), perguntando o que os diferenciaria, uma vez que, quando o primeiro age de acordo com a máxima “cumpra com a sua obrigação!” (Thue Deine Pflicht!), ele não está agindo diversamente do segundo; pelo contrário, o animal de carga seria ainda

que constituem tal texto, Nietzsche teria lido apenas as sete que estavam citadas no livro de Schaarschmidt sobre Kant e utilizado pelo professor em suas aulas, conforme destaca Konstantin Broese. Broese, inclusive, levanta a hipótese de que Nietzsche teria adquirido o livro de Schopenhauer em função desse primeiro contato. As páginas de Schopenhauer lidas por Nietzsche em Bonn tratam apenas, é importante destacar, dos “grandes méritos” (groβe Verdienste) da filosofia de Kant (o texto é, de modo geral, dividido em duas partes: uma primeira na qual Schopenhauer tece elogios aos serviços prestados por Kant à filosofia, e uma segunda, na qual tece críticas ao seu pensamento): o primeiro e maior deles é a “distinção entre fenômeno e coisa em si” (Unterscheidung der Erscheinung vom Dinge an sich); o segundo, em consonância com o primeiro, é o “incontestável significado moral das ações como totalmente diferente e não dependente das leis do fenômeno” (die unleugbare moralische Bedeutung des menschlichen Handels als ganz verschieden und nicht abhängig von

den Gesetzen der Erscheinung); e, por fim, também em consonância com o primeiro, é o serviço de “completa

subversão da filosofia escolástica” (völligen Umsturz der Scholastischen Philosophie), em alusão ao período que se inicia com Agostinho, o “pai da igreja” (Kirchenvater), e vai até Kant, segundo Schopenhauer. Essa constatação é de suma importância, pois, como afirma Figl, Nietzsche teria conhecido Kant através de Schopenhauer e, ainda mais, a relação de Nietzsche com Schopenhauer poderia ser colocada em paralelo com a relação deste com Kant: isto é, ao lado do tom elogioso há sempre um tom crítico em relação à sua obra. Cf. FIGL, J. Nietzsches Begegnung mit Schopenhauers Hauptwerk. Unter Heranziehung eines frühen

unveröffentlichen Exzerptes. Schopenhauer-Studien 4 (1991), 89-110; BROESE, K. Nietzsches erste Begegnung mit Schopenhauer im Lichte eines bisher unveröffentlichten Manuskriptes aus seiner Bonner Studienzeit. Schopenhauer-Jahrbuch 85 (2004), 13-26. Sandro Barbera, em um texto de 1995 (Eine Quelle der frühen Schopenhauer-Kritik Nietzsches: Rudolf Hayms Aufsatz ‘Arthur Schopenhaer’. Nietzsche-Studien 24

(1995), 124-36), ainda considera tal questão que envolve a descoberta ou o primeiro contato de Nietzsche com Schopenhauer em aberto e destaca, além de outro texto de Figl (Dialektik der Gewalt. Nietzsches

hermeneutische Religionsphilosophie. Düsseldorf, 1984. P. 114ss.), o texto de 1942 de Wilhelm Metterhausen

como o primeiro a se ocupar do tema: METTERHAUSEN, W. Friedrich Nietzsches Bonner Studienzeit

1864/65. Unveröffentlichtes Typoskript, 1942 (Murhard’sche Bibliothek der Stadt Kassel). P. 94ss. Parece-me

que se levarmos em conta somente a ideia de um primeiro contato com Schopenhauer, isto pode ter ocorrido ainda antes da preleção de Schaarschmidt. Basta-nos recorrer aos títulos dos textos publicados no periódico

Anregungen für Kunst, Leben und Wissenschaft (editado por Franz Brendel e Richard Pohl e publicado