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Os dois sentidos de trágico em O nascimento da tragédia

Capítulo II – Das motivações iniciais à aparente ruptura com o pessimismo

Seção 4 Os dois sentidos de trágico em O nascimento da tragédia

Um problema aparentemente indissociável da discussão sobre o pessimismo no período de O nascimento da tragédia é o do sentido do trágico (Tragische)251, uma vez que a sua concepção de pessimismo está sobremaneira interligada à sua descrição da tragédia grega antiga. Isso não implica, contudo, que a significação do pessimismo e do trágico seja a mesma no período em questão, ou até mesmo que tais termos sejam intercambiáveis. Pretendo demonstrar na presente seção até que ponto tais conceitos ou ideias podem ser vistos como semelhantes e em que medida possuem significados distintos.

Como foi demonstrado anteriormente, Nietzsche nutria grande interesse pela tragédia grega antiga e por suas figuras desde o seu período de estudante em Pforta, quando redige, em 1864, um ensaio sobre o primeiro coro do Édipo Rei. Essa preocupação com a significação do fenômeno trágico se desenvolve consideravelmente durante os seus anos de estudante em Leipzig e ganha contornos especiais no fim da década de 1860 e início da década de 1870, ocasião em que redige a sua primeira obra. É atestada nas suas anotações pessoais que precedem a publicação e que lhe servem de preparação uma genuína

250 “(...) a existência e o mundo são eternamente justificados somente como fenômeno estético” (“(...) nur als

aesthetisches Phänomen ist das Dasein und die Welt ewig gerechtfertig”): esta é a formulação de Nietzsche em O nascimento da tragédia (KSA 1, p. 47. Cf. também p. 152). A retirada do termo nur (“somente” ou “apenas”)

em A gaia ciência tem um significado, de acordo com Jörg Salaquarda, bastante preciso: “ao suprimir o ‘apenas’ do início da frase (...), a sentença se deixa compreender do modo seguinte: para nós, espíritos livres, a existência como fenômeno estético não é, com efeito, justificada, porém, mesmo assim, ainda suportável”. SALAQUARDA, J. A última fase de surgimento de A gaia ciência. Cadernos Nietzsche 6 (1999), 75-93. P. 88.

251 Refiro-me aqui especialmente à forma substantivada das Tragische, muito embora, como ficará claro

adiante, a definição do fenômeno trágico só pode ser bem elucidada a partir das suas aparições também como adjetivo ou advérbio (tragisch).

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preocupação com a definição do trágico. “Sobre a filosofia do trágico” (Zur Philosophie des

Tragischen) é um dos tópicos de uma lista de temas a serem abordados pelo autor, em uma

anotação do período (5[122], Setembro de 1870 – Janeiro de 1871. KSA 7, p. 127). Em outra, na qual o autor trata dos impulsos apolíneo e dionisíaco, se faz presente a preocupação em definir a “essência do belo” (Wesen des Schönen) e a “essência do trágico” (Wesen des

Tragischen) (7[64], Fim de 1870 – Abril de 1871. KSA 7, p. 153). Nesse mesmo sentido,

Nietzsche se pergunta pelo “(...) parentesco entre a música e o trágico” (Verwandtschaft der

Musik und des Tragischen) e pela diferença entre o trágico e o lírico (das Lyrische), mas tece

um questionamento ainda mais penetrante: “o trágico exprime a forma mais geral da existência?” (9[125], 1871. KSA 7, p. 320). A resposta do autor a esta última questão não se encontra na anotação em questão, mas o autor fornece subsídios para uma melhor compreensão de sua concepção do trágico:

O trágico pode ser somente uma melhora [Steigerung] do lírico: em oposição ao épico. A dissolução da música em um mito é o trágico. O mito trágico se comporta em relação à lírica da mesma forma que a epopeia em relação à pintura (...). O mito trágico [é, WP] a representação de um sofrer como interpretação da música (...). O especialmente dramático não pertence à essência do trágico (...). O coro trágico vê o mito como o rapsodo [vê, WP] a epopeia (Idem, p. 320-1).

É a partir de uma concepção de trágico que Nietzsche passa a se utilizar do termo para qualificar suas diversas manifestações252. Mas que concepção de trágico é essa da qual o autor se vale, uma vez que encontramos apenas indícios de como ela deve ser entendida – e não uma definição da mesma –, tanto em suas anotações quanto em seus textos privados e publicados?

Há um considerável número de intérpretes que procuraram trazer luz a esse complicado tema253. Em um texto clássico sobre o assunto, Peter Szondi apresenta os

252 Encontramos, somente em O nascimento da tragédia, os seguintes substantivos qualificados com o adjetivo

“trágico” (tragisch): Mythus (capítulos 16, 17, 21, 22, 24 e 25), Chor (7 e 8), Held (8, 10, 11, 12, 21 e 22),

Bühne (10, 12), Gestalten (10), Zuschauer (21), Dichtung (10), Dichter (11), Kunst (8, 11, 13, 14, 15 e17), Künstler (22 e 24), Kunstwerk (17), Kunstbedürftigkeit (16), Weltbetrachtung (16 e 17), Erkentniss (15), Cultur

(18), Mensch (18 e 20), Wirkung (12, 22 e 24), Resignation (15), Situation (22), Dissonanz (17), Zeitalter (19),

Mysterien (21), Simbolik (16) e Mitleiden (14).

253 Alguns dos textos publicados sobre o assunto na primeira década do nosso século são resenhados por Maria

João Mayer Branco. Cf. BRANCO, M. J. M. Vom Tragischen zum Lachen. Fünf Untersuchungen zum Begriff

des Tragischen bei Nietzsche und seiner Entwicklung in der modernen Kunst und Philosophie. Nietzsche-

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conceitos de tragicidade (Tragik) e de trágico (Tragisch) como essencialmente germânicos254. O autor sustenta que a concepção de uma “filosofia do trágico” surge somente com Schelling, quando o autor começa a tratar da ideia de tragédia. Schelling rompe, segundo o autor, com uma longa tradição de análise e interpretação da tragédia grega antiga inaugurada pela Poética de Aristóteles, tradição esta que dava ênfase aos elementos

constituintes da arte trágica, modo de abordagem que foi tratado por Szondi sob a insígnia

“poética da tragédia”255.

No que diz respeito à interpretação nietzscheana do trágico, o autor afirma que

(...) a exegese que Nietzsche faz do trágico parece ser proveniente de sua interpretação da tragédia ática, entendida como conciliação dos dois princípios artísticos que, nos períodos anteriores da arte grega, encontravam-se permanentemente em conflito, como ‘o coro dionisíaco que sempre desemboca em um mundo apolíneo da imagem’ (SZONDI, op. cit., p. 68).

Szondi estabelece os conceitos de vontade e representação schopenhauerianos como os antepassados dos princípios artísticos nietzscheanos do dionisíaco e do apolíneo,

respectivamente, e é a partir desse ponto de vista que ele vai tratar do tema do trágico em Nietzsche: como o permanente conflito entre o dionisíaco e o apolíneo.

Nuno Nabais entende que O nascimento da tragédia é um projeto que tem como precursores imediatos a leitura schilleriana da Crítica da faculdade do juízo e as estéticas de Schopenhauer e de Wagner, cuja radicalização da diferença entre uma estética do belo e uma

254 Incluindo nessa tradição apenas Kierkegaard e retirando da mesma os seus seguidores. Para fazer jus à sua

tese, o autor analisa somente autores alemães (e Kierkegaard) na primeira das duas partes de sua obra. Cf. SZONDI, P. Ensaio sobre o trágico. Tradução de Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. O texto original data de 1961.

255 O tradutor da edição brasileira do texto destaca a diferença fundamental entre as poéticas clássicas e a

filosofia da arte do idealismo alemão, que Szondi está procurando elucidar com sua obra: “as poéticas clássicas, passando por Horácio, até a época do Iluminismo, resumiam-se a doutrinas normativas que, a partir da divisão da poesia em seus três gêneros, definiam o que eles eram e ensinavam como se devia escrever uma epopeia, um poema lírico ou um poema dramático. Com a filosofia da arte do Idealismo alemão, tanto os gêneros poéticos quanto os conceitos estéticos fundamentais (como o belo e o sublime) passaram a ser pensados em sua dialética histórica, dentro de sistemas filosóficos (...). Em outras palavras, as estéticas idealistas pensam a unidade dialética entre a forma e o conteúdo: épico, lírico e dramático como configurações próprias às manifestações do belo e do sublime”. E, adiante, apresenta a nova concepção de estética surgida a partir dessa nova visão: “assim, a noção tradicional de mímese é contestada, pois as obras de arte seriam não cópias de objetos da natureza, mas manifestações, no mundo sensível e na história, do que existe de supra-sensível, ou seja, do absoluto, do divino, daquilo que está para além das coisas naturais. A estética, no sentido geral de um campo de pensamento que tem a arte por objeto, deixa de ser ligada apenas à determinação dos gêneros e ao ensino de sua produção, como algo distinto da reflexão epistemológica, e passa a ser compreendida propriamente como ciência do belo artístico e como filosofia da arte” (SZONDI, op. cit., p. 11 e 17, respectivamente).

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estética do sublime marcam o projeto de filosofia nietzscheano. Sob esse ponto de vista, a duplicidade Apolo e Dionísio só pode ser bem compreendida, na visão do autor, como análoga das categorias kantianas do belo e do sublime, respectivamente. A ideia de uma condição sublime da tragédia e, por conseguinte, do trágico deve ser buscada a partir desse ponto de vista256.

Dos intérpretes brasileiros, Roberto Machado me parece ser aquele que, em diálogo com os dois autores supracitados, mais se ocupou da inserção de Nietzsche nesse movimento alemão de pensar a tragédia e o trágico. Tal movimento pode ser visto sob um duplo aspecto: por um lado, na busca de autores como Goethe, Schiller, Winckelmann e Lessing pela formação de um teatro nacional alemão e, por outro, na busca por uma concepção do trágico empreendida por autores como Schelling, Hegel, Hölderlin, Schopenhauer e Nietzsche. De acordo com Machado, a principal diferença destes últimos autores para aqueles que pensaram o fenômeno trágico anteriormente é, de modo semelhante à concepção de Szondi, o fato de que eles o tratam a partir de uma concepção ontológica do mesmo, ao contrário das análises meramente poéticas que os precederam257.

De modo semelhante a Nabais, Machado também parte da leitura schilleriana de Kant como precursora dessa tradição de pensadores. O autor vai, contudo, além de Nabais, ao concebê-la como devedora não apenas de uma leitura da terceira Crítica, mas, sobretudo, das “antinomias” kantianas:

É assim, por exemplo, que o tema da reconciliação das oposições ou da superação das distâncias ou cisões estabelecidas por Kant entre sujeito e objeto, beleza e verdade, intuitivo e especulativo, imediato e mediato, sensível e ideal, finito e infinito, liberdade e necessidade é evidente em Schiller (...). E a ideia de contradição remonta em Hegel às antinomias kantianas, isto é, deve-se a Kant a ideia de que a contradição era fundamental, e de que ela

256 A tese de Nabais é, mais precisamente, a de que a concepção nietzscheana de trágico deve ser buscada

precisamente nos textos em que o autor mantém silêncio em relação ao tema da tragédia, embora tais textos devam ser lidos a partir de sua obra de estreia. Desse modo, o autor relaciona o tema com as questões que envolvem o conceito de indivíduo e de individualidade; com o problema da necessidade e da contingência; com a relação entre a ética estoica e a máxima trágica do Amor fati; com a ideia de eterno retorno; com o problema da culpa; e, por fim, com a teoria do niilismo. Cf. NABAIS, N. Metafísica do trágico. Estudos sobre Nietzsche. Lisboa: Relógio D’Água, 1997. Cf. p. 12-3.

257 “(...) uma reflexão sobre o fenômeno trágico, sobre a ideia de trágico, sobre as determinações do trágico,

sobre o sentido do fenômeno trágico, sobre a tragicidade. (...) a originalidade dessa reflexão filosófica, com relação ao que foi pensado até então, se encontra justamente no fato de o trágico aparecer como uma categoria capaz de apresentar a situação do homem no mundo, a essência da condição humana, a dimensão fundamental da existência”. MACHADO, R. O Nascimento do Trágico: de Schiller a Nietzsche. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. P. 42-3.

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poderia significar algo diferente de uma contradição do racional visto pelo entendimento (...). Se a tragédia apareceu, na modernidade, como o primeiro modelo do pensamento dialético, quando se pensa sua relação com a filosofia de Kant isso significa basicamente duas coisas: em primeiro lugar, que a tragédia foi vista como modelo de uma solução ao que Kant chamou de ‘antinomia’, no segundo capítulo, ‘A antinomia da razão pura’, do livro II da ‘Dialética transcendental’ da Crítica da razão pura; em segundo lugar, que o conflito trágico apresentado pela tragédia foi pensado a partir da teoria kantiana do sublime, exposta na ‘Analítica do sublime’ da Crítica da faculdade do juízo, por um deslocamento do privilégio que Kant concede à natureza, quando trata dos juízos de beleza e de sublime, para o campo da arte. O que, como veremos, vai possibilitar a tragédia ser pensada como uma arte que apresenta dramaticamente uma contradição (MACHADO, op. cit., p. 48-9).

A concepção nietzscheana de trágico é interpretada por Machado a partir da noção de um conflito dialético, solucionado com a tragédia, entre as pulsões apolínea e dionisíaca. E, seguindo a ideia dos outros autores supracitados, também as concebe como correlatas das noções kantianas de belo e sublime e das noções schopenhauerianas de vontade e representação (Idem, cf. p. 202-24).

Talvez no texto mais conhecido entre nós, e certamente um dos mais fundamentais sobre o problema do trágico em Nietzsche, Silk e Stern discutem o problema do trágico em Nietzsche também a partir de sua concepção de tragédia e, mais particularmente, de como a sua interpretação do trágico é desenvolvida pela descrição da “dialética entre o apolíneo e o dionisíaco” (op. cit., p. 265; cf. também p. 266). A mais essencial das características dessa concepção de trágico pode ser buscada, segundo essa concepção, na ideia de “sofrimento e destruição do herói”:

O herói pertence ao físico, ao efêmero; a sua destruição ao metafísico, ao eterno; e o seu status é definido em contraste com o coro, cujo interesse no eterno (...) dá a eles [aos participantes do coro, WP] uma função especial. Um corolário importante é que o apolíneo efêmero é irreal comparado ao dionisíaco permanente; isto é, nós o percebemos como tal, nós respondemos ao dionisíaco em um grau mais profundo (Idem, p. 266-7).

Os autores atentam, contudo, para uma diferenciação, em Nietzsche, entre “efeito trágico” (tragische Wirkung258) e “atitude trágica” (das Tragische), apontando para uma

concepção mais ampla de trágico que aquela contida na tragédia grega antiga:

Pode a poesia lírica produzir o efeito trágico? Ou somente a atitude trágica (das Tragische)? Até que ponto pode ser dito que o efeito sobre uma audiência se segue da representação de uma atitude? Pode até mesmo a épica servir de veículo? (...) Certamente, em virtude de ser

258 Os autores mencionam apenas “tragic effect”, sem referência alguma à expressão alemã. Como Nietzsche

não se utiliza da expressão “tragischer Effekt” (ou “tragischer Effect”) em O nascimento da tragédia, suponho que estejam se tratando da “tragische Wirkung” para estabelecer a diferença com o que eles entendem como “atitude trágica” – e nesse caso, eles mencionam o termo alemão Tragische.

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drama, a tragédia está comprometida em causar um impacto que difere daquele de outras formas. Mas outras formas podem conter ‘o trágico’ e, em sua negação desse aspecto, O

nascimento da tragédia é simplesmente muito esquemático (Idem, p. 278. Cf. também p. 278-

9).

A tese de Silk e Stern é a de que o capítulo 16 de O nascimento da tragédia, mais particularmente a sentença “(...) e onde mais haveremos de buscar tal expressão senão na tragédia e, em geral, no conceito do trágico?”259, representa quase, mas não efetivamente, “um passo crucial que significaria o abandono de sua tentativa de definir a tragōidia grega e a concentração em uma tentativa de definir ‘o trágico’ em seu lugar” (SILK; STERN, op. cit., p. 279).

Os autores não levam, contudo, essa tese adiante. O meu objetivo na presente seção é procurar fornecer alguns subsídios de que seria possível pensar em duas concepções, ou sentidos, do termo trágico em O nascimento da tragédia, a despeito de não haver uma definição do mesmo na obra.

4.1 – Sentido metafísico

O primeiro indício importante de uma concepção do trágico naquela que considero sua esfera “metafísica” nos é fornecido por Nietzsche através da sua ideia de uma espécie de retorno do homem à natureza causado pela tragédia. Ao tratar do “superpotente sentimento de unidade que reconduz ao coração da natureza” como o “efeito mais imediato da tragédia dionisíaca” e do consolo metafísico (metaphysischer Trost)260 proporcionado pela mesma –

“de que a vida, no fundo das coisas, apesar de toda mudança das aparências fenomenais, é indestrutivelmente poderosa e cheia de alegria” –, Nietzsche nos remete claramente, ao se utilizar de expressões como “coração da natureza” (Herz der Natur) e “no fundo das coisas” (im Grunde der Dinge), a uma concepção essencialista da vida. Essa concepção tem por intuito apresentar o heleno como aquele que é “singularmente apto ao mais terno e ao mais

259 Eis o trecho em que ela está contida: “Com base no fenômeno do poeta lírico, expliquei como nele a música

se esforça, em consequência disso, por manifestar em imagens apolíneas a sua essência própria: se pensarmos agora que a música, em sua suprema intensificação, tem de procurar atingir também uma suprema afiguração, devemos considerar como algo possível que ela saiba encontrar outrossim a expressão simbólica para a sua autêntica sabedoria dionisíaca; e onde mais haveremos de buscar tal expressão senão na tragédia e, em geral, no conceito de trágico?” (GT, 16. KSA 7, p. 107-8).

260 Sobre como o consolo metafísico é substituído nas tragédias de Eurípides por uma “consonância terrena”,

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pesado sofrimento”, pois somente ele consegue perceber a “terrível ação destrutiva da assim chamada história universal” e a “crueldade da natureza” (GT, 7. KSA 1, p. 56). O sofrimento que é essencial à vida provém, portanto, do conhecimento de sua realidade, que só pode ser transfigurada, como visto anteriormente, pela arte261:

Nesse sentido, o homem dionisíaco se assemelha a Hamlet: ambos lançaram alguma vez um olhar verdadeiro à essência das coisas, ambos passaram a conhecer e a ambos enoja atuar; pois sua atuação não pode modificar em nada a eterna essência das coisas (...). O conhecimento mata a atuação, para atuar é preciso estar velado pela ilusão (...); não é o refletir, não, mas é o verdadeiro conhecimento, o relance interior na horrenda verdade, que sobrepesa todo e qualquer motivo que possa impelir à atuação, quer em Hamlet quer no homem dionisíaco. Na consciência da verdade uma vez contemplada, o homem vê agora, por toda parte, apenas o aspecto horroroso e absurdo do ser (...), agora reconhece a sabedoria do deus dos bosques, Sileno: isso o enoja (Idem, p. 56-7).

A sabedoria dionisíaca (dionysische Weisheit) (GT, 7, 9, 10, 16, 17, 19, 20 e 22), a “sabedoria do sofrimento” (Weisheit des Leidens) (GT, 3 e 17) com a qual, segundo Nietzsche, somente o grego antigo soube lidar, expressa precisamente essa condição essencial da vida. O sátiro, “enquanto anunciador da sabedoria que sai do seio mais profundo da natureza”, da “verdade da natureza”, manifesta a “única realidade” que constitui o “eterno cerne das coisas, a coisa em si” (GT, 8. KSA 1, p. 58-9).

(...) e assim como a tragédia, com o seu consolo metafísico, aponta para a vida perene daquele cerne da existência, apesar da incessante destruição das aparências, do mesmo modo o simbolismo do coro satírico já exprime em uma símile a relação primordial entre coisa em si e fenômeno (Idem, p. 59).

O coro de sátiros, “uma visão tida pela massa dionisíaca”, tem como sua própria visão o “mundo do palco” (Idem, p. 60). Trata-se do coro que, enquanto servente (dienend) do “mestre e senhor Dionísio”, constitui “a mais alta expressão da natureza”; e que, enquanto

compadecente (mitleidend), se exprime como o “sábio que, do coração do mundo, enuncia a

verdade” (Idem, p. 63).

Embora ainda bastante obscuras, essas são as reflexões de Nietzsche que nos permitem, a meu ver, chegar mais próximo do estatuto da coisa em si262, tal como ele a

concebe em sua obra de estreia. Partindo de uma concepção essencialista da existência263,

261 “Ele [o heleno] é salvo pela arte, e através da arte salva-se nele – a vida” (Idem, ibidem).

262 Conforme já destacado, Nietzsche se vale de variados termos e expressões para se referir à coisa em si. 263 Isto é, atribuindo à coisa em si uma realidade e uma anterioridade em relação à existência. Estou seguindo

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Nietzsche descreve a coisa em si como contradição, dor e sofrimento. Tal é o conhecimento que dela podemos ter acesso: “todo conhecimento mais profundo é terrível”, afirma Nietzsche em um esboço de prefácio a Richard Wagner (11[1], 1871. KSA 7, p. 356)264. A arte trágica teria por função, sob essa óptica, permitir a transfiguração de tal condição existencial básica.

Estamos aqui novamente diante do tema do trágico. O que Nietzsche pretendia explicar em sua obra de estreia, quando, em uma anotação que lhe é preparatória, insere o tópico “o surgimento do trágico [des Tragischen] a partir do coro satírico” (9[17], 1871. KSA 7, p. 279)? E, de modo mais amplo, em que medida se pode estabelecer uma relação entre a

tragédia e o trágico?

Um bom indício de resposta pode ser encontrado na ideia dos efeitos (Wirkungen) causados na arte apolínea pela música dionisíaca. Se, por um lado, esta “estimula à introvisão

similiforme [gleichnissartigen Anschauen] da universalidade dionisíaca”, por outro, ela

permite que “a imagem similiforme emerja com suprema significatividade”. É desse duplo efeito causado pela música dionisíaca que Nietzsche deduz a sua capacidade “para dar nascimento ao mito, isto é, o exemplo significativo, e precisamente o mito trágico: o mito que fala em símiles [Gleichnissen] acerca do conhecimento dionisíaco” (GT, 16. KSA 1, p. 107). Faz-se necessário, desse modo, que a música entoada pelo coro satírico atinja uma suprema afiguração (höchste Verbildlichung), uma “expressão simbólica para a sua autêntica