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Sobre o problema do estatuto da metafísica no jovem Nietzsche

Capítulo II – Das motivações iniciais à aparente ruptura com o pessimismo

Seção 2 Sobre o problema do estatuto da metafísica no jovem Nietzsche

A hipótese geral que norteia a presente seção, e que certamente não encerra em si originalidade, é a de que o jovem Nietzsche não toma a metafísica de Schopenhauer como base de sua filosofia, nem mesmo na sua obra publicada. Trata-se bem mais, a despeito de seu constante diálogo com o autor, de um apego à visão de mundo schopenhaueriana e ao estatuto da ideia de justificação da existência, que culminam em O nascimento da tragédia com a análise do pessimismo nos gregos antigos, questão que será discutida na próxima seção.

seu pensamento somente em 1875, quando ele faz uma leitura meticulosa da obra supracitada, cujo comentário ocupa 51 páginas do volume 8 da KSA (p. 131-181) e ao qual voltarei, adiante.

187 O pessimismo é, para Dühring, um tipo de concepção de mundo fundada em uma visão distorcida da vida:

“investigando amor, morte, sociedade e conhecimento, Dühring chega à conclusão de que nenhum deles é um entrave para uma existência plena de valor. O pessimismo não pode, portanto, ser uma verdade científica. A escolha entre pessimismo e otimismo é baseada na emoção, não na razão. O pessimista é, assim, um certo tipo de pessoa, uma pessoa que exagera as dificuldades e misérias da vida e desdenha os elementos que nos trazem alegria. O pessimismo é, desse modo, fundado em uma visão distorcida da vida: ‘das Leben erscheint öde und kahl, weil es vom Standpunkt eines verdorrten Gemüths betrachtet wird’ [‘a vida surge monótona e desoladora, porque ela é considerada do ponto de vista de um temperamento estéril’, WP]. O pessimismo tem, portanto, um conteúdo conceitual, que denota a noção de que a vida não tem valor positivo algum, mas essa noção é, nela mesma, o sinal de um espírito patológico” (DAHLKVIST, op. cit., p. 64).

188 Já Hartmann procurou provar a verdade do pessimismo cientificamente, pois, segundo o autor, a intuição

schopenhaueriana não seria uma prova válida para o mesmo: “o saldo de dor contra prazer deve ser medido empiricamente. Isso é obviamente uma tarefa difícil, mas pode ser levada a cabo. Isso demonstra que a noção de uma justificação da existência se tornou entrelaçada com a noção de valor da vida. Hartmann se apoia, assim, na interpretação de Dühring de que a justificação da existência equivaler-se-ia à demonstração do valor positivo da existência” (DAHLKVIST, op. cit., p. 73). Para uma visão mais aprofundada da relação entre Nietzsche, Hartmann e Schopenhauer, cf. CRAWFORD, C. The beginnings of Nietzsche’s theory of language. Berlin/New York: De Gruyter, 1988. Caps. I, V, IX, X, XI e XII.

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A minha tese particular é a de que a estrita distinção entre um Nietzsche privado (que reflete em suas anotações pessoais, em textos disponibilizados somente para um público muito restrito e também em suas cartas a amigos) e um Nietzsche público (discípulo de Wagner e Schopenhauer) não pode ser levada até as suas últimas consequências, pois aquilo que parece tocar o autor, tanto em uma esfera quanto em outra, é, conforme destacado anteriormente, uma profunda tensão entre tendências, a princípio destoantes, que ele tenta conciliar em seu pensamento. Refiro-me, especialmente, àquela gerada em Nietzsche a partir do contato com as obras de Schopenhauer e Lange189.

Em uma conhecida carta de Nietzsche a Gersdorff, datada do fim de agosto de 1866, o autor apresenta algumas de suas principais impressões da leitura de Lange e de sua influência na visão de Schopenhauer:

“Temos aqui, diante de nós, um kantiano e pesquisador da natureza do mais alto esclarecimento. O seu resultado é resumido nas três sentenças seguintes:

1) O mundo dos sentidos é o produto de nossa organização.

2) Nossos órgãos visíveis (corporais) são, de modo similar a todas as demais partes do mundo fenomênico, somente figuras de um objeto desconhecido.

3) Nossa real organização permanece a nós, por isso, desconhecida, precisamente como as coisas exteriores. Nós temos continuamente diante de nós somente o produto de ambas. De tal modo, a verdadeira essência das coisas, a coisa em si, nos é não somente desconhecida, mas também o conceito da mesma é nem mais nem menos que o último aborto de um objeto dependente de nossa organização, do qual nós não sabemos se possui algum significado fora da nossa experiência. Consequentemente, opina Lange, deixem os filósofos livres, pressupondo que eles doravante nos edificarão. A arte é livre, também na região dos conceitos. Quem quer refutar uma composição de Beethoven, quem quer apontar um erro na madona de Rafael?

Você percebe que, mesmo nesses pontos de vista críticos mais estritos, nos permanece o nosso Schopenhauer, ele se torna até mesmo quase mais importante. Se a filosofia é arte, então Haym também deve se curvar diante de Schopenhauer; se a filosofia deve edificar, então eu sequer conheço um filósofo que é mais edificado que o nosso Schopenhauer (KSB 2, p. 159-60).

O trecho da carta acima indica, em primeiro lugar e de um ponto de vista geral, como Lange se torna uma fonte primordial para a revisão do Kant recebido via Schopenhauer. Em segundo, dá mostras da adesão de Nietzsche ao agnosticismo de Lange e, por conseguinte, da sua não adesão à vontade schopenhaueriana como correlata da coisa em si kantiana. Por

189 Essa tensão entre tendências aparentemente incompatíveis parece permanecer na vida de Nietzsche por mais

alguns anos. O período que compreende aproximadamente entre o semestre de verão de 1873 até agosto de 1876 é marcado, segundo Janz, por uma forte tentativa de satisfazer e, até certo ponto, unificar três exigências que incidiam sobre Nietzsche: profissão filológica, vocação filosófica e fidelidade a Richard Wagner (Cf. JANZ, op. cit., vol. II, cap. 12). Discutirei, na última seção do presente capítulo, em que medida a publicação de Humano, demasiado humano significou, de fato, uma resolução para tal tensão.

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fim, e principalmente, apresenta a preocupação do autor em sintetizar Schopenhauer e Lange, por meio da ideia langeana da metafísica com fins edificantes.

A minha preocupação diante dessa tentativa nietzscheana de conciliar tais tendências em seu pensamento é a seguinte: se a leitura de Lange altera sensivelmente o modo como o jovem Nietzsche concebe a metafísica, cabe questionar, então, qual é a relação desta com o seu pessimismo – de origem fundamentalmente schopenhaueriana, tal como defendo. Se a metafísica tem o mesmo estatuto epistêmico tanto no jovem Nietzsche quanto no Nietzsche posterior à publicação de Humano, demasiado humano, e se o que se altera com a publicação desta obra é somente a sua visão acerca da necessidade da metafísica, como quer Rogério Lopes190, então a relação entre pessimismo e metafísica deve ser obrigatoriamente alvo de uma nova investigação.

190 Lopes contesta a tese hegemônica segundo a qual a primeira ruptura significativa do pensamento de

Nietzsche teria ocorrido com a publicação de Humano, demasiado humano. Segundo essa tese, “Nietzsche teria endossado as principais teses da metafísica da vontade de Schopenhauer, revendo posteriormente esta posição em função de considerações de ordem epistêmica”. Se levarmos em conta somente os textos publicados do autor, afirma Lopes, tal tese é plausível. Mas se levarmos em conta o conjunto de escritos não publicados do autor (as suas anotações pessoais, os escritos que permaneceram durante a sua vida lúcida inéditos, as suas anotações referentes à sua atividade docente e sua correspondência epistolar), bem como as fontes das quais se valeu, “tudo isso aliado a uma leitura mais atenta a certos detalhes conceituais e argumentativos das referidas obras”, tal tese pode, segundo o autor, ser colocada em xeque: “uma consideração tanto dos póstumos como da correspondência do filósofo permite estabelecer de forma conclusiva a tese de que entre o jovem Nietzsche e o filósofo do período intermediário não há nenhuma diferença substantiva no que concerne à compreensão do estatuto epistêmico do discurso metafísico. Ao contrário, ela nos obriga a datar o despertar de Nietzsche de seu sono dogmático no ano de 1866, caso faça ainda algum sentido recorrer a esta patologia tipicamente filosófica (convertida em lugar comum da historiografia pós-kantiana) para descrever o itinerário de um jovem que mal ultrapassou a barreira dos 20 anos e que no âmbito da filosofia stricto sensu está ainda no início de um percurso acidentado e autodidata de formação. Além de provar a tese da continuidade no que diz respeito a este ponto, cabe aos defensores da tese não hegemônica apontar outro fator que permita explicar a mudança de atitude em relação à metafísica que vem à tona com a publicação de Humano, demasiado Humano”. A tese de Lopes é a de que, com a publicação desta obra, Nietzsche estaria rompendo com a convicção básica de sua juventude de que “uma justificação metafísica da existência figuraria entre as condições para a produção de uma cultura superior”, o que ele denomina, entre aspas, de “tese da inevitabilidade antropológica da existência”. O novo programa, a partir de Humano, demasiado humano, constituir-se-ia em uma proposta alternativa à tarefa de edificação da metafísica, qual seja, uma abordagem genealógica dos conceitos e afetos, que teria como meta a eliminação e não a satisfação de tal necessidade metafísica. Lopes, considerando Raoul Richter (Skepticismus

in der Philosophie und seine Überwindung. (02 vols.) Leipzig: Dürr’sche Buchhandlung, 1908) o primeiro

intérprete a contestar que a influência de Schopenhauer teria sido decisiva no que diz respeito à compreensão do estatuto da metafísica pelo jovem Nietzsche, deixa clara a sua posição: o jovem Nietzsche compreende de tal forma o estatuto da metafísica principalmente em função de sua leitura da obra de Lange. Tal é a sua tese geral: “Nietzsche é um genuíno herdeiro do programa filosófico esboçado por Lange em sua História do

Materialismo (...). Por genuíno herdeiro de um programa entenda-se aqui um filósofo que, persistindo na

formulação e reformulação de seus elementos programáticos e sem excluir eventuais críticas e o abandono de aspectos centrais de sua formulação original, tenha se empenhado com certa constância na sua efetiva implementação. O destaque conferido à influência exercida por Lange em termos programáticos não deve

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Em meados de 1868, Nietzsche já estava decidido a dedicar-se à profissão de catedrático universitário e fazia planos para cursos. Sua relação com a filologia, a despeito disso, foi afrouxando-se cada vez mais e em proporção direta ao interesse com que se ocupava com a filosofia. Esse momento é uma espécie de ponto culminante daquilo que Janz entende como uma espécie de viragem filosófica, ocorrida entre os anos de 1867 e 1868, período em que cumpria o serviço militar. É desse período uma série de pontos de vista que se manteriam ao longo de toda a produção de Nietzsche, tais como a crítica ao caráter científico da filologia (a nova geração de filólogos deveria se concentrar em fazer um balanço e assumir o grande legado do passado, e não servir de operários à ciência); a crítica ao historicismo alemão (a recorrência ao passado deveria se dar somente no intuito de buscar nele exemplos e modelos para o nosso tempo); a crítica do intelecto191; e a defesa de um aristocratismo do espírito e do culto do gênio (JANZ, op. cit., vol. I, p. 199-201). Já nesse período, como nos informa Janz, Nietzsche já nutria uma espécie de instinto antimetafísico, impulsionado sobretudo pela leitura do Kant de Kuno Fischer e da releitura de Lange:

Aquele que tiver em vista o curso das respectivas investigações, principalmente das fisiológicas desde Kant, não pode ter qualquer dúvida de que aquelas fronteiras sejam averiguadas de modo seguro e infalível, de tal modo que, salvo os teólogos, alguns professores de filosofia e o vulgo, ninguém cria ilusões a esse respeito. O reino da metafísica, e com ele a província da verdade ‘absoluta’, tem sido necessariamente deixado de lado, juntamente com a poesia e a religião. Quem quer saber algo que trate de se contentar agora com uma consciente relatividade do saber – como, por exemplo, todos os renomados pesquisadores da natureza. A metafísica pertence, então, para alguns homens, à região das necessidades do espírito, é essencialmente edificação; é, por outro lado, arte, propriamente a arte da poesia conceitual; deve-se assegurar, entretanto, que a metafísica nem como religião e nem como arte tem algo a ver com o denominado ‘verdadeiro ou ser em si’ (Carta a Paul Deussen do fim de abril / início de maio de 1868. KSB 2, p. 269).

Já nesse contexto de nova orientação filosófica Nietzsche parece ter estabelecido para o seu pensamento a importância de Schopenhauer:

contudo excluir, o que de resto seria uma pretensão descabida, nem mesmo minimizar a importância que Nietzsche confere a Schopenhauer, mas deve antes de tudo nos auxiliar a redefinir e precisar a natureza desta relação. A determinação da intensidade e natureza das influências respectivas de Lange e Schopenhauer sobre o jovem Nietzsche forneceria, na perspectiva desta tradição interpretativa, a chave para a compreensão de parte importante dos movimentos argumentativos efetuados pelo filósofo ao longo de seu percurso intelectual, assim como permitiria um adequado enfrentamento de uma das principais tensões que percorrem sua obra: a tensão entre esforço crítico e impulso especulativo”. Cf. LOPES, R. A. Ceticismo e vida contemplativa em Nietzsche.

FAFICH-UFMG, Tese de Doutorado, 2008. A citações anteriores foram retiradas das páginas 28-9 e 37.

191 Em carta a Erwin Rohde de 3 de abril de 1868, Nietzsche escreve: “caro amigo (...): o instinto é o melhor no

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(...) veio a perceber (...), com toda clareza, que o momento libertador que Schopenhauer havia lhe proporcionado não dizia respeito aos seus dogmas, mas ao caráter espiritual de Schopenhauer: em sua veracidade, em seu valor para o pensar, em sua amplitude fora do comum e a força artística de seu estilo (JANZ, op. cit., vol. I, p. 211).

E é em meio a tais reflexões que o autor redige, entre o fim de março e o início de abril de 1868, um pequeno comentário à obra de Schopenhauer, sob a rubrica Zu

Schopenhauer (Sobre Schopenhauer)192, no qual ele se posiciona de maneira bastante crítica à leitura schopenhaueriana da filosofia de Kant, à sua concepção de vontade e ao seu sistema em geral.

Desconsiderando a divisão entre uma anotação e outra, o texto é constituído de quatro partes e precedido por uma espécie de esboço do conteúdo do mesmo, na forma de proposições (57[51]). Nestas, Nietzsche já explicita que a base de suas principais críticas ao pensamento de Schopenhauer, tal como exposto em sua obra principal, reside no modo com que ele recebe e redefine a noção kantiana de coisa em si. A partir desse pressuposto, o autor analisa as principais contradições da filosofia schopenhaueriana. Destaco, abaixo, apenas os pontos que considero mais relevantes para o meu propósito.

Nietzsche destaca, na primeira parte do texto (57[52] e [54]), que a solução encontrada por Schopenhauer para o problema da coisa em si kantiana foi convertê-la (umsetzen) em uma forma semipictórica (halb bildliche Form), a vontade: sem fundamento (grundlos) e sem conhecimento (erkenntniβlos), ela se revela como mundo através do aparato de representação (Vorstellungsapparat). Embora o autor enalteça a gratidão de Schopenhauer para com Kant, considera o termo vontade por demais cunhado (schwergemünzt) e muito abrangente (viel umschlieβend); além disso, Schopenhauer não teria avançado um só passo em relação às categorias Kant, ao forjar tal termo como a “pedra filosofal” (Stein der Weisen) sempre buscada pelo pensamento filosófico. Ao fim da primeira seção, Nietzsche destaca que o objetivo de seu texto é apresentar a quintessência do sistema schopenhaueriano por meio de uma análise de sua própria pessoa: como poderia uma pessoa com um sistema tão esburacado (durchlöchert), se pergunta o autor, chegar a tais pretensões?

192 KGW I/4, p. 418-30, que compreende as anotações 57[51]-[52], 57[54]-[55] e 57[61], Outono de 1867 até

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Adiante, na segunda parte (57[55]), Nietzsche levanta quatro objeções ao pensamento de Schopenhauer, todas elas envolvendo o problema da coisa em si ou direcionadas ao mesmo. A primeira, e mais geral, é a de que Schopenhauer falha ao ir adiante da concepção kantiana de coisa em si e que a vontade nada mais seria, desse modo, que uma “mera categoria oculta” (nur eine versteckte Kategorie)193. A segunda é a de que a vontade, que

Schopenhauer coloca no lugar da coisa em si kantiana, só pôde ser criada a partir de uma intuição poética (poetische Intuition), uma vez que as tentativas de prova lógica não poderiam satisfazer nem a Schopenhauer e nem a nós, os leitores. A terceira, mais decisiva, é a de que os predicados atribuídos à vontade são por demais determinados, para algo que é impensável, por excelência (Schlechthin-Undenkbares); além de serem constituídos tão somente por oposição ao mundo da representação. Por fim, ainda mais decisiva é a quarta objeção: partindo de uma possível refutação às três primeiras objeções (a de que a coisa em si poderia, ainda assim, ser pensada como possibilidade, uma vez que na região da transcendência (Gebiet der Transscendez) tudo aquilo que veio a eclodir na mente de um filósofo é possível; desse modo, a coisa em si poderia ser pensada a partir da conexão de duas possibilidades, da qual ela seria o pólo oposto, negativo – Nietzsche está se referindo aqui à oposição entre coisa em si e fenômeno), Nietzsche afirma que o sistema schopenhaueriano se torna embaraçado (verstrickt) em suas mãos, pelo fato de que o mundo não se permite ser estruturado em um sistema, do modo tão confortável como Schopenhauer desejava. O próprio autor, afirma Nietzsche, irá reconhecer ao fim de sua vida que “o problema mais difícil da filosofia” também não fora resolvido pelo seu pensamento: a questão dos limites da individuação.

Essa última observação é o ensejo de Nietzsche para discutir, na terceira parte do texto (57[55]), algumas contradições do sistema schopenhaueriano, as quais divido em dois movimentos argumentativos complementares. O primeiro diz respeito ao fato de que, segundo o autor, a coisa em si schopenhaueriana é constituída tão somente por uma lista de propriedades negativas advindas do mundo dos fenômenos (Erscheinungswelt) e, por esse

193 Karl Schlechta indica que, embora Nietzsche mencione Friedrich Überweg (autor dos três volumes do

Grundriss der Geschichte der Philosophie von Thales auf die Gegenwart, publicado em 1867) como a fonte da

qual ele retira essa expressão, o autor o faz através da História do materialismo, de Lange. SCHLECHTA, K.

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motivo, ele se posiciona contra a ideia (apresentada por Schopenhauer no capítulo 22 do primeiro volume de O mundo como vontade e representação) de que ela não poderia ser afetada pela forma mais geral da cognição. Se a vontade jamais pode ser um objeto, questiona Nietzsche, como ela pode ser pensada objetivamente? O máximo que se poderia alcançar seria, segundo o autor, uma forma de objetividade aparente (scheinbare Objektivität), proveniente de um X totalmente obscuro e inconcebível (ein durchaus dunkles unfaβbares

X), cujos predicados são retirados do mundo dos fenômenos. O segundo movimento

argumentativo, em conexão com a constatação anterior acerca da fonte dos predicados da vontade, se dirige a uma crítica da ideia de unidade (Einheit) da vontade schopenhaueriana (e, por conseguinte, também de seu sistema). O autor teria, afirma Nietzsche, tentado prover de sentido tais predicados ao defini-los como completamente inconcebíveis e transcendentes, o que seria garantido pela unidade metafísica da vontade. Isso implicaria em uma impossibilidade de conhecê-los por meio de nosso intelecto. Schopenhauer, entretanto, faria uso dessa característica essencial da vontade somente na medida em que percebia contradições em seu sistema, uma vez que, em outros momentos, ele fez um uso não- transcendente dos predicados da vontade194. Isso evidenciaria, segundo Nietzsche, que tal

ideia de unidade, assim como a de vontade, só poderia ter sido retirada do mundo dos fenômenos; enquanto o núcleo genuíno (eigentliche Kern), o transcendental, volatilizar-se- ia entre os predicados da coisa em si. Sob esse ponto de vista, Nietzsche retoma conclusivamente o movimento inicial de sua argumentação: unidade (Einheit), eternidade (Ewigkeit) e liberdade (Freiheit) nada mais seriam que características negativas da multiplicidade (Vielheit), da temporalidade (Zeitlichkeit) e da causalidade (Causalität) que caracterizam o mundo dos fenômenos.

Nietzsche trata, na quarta e última parte do ensaio sobre a filosofia schopenhaueriana (57[55] e [61]), do modo pelo qual a vontade aparece (erscheinen) ou, formulado de modo mais claro, do aparato de representação no qual ela surge. Schopenhauer apresenta o intelecto (o autor se refere aqui ao capítulo 22 do segundo volume de O mundo como vontade e

representação) como Mēchanē, instrumentoda vontade, de tal modo que o

194 Nietzsche está comparando aqui dois textos de Schopenhauer, especialmente: o capítulo 25 do segundo

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cérebro se desenvolve em uma escala crescente de necessidade para cumprir exigências das manifestações da vontade. Schopenhauer concebe, assim, o eu cognoscente e consciente como terciário (tertiär), uma vez que ele pressupõe o organismo (Organismus) e este, por sua vez, pressupõe a vontade. Aqui há, para Nietzsche, nada mais que uma diferenciação