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Capítulo I – O pessimismo como pensamento fundador da filosofia de Schopenhauer

Seção 3 Pessimismo e justificação

Já tive ocasião de demonstrar que Schopenhauer concebe o processo de objetivação da vontade como sem meta e fim últimos, e que essa é uma de suas principais características que conferem à vida o seu sentido negativo. Gostaria, por fim, de indicar como as discussões do autor sobre o caráter essencialmente pessimista da existência estão amparadas em uma questão mais antiga e que remonta a uma série de pensadores e tendências que extrapolam o âmbito da filosofia. Trata-se do problema da justificação (Rechtfertigung) da existência.

André Lalande (op. cit., p. 602) define “justificação” como o

(...) ato de justificar, ou de se justificar, quer dizer, primitivamente de tornar justo ou fazer-se justo (...); depois, por enfraquecimento do sentido primitivo, se diz de todo ato pelo qual se refuta uma imputação ou até pelo qual a ultrapassamos, ao mostrar que se está no direito (quer moral, quer lógico) de o fazer, que temos razão para dizer o que dissemos, ou de fazer o que fizemos.

Pode-se perceber mais claramente, no verbete do Historisches Wörterbuch der

Philosophie dedicado ao assunto, o curso dessa mudança de significados do termo ao longo

da história. A. Peters destaca três pontos de vista fundamentais do conceito de

Rechtfertigung. Dois deles me interessam, em especial. O primeiro é remetido àquela espécie

de jogo (Spiel) da lógica e da dialética com o logos, típico da Antiguidade grega, mais precisamente dos diálogos platônicos e dos Tópicos de Aristóteles. Tal jogo se constituía em uma forma de discussão e de argumentação crítica em relação a uma opinião ou a uma teoria, de modo a colocar em xeque a sua validade (Gültigkeit). Nisso consistia a pergunta pela “justificação”. Essa forma de concebê-la se transforma somente na modernidade, sobretudo pelas mãos de Leibniz, no sentido atualmente empregado de rechtfertigen, isto é, de

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termo150. O segundo ponto de vista discutido pelo autor, que me interessa sobremaneira, é o da “tradição teológico-cristã”, na qual a

Justificação [Rechtfertigung] (iustificatio) do pecador é a consumação histórico-sagrada, na qual Deus Pai absolve, através da entrega do filho aos plenos poderes do espírito santo, o homem, (...) tornado perante ele culpado, e o adota novamente como filho (reconciliatio,

Versöhnung). Na forma da promessa (promissio), aquele acontecimento dinâmico-

escatológico impele, através da morte e do juízo final, à vida eterna junto a Deus (PETERS, op. cit., col. 259).

Dois autores, dentre os vários mencionados pelo autor, devem ser aqui mencionados: o apóstolo Paulo e Martin Luther, que associam o conceito de justificação ao de fé (Glauben)151.

Na Epístola aos romanos, Paulo afirma que a justiça de Deus se revela ao homem apenas pela fé: “Na verdade, eu não me envergonho do evangelho: ele é força de Deus para a salvação de todo aquele que crê (...). Porque nele a justiça de Deus se revela da fé para a

fé, conforme está escrito: O justo viverá da fé”152. Para ele, é somente por meio dela que a Lei divina pode ser consolidada:

Onde está, então, o motivo de glória? Fica excluído. Em força de que lei? A das obras? De modo algum, mas em força da lei da fé. Porquanto nós sustentamos que o homem é justificado pela fé, sem as obras da Lei. Ou acaso ele é Deus só dos judeus? Não é também dos gentios? É certo que também dos gentios, pois há um só Deus, que justificará os circuncisos pela fé e também os incircuncisos através da fé. Então eliminamos a Lei através da fé? De modo algum! Pelo contrário, a consolidamos (Idem, 3, 27-31).

À justiça divina se contrapõe a injustiça dos homens, no sentido de que os últimos carregam consigo a culpa pela sua existência:

Confirma-se (...) que Deus é veraz, enquanto todo homem é mentiroso, conforme está escrito:

Para que sejas justificado nas tuas palavras e triunfes quando fores julgado. Mas então, se a

nossa injustiça realça a justiça de Deus, que diremos? Não cometeria Deus uma injustiça desencadeando sobre nós sua ira? — Falo como homem — . De modo algum! Se assim fosse, como poderia Deus julgar o mundo? (...) E daí? Levamos vantagem? De modo algum. Pois acabamos de provar que todos, tanto os judeus como os gregos, estão debaixo do pecado, conforme está escrito: Não há homem justo, não há um sequer,não há quem entenda, não há quem busque a Deus. Todos se transviaram, todos juntos se corromperam; não há quem faça o bem, não há um sequer. Sua garganta é um sepulcro aberto, sua língua profere enganos; há veneno de serpente debaixo de seus lábios, sua boca está cheia de maldição e azedume. Seus pés são velozes para derramar sangue; há destruição e desgraça em seus caminhos.

150 PETERS, A. “Rechtfertigung”. In: Historisches Wörterbuch der Philosophie, vol. 8: R-Sc. Hrg. von Joachim

Ritter und Karlfried Gründer. Basel und Darmstadt, 1989. Col. 251ff. Cf. cols. 251-6.

151 Agostinho é, certamente, outro expoente dessa corrente de pensadores, mas um tratamento de suas ideias

extrapolaria em demasia os objetivos da presente análise.

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Desconheceram o caminho da paz, não há temor de Deus diante de seus olhos. (Idem, 3, 4-

6; 9-18)

A ideia de justificação pela fé implica, desse modo, na concepção de salvação, de redenção, por meio de uma reconciliação com Deus:

Tendo sido, pois, justificados pela fé, estamos em paz com Deus por nosso Senhor Jesus Cristo, por quem tivemos acesso, pela fé, a esta graça, na qual estamos firmes e nos gloriamos na esperança da glória de Deus. E não é só. Nós nos gloriamos também nas tribulações, sabendo que a tribulação produz a perseverança, a perseverança uma virtude comprovada, a virtude comprovada a esperança. E a esperança não decepciona, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado. Foi, com efeito, quando ainda éramos fracos que Cristo, no tempo marcado, morreu pelos ímpios. — Dificilmente alguém dá a vida por um justo; por um homem de bem talvez haja alguém que se disponha a morrer. — Mas Deus demonstra seu amor para conosco pelo fato de Cristo ter morrido por nós quando éramos ainda pecadores. Quanto mais, então, agora, justificados por seu sangue, seremos por ele salvos da ira. Pois se quando éramos inimigos fomos reconciliados com Deus pela morte do seu Filho, muito mais agora, uma vez reconciliados, seremos salvos por sua vida. E não é só. Mas nós nos gloriamos em Deus por nosso Senhor Jesus Cristo, por quem desde agora recebemos a reconciliação (...). Por conseguinte, assim como pela falta de um só resultou a condenação de todos os homens, do mesmo modo, da obra de justiça de um só, resultou para todos os homens justificação que traz a vida. De modo que, como pela desobediência de um só homem, todos se tornaram pecadores, assim, pela obediência de um só, todos se tornarãojustos. Ora, a Lei interveio para que avultasse a falta; mas onde avultou o pecado, a graça superabundou, para que, como imperou o pecado na morte, assim também imperasse a graça por meio da justiça, para a vida eterna, através de Jesus Cristo, nosso Senhor (Idem, 5, 1-11; 18-21).

Paulo parte, desse modo, de uma concepção de que as mazelas sofridas pelo homem são frutos de sua própria natureza pecadora, de tal forma que o homem só encontrará a redenção de sua condição na sua reconciliação com Deus. E esta só será possível através da fé. Justificar significa, nesse contexto, se reconciliar com a justiça divina, de modo a se redimir de uma condição essencialmente pecadora.

Uma das ideias centrais do projeto de reforma do cristianismo por Luther consiste precisamente na revisão do modo com que o homem estabelece a sua relação com Deus: esta deve se dar, segundo a sua visão, pela fé, e não pelo tradicional uso “racional” das escrituras, tal como fez boa parte dos filósofos153.

Tal é o segundo ponto de vista do conceito de Rechtfertigung discutido no verbete de Peters que eu gostaria de retomar. Considero esse o ponto de vista teológico-moral do termo.

153 Cf., a esse respeito, LUTHER, M. Luthers Vorlesung über den Römerbrief (1515/1516). Ed. Johannes Ficker,

Dieteri’sche Verlagsbuchhandlug, Leipzig, 1923. Para uma discussão de dois aspectos fundamentais da razão em Luther, cf. MASSEI Jr., op. cit., p. 65-82.

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Schopenhauer, embora procure se afastar ao máximo das concepções teológicas em sua obra154, empreende, conforme analisado, uma divisão das religiões sob o critério do otimismo e do pessimismo, no intuito de associar as religiões pessimistas ao seu projeto de valorização da ascese155. Com isso, eis a minha tese, o autor se vale tanto do sentido “lógico- epistemológico” quanto do “teológico-moral” da justificação, sobretudo por meio de sua concepção de “justiça” (Gerechtigkeit).

Schopenhauer trata do tema da justiça em sua obra sob dois aspectos: a justiça

temporal (zeitliche Gerechtigkeit) e a justiça eterna (ewige Gerechtigkeit). O autor esboça

uma explicação da primeira a partir da noção de injustiça (Unrecht). Tal conceito é apresentado, na sua filosofia, como a “invasão dos limites da afirmação alheia da vontade” (WWV I, p. 394). O indivíduo, desse modo, ao invés de servir à sua própria vontade, serve a de outrem (o exemplo in concreto no qual se expressaria tal ideia de modo mais explícito e palpável é o canibalismo (WWV I, p. 395). E não por acaso, o tema é tratado nos termos da “injustiça”, dado que, na filosofia de Schopenhauer, o conceito de justiça (Recht) existe apenas como negação do conceito supracitado: “noutros termos, jamais se falaria de JUSTIÇA se não houvesse INJUSTIÇA” (WWV I, p. 400). O direito (Recht) é, nesse sentido, a possibilidade de negar, “com justiça”, aquela negação alheia, com a força necessária para a sua supressão: “(...) ora, isso não invade a esfera da afirmação alheia, logo, é apenas negação da negação, portanto, afirmação, e não em si mesma negação” (WWV I, p. 401). E uma doutrina do direito (Rechtslehre), por se restringir exclusivamente à prática da justiça ou da injustiça, constitui-se como um capítulo da moral. Ela se refere somente ao agir (Thun) e não ao sofrer (Leiden), uma vez que o primeiro é somente uma exteriorização da vontade, enquanto o segundo lhe é inerente. Apenas a vontade é, segundo Schopenhauer, considerada pela moral. A instituição do Estado e de um código penal está baseada

154 Empenho que lhe renderá, por parte de Nietzsche, a alcunha de ateísta “honesto”, conforme analisarei

adiante.

155 “Pessimismo é um termo que Schopenhauer não usa para descrever a sua própria filosofia. É um termo usado

para designar religiões que descrevem a existência como em si mesma pecaminosa. E embora Schopenhauer sempre escreva que a sua filosofia corresponda ao cerne do cristianismo e do budismo (...), assim implicando que a sua filosofia é pessimista, ele não usa aquele termo para descrever a sua filosofia – não em suas obras, pelo menos. Este é um importante ponto a se notar. O fato de que Schopenhauer introduz o conceito em um contexto religioso explana porque ele o define em termos de justificação, que, particularmente em alemão, é um termo com conotações fortemente teológicas” (DAHLKVIST, op. cit., p. 42).

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precisamente nesses pressupostos. O Estado é a sede da justiça temporal (zeitliche

Gerechtigkeit) e tem como função a punição:

(...) o imediato OBJETIVO DA PUNIÇÃO num caso particular é CUMPRIR A LEI COMO UM CONTRATO. Por sua vez, o único objetivo da LEI é IMPEDIR o menosprezo dos direitos alheios (...). Nesse sentido, a lei e o cumprimento dela, ou seja, a punição, são dirigidos essencialmente ao FUTURO, não ao PASSADO. Isso diferencia PUNIÇÃO de VINGANÇA (WWV I, p. 410-1).

Já a justiça eterna, ao contrário,

(...) furta-se ao olhar turvado pelo conhecimento que segue o princípio de razão, o principium

individuationis. Esse olhar perde completamente de vista aquela justiça (...). Vê o homem

mau, após perfídias e crueldades de todo tipo, viver em alegria e deixar o mundo sem ser incomodado. Vê o oprimido arrastar-se numa vida cheia de sofrimento, até o seu fim, sem que apareça um vingador ou retaliador. Mas só conceberá e apreenderá a justiça eterna quem se elevar por sobre o conhecimento que segue o fio condutor do princípio de razão, atado às coisas particulares; assim o fazendo, conhece as Ideias, vê através do principium

individuationis e percebe que as formas do fenômeno não concernem à coisa-em-si (...). Verá

que a diferença entre quem inflige o sofrimento e quem tem de suportá-lo é apenas fenômeno e não atinge a coisa-em-si, isto é, a Vontade, que vive em ambos (...). O atormentador e o atormentado são unos (WWV I, p. 418-9).

Schopenhauer se vale desta concepção de justiça para tratar da única forma possível de justificação da existência, que só poderá ser encontrada, entretanto, na negação da mesma, na ascese. Apenas através desta é possível ao homem alcançar o ponto de vista da vontade, qual seja, o de que todos os eventos não são em si mesmos bons ou ruins, que merecimento e culpa, prêmio e castigo, não lhe dizem respeito, mas que fazem parte do eterno e misterioso processo de “auto-cisão da vontade” (Selbstentzweiung des Willens) (WWV I, p. 175), da sua objetivação na vida. Vista pelo indivíduo comum, ao contrário, a vida nada mais pode ser que uma espécie de débito contraído através da procriação e do qual se é reembolsado com a morte, no momento em que se retorna para o nada (cf. WWV II, cap. XLVI).

Em suma, o sentido da justificação em Schopenhauer é “teológico-moral”, na medida em que recorre à ascese – mas não à fé – para atribuir o único sentido possível à vida. Mas ele é também, “lógico-epistemológico”, na medida em que o autor cria um sistema filosófico para fundamentá-lo (begründen).

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SEGUNDA PARTE

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