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A apropriação pedagógica da teoria da psicogênese, contribuições,

2.1 Superando a visão de código, tratando a escrita como sistema notacional

2.1.3 A apropriação pedagógica da teoria da psicogênese, contribuições,

Assim sendo, a teoria proposta por Ferreiro e Teberosky (1979) foi uma das inovações introduzidas no contexto do estudo da aquisição da linguagem escrita e que produz, ainda hoje, os seus efeitos e só teve a contribuir para a reflexão e compreensão sobre os conhecimentos que os aprendizes possuem em cada um dos níveis de escrita.

Como explicam Martins, Salvador e Albuquerque (2014):

A teoria psicogenética da linguagem escrita assenta nos pressupostos básicos da teoria piagetiana que entende: i) a criança como um ser eminentemente activo na procura do conhecimento; ii) é através do mecanismo da assimilação que a criança conhece; iii) o processo de aprendizagem está centrado no sujeito na medida em que o conhecimento resulta da sua própria actividade; iv) a construção de conhecimento é progressiva ou evolutiva e não linear, sendo que implica reestruturações globais dos esquemas conceptuais das crianças devido à existência de conflitos cognitivos; v) é pela reconstrução do objecto de conhecimento que o sujeito o capta e compreende na sua essência; vi) nenhuma aprendizagem possui um ponto de partida absoluto.

Segundo Morais com a teoria da psicogênese:

Descobrimos que a escrita não é um código e que não é da noite para o dia, recebendo informações prontas, transmitidas pelo adulto (professora ou autor de cartilha), que, de forma mágica ou instantânea, as crianças passam a usar as letras para escrever ou ler palavras que não. (MORAIS, 2012, p.74),

O autor destaca, em suas considerações, que aprendemos que não é preciso controlar as palavras com que a criança se defronta, porque isso em nada assegura seu avanço. Aprendemos que o processo de letramento – ou de imersão das crianças no mundo da escrita – começa fora da instituição escolar, bem antes do ano de alfabetização, e que deve ser bem conduzido na escola, e pela escola, desde a educação infantil. O autor destaca que a teoria da psicogênese da escrita, desde seu anúncio, nos chamou a atenção para a natureza social dos objetos, língua escrita e sistema de escrita alfabética. Destaca, dentre outras contribuições, que aprendemos, também, que não existe “prontidão” para a alfabetização e que,

(...) fomos chamados a olhar sob outra perspectiva os erros dos alfabetizandos e a interpretá-los, tomando-os como indicadores do que os alunos já aprenderam e do que precisam aprender sobre as questões o que e como a que temos nos referido. (MORAIS, 2012, p. 74).

Morais chama a atenção, como última grande lição, que a partir da teoria da psicogênese da escrita passamos a ver que muitos erros de nossos aprendizes não são indicadores de patologias.

Assim como uma criança silábica ou silábico-alfabética não apresentaria uma dislexia na qual omitiria letras (o adulto que não compreende a psicogênese é que não saberia interpretar o que ela escreve), passamos a ver que “treinar” a emissão de fonemas não seria a forma adequada de ajudar todas as crianças com dificuldades ortográficas a escrever. (MORAIS, 2012, p. 76).

Contudo, se é preciso estar atentos e reconhecer que muitas foram as contribuições e avanços da teoria da psicogênese, no que se refere ao processo de alfabetização, não podemos deixar de considerar que, embora tenha inúmeras contribuições, apresenta algumas limitações, as quais pretendemos mencionar. A seguir, enfocaremos as lacunas, para permanecermos evoluindo em relação às contribuições para o campo da alfabetização.

Alguns estudos e pesquisas têm auxiliado não apenas no aprofundamento das contribuições desta teoria, mas, também, a evidenciar alguns dos seus limites. A teoria da psicogênese, sem dúvidas, propôs uma mudança definitiva nas formas de compreendermos como se desenvolve o aprendizado do sistema de escrita alfabética. Em contrapartida, nos deparamos com as lacunas deixadas por ela, e desafios para inovar e redescobrir o ensino da alfabetização. Mas, o que de fato mudou?

Até a difusão da teoria da psicogênese da escrita, proposta por Ferreiro e Teberosky (1979), os métodos tradicionais de ensino, como mencionado, consideravam a escrita como um código, que era transmitido por um professor com suas cartilhas e que, de forma instantânea, as crianças passariam a usar letras para escrever ou ler palavras. A preocupação dos métodos tradicionais era descrever o como o professor ensinava. Em contrapartida, a teoria da psicogênese contrariou toda essa concepção, da escrita como código e do aprendiz como um “recipiente” a ser preenchido com informações e passou a descrever o como a criança aprende. Eis, então, que um novo cenário começa a se configurar na educação e na história da alfabetização.

Ferreiro e Teberosky (1985) questionaram a busca do melhor método para a alfabetização, demonstrando que aqueles métodos tinham uma visão adultocêntrica e associacionista de aprendizagem. Entretanto, apesar dos estudos de Ferreiro e

Teberosky adentrarem no campo da educação brasileira, trazendo importantes contribuições, estes foram mal compreendidos por nossos professores, que passaram a acreditar que, por si só, a criança construiria seus conhecimentos sem a intermediação docente, deixando-a livre para aprender em diferentes ritmos, de acordo com o seu desenvolvimento psicogenético; em outras palavras, a partir da disseminação da psicogênese da escrita no Brasil, a aprendizagem da criança ficou relegada a ela mesma, por meio da própria sorte.

De acordo com Morais (2012) a má apropriação da teoria gerou três problemas ou questões. A primeira questão abordada pelo autor é decorrente de ter- se confundido uma teoria psicolinguística sobre o processo individual de aprendizado da escrita alfabética, com uma metodologia de ensino, o que chamou

de didatização da teoria da psicogênese. Ainda, segundo o autor, observou-se, nos

anos 1980 e 1990, uma maciça divulgação dos quatro estágios da psicogênese, sem que disso se derivasse uma didática de alfabetização. O “como” alfabetizar teria ficado em segundo plano.

Desse processo resultou, em muitos lugares, o que Magda Soares (2003ª e 2003b) denominou “desinvenção” da alfabetização. Isto é, em muitas escolas e salas de aula instalou-se, como já assinalamos, um discurso segundo o qual as crianças, espontaneamente, aprenderiam a ler, desde que pudessem participar de situações onde se lesse e escrevesse textos, cotidianamente. Não seria preciso trabalhar com palavras e suas unidades menores (sílabas, letras) porque as crianças, “cada uma no seu ritmo”, “descobririam sozinhas” como a escrita funciona (MORAIS, 2012, p. 77 e 78).

A ausência de uma clara proposta de ensino do SEA gerou muitas dúvidas e equívocos de interpretação da proposta da teoria, levando vários profissionais a tirarem conclusões precipitadas de como trabalhar com as crianças em aula. Para uns, as crianças seriam capazes de aprender sozinhas, cada um ao seu ritmo, como a escrita funciona. Para outros, passaram a interpretar que não seria preciso indicar o que estava errado na escrita, porque as crianças seriam capazes de superar seus erros. Os resultados gerados por tais interpretações foram desastrosos.

Em consequência, a má apropriação da teoria provocou outros problemas nas práticas dos alfabetizadores: o abandono do ensino sistemático das correspondências grafema-fonema, o descaso com a caligrafia e com o ensino de ortografia.

A segunda questão levantada por Morais relaciona-se ao descaso com a caligrafia dos alunos.

Se como sabemos, as letras “bastão” ou de imprensa maiúscula são especialmente adequadas para as atividades de reflexão sobre palavras, atividades que auxiliam a criança a compreender as propriedades do SEA, uma vez alcançada uma hipótese alfabética, precisamos ajudar os aprendizes a escrever com letra cursiva, de forma legível e com mais velocidade. (MORAIS, 2012, p. 79).

Além das questões relacionadas ao descaso com a caligrafia, Morais destaca, dentre outros problemas gerados pela interpretação equivocada da teoria, o descuido com o ensino da ortografia.

Na mesma linha de raciocínio, diversos educadores passaram a acreditar que ensinar ortografia era algo “tradicional” (e repressor) e que os aprendizes, por si sós, avançariam no domínio da norma ortográfica, à medida que lessem e produzissem mais textos. (MORAIS, 2012, p. 79).

Mas, segundo Morais, esse tipo de distorção vem sendo superado e os alunos alfabetizados têm aprendido de forma mais reflexiva e com menos “decoreba” as regras e irregularidades de nossa norma ortográfica.

Embora a “chegada” da teoria tenha provocado grande desestabilidade no cenário da educação brasileira, consideramos que suas contribuições foram de extrema relevância para a evolução das práticas pedagógicas relacionadas à alfabetização em nosso país, por tornar-se a principal referência sobre como os aprendizes constroem hipóteses a respeito da escrita alfabética.

Morais (2012) também aponta o caráter secundário que a consciência fonológica e o domínio das relações grafema-fonema recebem na teoria. Com base em estudos prévios, este autor defende que certas habilidades fonológicas são de grande importância para o alcance da escrita silábica e para o avanço da compreensão total do SEA, pelo fato de permitirem a reflexão sobre os segmentos sonoros das palavras.

Temos defendido, há mais de vinte anos (cf. MORAIS e LIMA, 1989), que o desenvolvimento de habilidades fonológicas é uma condição necessária, mas não suficiente, para uma criança atingir uma hipótese alfabética, algo que, sempre é bom lembrar, não é o mesmo que estar alfabetizando. (MORAIS, 2012, p. 91).

A relevância que a consciência fonológica exerce na apropriação do SEA vem sido discutida em vários estudos, por meio de dados de pesquisas consistentes, considerando que os aprendizes desse sistema de escrita, em dado momento de sua

aprendizagem, passam a refletir sobre os segmentos sonoros que constituem as palavras, sejam eles as sílabas, as rimas maiores que as sílabas, as unidades intra- silábicas ou os segmentos menores que as sílabas – os fonemas.

Assim sendo, em relação ao que pudemos compreender, a partir dos estudos apresentados, é que quando as crianças manipulam os sons que constituem as palavras da língua e passam a analisar e a refletir sobre os segmentos sonoros das palavras, podemos afirmar que estão operando no nível explícito das habilidades metafonológicas. É nesse momento que as tarefas de consciência fonológica devem ser potencializadas, na escola, em um processo onde faz-se necessária a sistematização do ensino do sistema alfabético de escrita.

Outro questionamento trazido por Morais, em relação à teoria, diz respeito à visão de que os aprendizes, em determinado momento, escreveriam segundo uma única hipótese de escrita. Isto foi discutido, inicialmente, em estudos de Azevedo; Lima e Morais (2008), assim como de Leite e Morais, (2011) que buscaram fazer uma reflexão sobre a relação que existe entre o conhecimento do nome das letras e as hipóteses de escrita de crianças e adultos, verificando que, além de não existir uma relação linear entre esses conhecimentos, observa-se grande variação de nível em uma mesma criança e ocasião de escrita, levando a questionar a visão da teoria de que os aprendizes “estariam em uma única hipótese de escrita”. Pesquisas posteriores, realizadas por Oliveira e Morais (2013) e Gomes e Morais (2013), evidenciaram as mesmas constatações, assim como, chamaram a atenção para outros aspectos não abordados pela teoria:

(...) como a não influência sobre as hipóteses infantis do fato das palavras serem ou não de mesmo campo semântico, a presença de escritas singulares, que não cabem na classificação dos níveis propostos pela teoria, e a influência não muito significativa do tamanho da palavra em crianças com hipóteses de escrita menos avançadas (pré-silábicas) e mais avançadas (silábicas e alfabéticas). (MORAIS; CAVALCANTI; OLIVEIRA, 2014, p. 6).

Contudo, o que podemos dizer em relação às mudanças ocorridas no âmbito da alfabetização nas últimas três décadas, é que conseguimos compreender o porquê de o sistema de escrita alfabética ser considerado um sistema notacional, conforme propõe a teoria, por isso complexo, e não um sistema de codificação, conforme defendem métodos tradicionais e as implicações que essa má interpretação pode trazer para a apropriação da escrita alfabética durante a

alfabetização. Daí a importância de continuarmos revendo nossos conceitos, assim como, ponto de vista teórico para que possamos superar as lacunas ou limitações encontradas na teoria, rumo a ajustar os caminhos explicativos dessa apropriação.