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Capítulo I – O pessimismo como pensamento fundador da filosofia de Schopenhauer

Seção 1 Pessimismo e vontade

Se Kant (...) simplesmente inferiu a coisa-em-si (...), que acaso estranho seria que, precisamente aqui, no momento em que chega mais perto da coisa-em-si e a ilumina, logo reconhecesse nela a VONTADE, a Vontade livre que dá sinais de si no mundo só através de fenômenos temporais! Ora, eu de fato assumo, embora não o possa demonstrar, que Kant, todas as vezes em que falava da coisa-em-si, na profundeza mais escura de seu espírito sempre já pensava indistintamente na vontade (WWV I, p. 598-9).

Schopenhauer, tendo como base um trecho do prefácio à segunda edição da Crítica

da razão pura27, apresenta em linhas claras o ponto do qual parto e que já é suficientemente conhecido na literatura sobre a sua filosofia: o fato de que o autor deriva, da distinção kantiana entre coisa em si (Ding an sich) e fenômeno (Erscheinung), a sua metafísica da

vontade (Wille). Se a coisa em si kantiana é a vontade na filosofia de Schopenhauer, pode-se

dizer que o fenômeno nada mais é que a sua manifestação objetiva. Só podem ser conhecidas, portanto, as manifestações (Erscheinungen) da vontade no plano empírico, ou seja, na realidade objetiva, de tal forma que um acesso direto à coisa em si é para nós impossível.

27 Eis o trecho a que se refere Schopenhauer: “Assim, de um mesmo ser, por exemplo, a alma humana, não se

poderia afirmar que a sua vontade era livre e ao mesmo tempo sujeita à necessidade natural, isto é, não livre, sem incorrermos em manifesta contradição, visto que em ambas as proposições tomei a alma humana no mesmo

sentido, ou seja, como coisa em geral (como coisa em si) e nem de outro modo podia proceder sem uma crítica

prévia. Se, porém, a crítica não errou, ensinando a tomar o objecto em dois sentidos diferentes, isto é, como fenómeno e como coisa em si; se estiver certa a dedução dos seus conceitos do entendimento e, por conseguinte, o princípio da causalidade se referir tão-somente às coisas tomadas no primeiro sentido, isto é, enquanto objecto da experiência e se as mesmas coisas, tomadas no segundo sentido, lhe não estiverem sujeitas, então essa mesma vontade pode, por um lado, na ordem dos fenómenos (das ações visíveis), pensar-se necessariamente sujeita às leis da natureza, ou seja, como não livre; por outro lado, enquanto pertencente a uma coisa em si, não sujeita a essa lei e, portanto, livre, sem que deste modo haja contradição”. KANT, I. Crítica da razão pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008. BXXVII-BXXVIII.

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O que se pode conhecer da vontade, sob esse ponto de vista, nada mais é que os seus assim denominados atos da vontade (Akte des Willens), que sempre têm um fundamento exterior a si nos motivos (Motive)28. Discuto, nas linhas que se seguem, em que medida a visão pessimista da existência por Schopenhauer já está fundamentalmente presente na sua concepção da metafísica da vontade, muito antes de sua filosofia ser considerada propriamente pessimista29.

A vontade mesma, entendida como essência metafísica do universo, “encontra-se fora do domínio da lei de motivação: apenas seu fenômeno em dado ponto do tempo é necessariamente determinado por tal lei” (WWV I, p. 127). Há, contudo, algumas formas de manifestação imediata da vontade no plano empírico. A primeira delas é o corpo (Leib). É a partir deste que surge cada intuição que se tem do mundo e, nesse sentido, ele é um objeto imediato, que constitui para o sujeito o ponto de partida do conhecimento, na medida em que precede o uso da lei da causalidade e assim fornece a esta os primeiros dados (Cf. WWV I, p. 22-3). Embora o corpo possa ser também tomado apenas como um objeto do conhecimento (quando, por exemplo, é analisada a constituição física humana), para Schopenhauer a sua função é central:

(...) a série completa das ações, portanto também cada ação isolada, bem como sua condição, o corpo todo que a consuma, consequentemente o processo no e pelo qual o corpo subsiste, não são outra coisa senão o fenômeno da vontade, o tornar-se-visível, a OBJETIDADE DA VONTADE (WWV I, p. 129).

É no corpo, então, que se objetiva a essência metafísica do universo e onde nós, seres humanos, podemos experimentá-la de maneira mais depurada30. A vontade, em se tratando

28 “Estes, todavia, só determinam o que eu quero NESTE tempo, NESTE lugar, sob ESTAS circunstâncias, não

QUE eu quero em geral ou O QUE eu quero em geral, ou seja, as máximas que caracterizam todo o meu querer. Em virtude disso, a essência de todo o meu querer não é explanável por motivos” (WWV I, p. 127).

29 Estou, nesse sentido, de acordo com Christopher Janaway, quando ele afirma: “o pessimismo

schopenhaueriano está intimamente ligado com a sua explicação da vontade. Não há nenhum bem absoluto porque o bem existe apenas relativo a alguma série particular do querer, manifesto em algum lugar no mundo dos fenômenos”. “Para as reais motivações do seu pessimismo nós teremos que olhar para a metafísica da vontade schopenhaueriana, algo que ele inventou antes de usar o termo ‘pessimismo’ e antes de empreender as suas mais extensivas incursões em relação à religião comparativa”. JANAWAY, C. “Introduction”. In: The

Cambridge Companion to Schopenhauer. Cambridge: Cambridge University Press, 2006. P. 09. JANAWAY,

C. Schopenhauer’s Pessimism. In: The Cambridge Companion to Schopenhauer. Cambridge: Cambridge University Press, 2006. P. 318-343. P. 322-323.

30 “Dentes, esôfago, canal intestinal são a fome objetivada. Os genitais são o impulso sexual objetivado; as

mãos que agarram e os pés velozes já correspondem ao empenho mais indireto da vontade que eles expõem. E, assim como forma humana em geral corresponde à vontade humana em geral, assim também a compleição

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da força que rege o mundo inteiro, não pode ser, contudo, considerada somente sob o ponto de vista dos homens:

(...) a reflexão continuada o levará a reconhecer que também a força que vegeta e palpita na planta, sim, a força que forma o cristal, que gira a agulha magnética para o polo norte, que irrompe do choque de dois metais heterogêneos, que aparece nas afinidades eletivas dos materiais como atração e repulsão, sim, a própria gravidade que atua poderosamente em toda matéria, atraindo a pedra para a terra e a terra para o sol, – tudo isso é diferente apenas no fenômeno, mas conforme a sua essência em si é para se reconhecer como aquilo conhecido imediatamente de maneira tão íntima e melhor que qualquer outra coisa e que, ali onde aparece de modo mais nítido, chama-se VONTADE (WWV I, p. 131).

Desse modo, Schopenhauer, ao contrário de grande parte da tradição filosófica – que subsume o conceito de vontade ao de força (Kraft) – pensa cada força na natureza como vontade. E se esforça em mostrar que não se trata de uma distinção trivial, de um “mero jogo de palavras”31.

A apresentação da vontade enquanto coisa em si não evidencia, no entanto, o seu caráter pessimista. Tal questão começa a ganhar contornos mais claros no momento em que Schopenhauer descreve o processo de objetivação da vontade, no qual esta se apresenta essencialmente como sofrimento. Desde o seu grau mais baixo de objetivação, no reino inorgânico, até o mais alto, no homem, ela se manifesta apenas de uma forma: enquanto

discórdia essencial consigo mesma (wesentliche Entzweiung mit sich selbst). Cada

física do indivíduo corresponde à vontade individualmente modificada, ao caráter do indivíduo” (WWV I, p. 130).

31 “O conceito de força é abstraído do domínio em que regem causa e efeito, portanto da representação intuitiva,

e significa o ser-causa da causa (...). O conceito de VONTADE, ao contrário, é o único dentre todos os conceitos possíveis que NÃO tem sua origem no fenômeno. Não a tem na mera representação intuitiva, mas antes provém da interioridade, da consciência imediata do próprio indivíduo, na qual este se reconhece de maneira direta, conforme sua essência, destituído de todas as formas, mesmo as de sujeito e objeto, visto que aqui quem conhece coincide com o que é conhecido” (WWV I, p. 133). Adiante Schopenhauer deixa ainda mais clara tal subsunção do conceito de força ao conceito de vontade: “As forças mais universais da natureza se expõem como os graus mais baixos de objetivação da Vontade. Em parte elas aparecem sem exceção em toda a matéria como gravidade, impenetrabilidade; em parte se distribuem na matéria existente em geral, de modo que algumas dominam esta ou aquela matéria específica como rigidez, fluidez, elasticidade, eletricidade, magnetismo, propriedades químicas, e qualidades de todo tipo. Tais forças são em si fenômenos imediatos da Vontade, tanto quanto os atos humanos, nelas mesmas sem-fundamento, como o caráter do homem. Apenas os seus fenômenos particulares estão submetidos ao princípio de razão, como as ações humanas. As forças enquanto tais jamais podem ser chamadas de efeito ou causa, mas são as condições prévias e pressupostas de qualquer causa ou efeito, mediante os quais sua essência íntima se desdobra e se manifesta. De modo algum, porém, a força é efeito de uma causa, ou causa de um efeito. – Eis por que também é falso dizer: ‘A gravidade é a causa de que a pedra caia’; antes, a causa é aqui a proximidade da terra, na medida em que atrai a pedra. Se a pedra desaparecesse, a pedra não cai, embora a gravidade persista (...). A força enquanto tal se encontra por inteiro fora da cadeia de causas e efeitos, a qual pressupõe o tempo, uma vez que só possui sentido em relação a este. A força mesma, entretanto, encontra-se fora do tempo” (WWV I, p. 155-6).

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organismo, segundo Schopenhauer, só expõe a ideia (Idee)32 da qual é imagem, “após o desconto daquela parte de sua força que é empregada na dominação das Ideias mais baixas, que lutam constantemente contra ele pela matéria” (WWV I, p. 174). A vontade se mostra, desse modo, no mundo objetivo, enquanto luta pela dominação da matéria (Materie), do espaço (Raum) e do tempo (Zeit).

Do mesmo modo, cada fenômeno da Vontade, inclusive os que se expõem no organismo humano, travam uma luta duradoura contra as diversas forças físicas e químicas que, como Ideias mais elementares, têm um direito prévio à matéria. Por isso o braço levantado, após um instante de dominação da gravidade, volta a cair. Daí que o confortável sentimento de saúde que acompanha a vitória da Ideia do organismo consciente de si sobre as leis físicas e químicas, que originariamente controlavam os sucos do corpo, seja tão frequentemente interrompido, sim, de fato é sempre acompanhado de um certo desconforto, grande ou pequeno, produzido pela resistência daquelas forças, e que afeta continuamente a parte vegetativa de nossa vida com um leve sofrimento. Eis por que a digestão deprime todas as funções animais, pois exige toda a força vital para dominar as forças químicas da natureza por assimilação. Daí em geral o fardo da vida física, a necessidade do sono e, por fim, a morte; pois, finalmente, por circunstâncias favoráveis, as forças naturais subjugadas reconquistam a matéria que lhes foi arrebatada pelo organismo, agora cansado até mesmo pelas constantes vitórias, e alcançam sem obstáculos a exposição de sua natureza (WWV I, p. 174).

O exemplo no qual Schopenhauer encontra de maneira mais nítida tal conflito da vontade consigo mesma é no mundo dos animais, “em que cada animal se torna presa e alimento do outro, isto é, a matéria, na qual uma Ideia se expõe, tem de ser abandonada para a exposição de outra, visto que cada animal só alcança sua existência por intermédio da supressão contínua de outro”. “Assim”, afirma o autor, “a Vontade de vida crava continuamente os dentes na própria carne e em diferentes figuras é seu próprio alimento, até que, por fim, o gênero humano, por dominar todas as demais espécies, vê a natureza como um instrumento de uso” (WWV I, p. 175). Se no mundo dos animais tal conflito é visto de modo mais nítido, é no mundo dos homens, entretanto, que ele alcança o nível mais alto e, por conseguinte, mais terrível, “quando o homem se torna lobo do homem, homo homini

lupes” (Idem).

É nessa rede de objetivações da vontade33 que vemos o primeiro aspecto fundamental

do pessimismo na filosofia de Schopenhauer, a saber: a luta constante, em todo o universo,

32 A noção de ideia será esclarecida adiante, no contexto em que for trabalhada a estética schopenhaueriana. 33 Eis um pequeno esboço de como Schopenhauer entende a objetivação da vontade em seus mais diversos

graus (Cf. WWV I, p. 180).

1) Em seus graus mais baixos, como um ímpeto cego, um impelir abafado, obscuro, distante de qualquer capacidade imediata de conhecimento, na natureza inorgânica.

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pela dominação da matéria, do espaço e do tempo, característica fundamental daquela discórdia essencial da vontade consigo mesma.

Permanece, contudo, a questão acerca daquilo que a vontade, enquanto a mais íntima essência da vida (Lebens innerstes Wesen), vem a ser em sua afirmação (Bejahung) e, por conseguinte, de que tipo de satisfação (Befriedigung) ela obtém em sua afirmação: “numa palavra, qual deve ser em geral e no essencial o seu estado neste mundo que lhe pertence em todos os aspectos?” (WWV I, p. 363).

O sofrimento (Leiden), “primeiro e imediato objeto de nossa vida” (PP I, p. 317), é entendido por Schopenhauer como a inibição da vontade diante de um obstáculo (Hemmung durch ein Hinderniß) entre ela e o seu fim provisório (einstweiliges Ziel), ao passo que a

satisfação (Befriedigung) é o bem-estar (Wohlseyn), a felicidade (Glück) e o alcançar o fim

(Erreichen des Ziels), “pois todo esforço nasce da carência, do descontentamento com o próprio estado e é, portanto, sofrimento pelo tempo em que não for satisfeito” (WWV I, p. 365). O problema é, segundo o autor, que nenhuma forma de satisfação é duradoura, mas, antes de qualquer coisa, é o ponto de partida para um novo esforço (Streben), “o qual, por sua vez, vemos travado em toda parte de diferentes maneiras, em toda parte lutando, e assim, portanto, sempre como sofrimento: não há nenhum fim último do esforço, portanto não há nenhuma medida e fim do sofrimento” (Idem).

A vontade se configura, desse modo, como esse movimento incessante pela sua objetivação. Tal movimento não possui um fim, dado que a sua satisfação é apenas momentânea, originando-se tão logo um novo desejo. Comete um grave equívoco aquele que pensa que, ao sanarmos uma dor, surgirá consequentemente um grande contentamento: “a medida de nossa dor e de nosso bem-estar já está, segundo nossa hipótese, de antemão determinada subjetivamente e em cada instante de tempo” (WWV I, p. 374). Isso significa que o sofrimento é inerente ao universo e que, mais especificamente no caso do homem, a dor não possui qualquer causa exterior a si:

2) No reino vegetal (e também na parte vegetativa do fenômeno animal), em que o elo dos seus fenômenos não são propriamente causas, mas excitações. A vontade é completamente destituída de conhecimento, é uma força obscura que impele.

3) No indivíduo, no qual se expressa a ideia. Daqui surge o mundo como representação, uma vez que é somente no homem que existe o conhecimento como forma de auxílio para objetivação de sua vontade.

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Na maioria das vezes, entretanto, fechamos os olhos para o conhecimento, amargo como um remédio, de que o sofrimento é essencial à vida e, por consequência, não penetra em nós do exterior, mas cada pessoa porta em seu interior a sua fonte inesgotável. No entanto, constantemente procuramos uma causa externa particular como se fora um pretexto para a dor que nunca nos abandona (...) (WWV I, p. 375).

A noção de satisfação só pode ser entendida, portanto, em sentido negativo, uma vez que “só a carência, isto é, a dor nos é dada imediatamente” (WWV I, p. 377). O ser humano sente dor (Schmerz) e não ausência de dor (Schmerzlosigkeit); preocupação (Sorge) e não ausência de preocupação (Sorglosigkeit); medo (Furcht) e não segurança (Sicherheit): “sentimos o desejo como sentimos fome e sede” (WWV I, p. 657). Se só a carência pode ser conhecida de maneira direta, o contrário pode-se dizer do prazer, da satisfação e, em última instância, da felicidade, que só se dão indiretamente, “pela recordação do sofrimento precedente contraposto ao fim da privação quando aquela satisfação e prazer ENTRAM EM CENA” (WWV I, p. 377)34. Pode-se dizer, desse modo, que o homem só se torna consciente

das três maiores bênçãos da vida – saúde (Gesundheit), juventude (Jugend) e liberdade (Freiheit) – depois de perdê-las, assim como só se torna consciente de dias felizes depois que estes cedem lugar a dias tristes (Cf. WWV I, p. 657). O fundamento da profunda dor que acomete o indivíduo está, portanto, no fato de que há muito pouca satisfação, no plano fenomênico, de todos os desejos proporcionados pela vontade; em realidade, eles são satisfeitos somente o suficiente para que o corpo seja mantido (Cf. PP I, p. 311).

Tal apresentação da essência da vontade enquanto sofrimento não deve ser entendida, contudo, somente como uma “mera descrição da miséria humana” (WWV I, p. 381-2). Preocupado em dar aos seus leitores uma demonstração filosófica de sua tese fundamental, Schopenhauer defende que a sua discussão “acerca do sofrimento enraizado na essência da

34 “Daí nos alegrarmos com a lembrança de necessidades, doenças, misérias e coisas semelhantes que foram

superadas, pois tal lembrança é o único meio para fruirmos os bens presentes. Também não se deve negar que, nesse aspecto, e a partir desse ponto de vista do egoísmo, que é a forma do querer-viver, a visão ou descrição dos sofrimentos alheios nos proporciona satisfação e prazer, como Lucrécio bela e francamente o expressa no início do segundo livro de De rerum natura:

Suave, mari magno, turbantibus aequora ventis,

E terra magnum alterius spectare laborem: Non, quia vexari quemquam est jucunda voluptas; Sed, quibus ipse malis careas, quia cernere suave est

(Quando o mar está bravio e os ventos açoitam as ondas, / É agradável assistir em terra aos esforços dos marinheiros: / Não que nos agrade assistir aos tormentos dos outros, / Mas é um prazer sabermo-nos livres de um mal)” (WWV I, p. 377).

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vida” é “perfeitamente fria e filosófica, pois parte do universal e é conduzida a priori”. “Decerto”, afirma o autor, “a confirmação a posteriori é em toda parte fácil de obter” (WWV I, p. 382). É nesse intuito que Schopenhauer retoma o discurso de Hamlet, o qual, em sua visão, só provaria que qualquer homem, ao fim da vida, talvez jamais a desejasse novamente; porém, antes, preferiria a total não-existência35. A descrição do inferno por Dante na Divina

comédia teria sido empreendida, nesse sentido, a partir de uma visão deste mundo. Tanto

seria verdade que, afirma o autor, Dante quase nem tinha o que dizer quando tentou descrever o paraíso.

Ainda mais importante que o discurso de Hamlet e a descrição do inferno por Dante é, contudo, a contraposição de Schopenhauer à doutrina do “melhor dos mundos possíveis” de Leibniz.

Mesmo que haja, segundo o autor, as mais diversas e contundentes evidências de que esse mundo é dominado pelo sofrimento, houve ainda tal forma de consideração otimista da existência, para qual este é o melhor dos mundos possíveis. A posição de Schopenhauer diante de tais doutrinas otimistas é clara: “o absurdo é gritante” (Die Absurdität ist schreiend). Um otimista argumentaria, segundo o autor, o seguinte: como pode alguém conceber a existência de maneira negativa, se quando eu olho para o mundo vejo quão belo é o brilho do sol, as montanhas, os vales, os rios, as plantas, os animais e assim por diante? O que está em questão aqui é, de acordo com Schopenhauer, que tal otimista considera o mundo somente a partir da aparência, e não a partir de sua essência: “ver essas coisas é, sem dúvida, algo belo; mas ser é algo totalmente diferente” (WWV I, p. 665. Grifos meus). Schopenhauer reafirma, também nessa discussão com o otimismo filosófico, a sua concepção pessimista da existência a partir de um ponto de vista metafísico.

Leibniz, o fundador do otimismo sistemático, concebe em sua Théodicée36 e em seus

Nouveaux essays sur l’entendement a ideia de uma harmonia pré-estabelecida no mundo, contra

35 Essa questão se torna crucial na crítica do jovem Nietzsche ao pessimismo de Schopenhauer, como terei

ocasião de analisar, adiante.

36 O termo teodiceia foi criado por Leibniz para servir de título à obra Essais de Théodicée sur la bonté de Dieu,

la liberté de l'homme et l'origine du mal, de 1710, e “designa a justificação da bondade de Deus contra os

argumentos tirados da existência do mal no mundo e, por consequência, a refutação das doutrinas ateias ou dualistas que se apóiam sobre esses argumentos”. LALANDE, A. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. Tradução de Fátima Sá Correia et. al. São Paulo, Martins Fontes, 1993. P. 1124. “Este termo permaneceu usual

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a qual Schopenhauer se pronuncia, bem como contra os princípios da monadologia e da

identitas indiscernibilium37. O autor se posiciona ainda ao lado de Voltaire, para o qual seria necessário apenas sinceridade para reconhecer o oposto do otimismo38.

Schopenhauer defende, nessa empreitada, que este mundo é arranjado de tal modo que seja possível a ele viver necessariamente na maior de todas as dificuldades e que, caso ele fosse um pouco pior, cessaria de existir. Consequentemente, já que um mundo pior não poderia existir, ele é absolutamente impossível; de tal modo que este é o pior de todos os mundos (Cf. WWV I, p. 667). Esse é o argumento que o autor apresenta contra aquelas por ele assim denominadas “provas sofísticas” de Leibniz. Assim, a situação humana na terra seria uma espécie de situação-limite, na qual, por exemplo, “uma insignificante alteração da