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3 O LUGAR DAS IDEOLOGIAS NO CONTEXTO INTERNACIONAL EM QUE AMÍLCAR CABRAL LUTOU (1960-197)

3.8 A arma da teoria, os engenhos da diplomacia (1966-1968)

O apoio do Leste Europeu se torna especialmente importante para o PAIGC a partir de 1966, quando a China decide unilateralmente cortar o auxílio ao movimento.433 Conforme Sousa, a China

deixa de fornecer armas, treinamento militar e dinheiro ao PAIGC e a outros movimentos de libertação devido à posição de neutralidade quanto ao conflito sino-soviético adotada por eles na Conferência Tricontinental de Havana, realizada em janeiro de 1966, e no Congresso de Escritores Afro-Asiáticos, realizado na província chinesa de Yeahan, também em 1966.434 Outro fator que faz

sobressair a contribuição do Leste Europeu em meio aos demais apoiadores é que a contribuição dos países africanos diminuiu muito no período, por conta dos diversos golpes de Estado ocorridos na região entre 1965 e 1966, que retiram ao PAIGC importantes aliados.435 Estas alterações na

conjuntura africana e mundial farão Cabral repensar as relações exteriores do PAIGC a partir de 1968.436

A partir de 1966, devido aos progressos conseguidos pelo PAIGC na luta militar e diplomática, o Senegal não tem outro remédio senão reconhecer o partido, passando a permitir-lhe a fixação de combatentes, o trânsito de material, e a assistência de doentes e feridos.437 Sem embargo,

o apoio do Senegal, vizinho da futura Guiné-Bissau ao norte, jamais teria a dimensão do apoio 430 Como nos planos da StB e da KGB para tentar reverter o golpe sofrido por Kwame Nkrumah no Gana, em 1966.

Ver TELEPNEVA, Natalia, op. cit., pp. 150-157. 431 TELEPNEVA, Natalia, op. cit., p. 107; p. 281. 432 Ibidem, p. 143.

433 SOUSA, Julião, “A cisão...”, p. 230. 434 Idem.

435 SOUSA, Julião, “A cisão...”, p. 235; SOUSA, Julião, Amílcar Cabral…, pp. 466-467. 436 Ver SOUSA, Julião, Amílcar Cabral…, parte II, cap. 5.

recebido pela Guiné-Conacri, vizinho ao sul, república que servia de retaguarda para o PAIGC. Para Cabral, defender a República da Guiné, presidida por Sékou Touré, era defender a própria luta do PAIGC.438

Lembremos que Senghor, presidente do Senegal no período, era de inclinação anticomunista, e a sua relutância inicial em apoiar o PAIGC é creditada à suspeita de que Amílcar Cabral fosse comunista. Além disso, Senghor era contrário à luta armada, e apoiava grupos não armados opositores do PAIGC.439

Em 1969, a China propõe retomar o apoio ao PAIGC, sob a condição de que o contingente cubano presente na Guiné abandonasse o terreno, o que Cabral não aceita. Segundo Sousa, apesar da influência do pensamento de Mao na ação do PAIGC, Cabral desde muito cedo convenceu-se de que o relacionamento com a China seria muito difícil, devido às ingerências e às condicionalidades que os chineses pretendiam impor.440

Assim como a China, a Albânia – país socialista, porém opositor à União Soviética – pretendia condicionar a ajuda ao PAIGC a uma tomada de posição contrária ao revisionismo soviético.441,442 No entanto, os movimentos de libertação não assumiam este tipo de postura com

relação a questões externas à sua luta, embora manifestassem solidariedade a outros povos oprimidos. O apoio da China ao PAIGC seria retomado entre 1969 e 1970.443

Na Conferência Tricontinental de Havana, de 1966, Cabral faz o seu mais célebre discurso, conhecido como A arma da teoria,444 que impressiona fortemente os delegados presentes. É

fundamentalmente a partir daí que Amílcar Cabral notabiliza-se como um importante teórico do anticolonialismo e do anti-imperialismo. O seu discurso é muito bem apreciado pelo mundo socialista. Os cubanos acham-no brilhante, e expandem o seu auxílio ao PAIGC.445

Durante a Conferência Tricontinental, na sequência do discurso do líder guineense, Fidel Castro conversa longamente com Cabral, prometendo-lhe enviar instrutores militares e médicos para a Guiné. De Cuba, a partir de 1966 e até o final da guerra, em 1974, vieram os únicos 438 CABRAL, Amílcar, “Os caminhos da traição” in A luta criou raízes – intervenções, entrevistas, reflexões, artigos

1964-1973, Praia, Fundação Amílcar Cabral, 2018 [1971], pp. 58-78. Análise da agressão portuguesa à Guiné-

Conacri, em 22 de Novembro de 1970, na reunião do Conselho Superior da Luta de Agosto de 1971. 439 DHADA, Mustafah, op. cit., p. 234.

440 SOUSA, Julião, “A cisão...”, p. 233. 441 Ibidem, p. 234.

442 No movimento comunista, revisionismo corresponde a um posicionamento de abandono da revolução, e a um afastamento das práticas, métodos e ideias marxistas.

443 SOUSA, Julião, “A cisão...”, p. 235.

444 CABRAL, Amílcar, “Fundamentos e objectivos da libertação nacional em relação com a estrutura social”.

445 GLEIJESES, Piero, “The first ambassadors: Cuba’s contribution to Guinea-Bissau’s war of independence”, Journal

of Latin American Studies, v. 29, n.1, Feb, 1997, pp. 45-88. Ver também os depoimentos dos combatentes cubanos

ouvidos em EL-TAHRI, Jihan, Cuba: uma odisseia africana. Produção: Temps Noir. Paris, Arte France; Lisboa, Midas Filmes, 2007. Documentário. 1 DVD (190 min.).

estrangeiros admitidos pelo PAIGC como combatentes na Guiné. Cabral desejava que o próprio povo guineense e cabo-verdiano realizasse a luta de libertação, constituindo a participação cubana uma exceção, devido à necessidade de pessoal militar qualificado. A par da ajuda militar, Cuba envia médicos e enfermeiros para a guerra de libertação. O país latino-americano vinha ajudando o PAIGC desde 1965, após um encontro de Che Guevara com Cabral em Conacri, em janeiro daquele ano. Por meio da Operación Triángulo, em abril de 1965, Cuba manda alimentos, armas e medicamentos para o movimento de libertação. Em julho de 1965, 31 cabo-verdianos viajam para Cuba a fim de receber treinamento militar, visando à preparação para a luta armada em Cabo Verde. Todavia, devido à falta de condições geográficas, e até políticas, para a insurreição armada no arquipélago, o partido desiste do projeto. Os cabo-verdianos treinados em Cuba passam a lutar na Guiné-Bissau a partir de 1967.446

O discurso em Havana também repercute positivamente entre os soviéticos, principalmente por defender que durante a luta de libertação os movimentos deveriam criar uma vanguarda revolucionária, para evitar que o país sucumbisse ao neocolonialismo após a independência.447

Assim, o prestígio de Cabral e do PAIGC está em altíssimo nível, em virtude não só das vitórias do partido na luta armada, mas também das elaborações teóricas do seu líder.

Amílcar tinha consciência do prestígio que ele e a sua organização vinham conquistando no mundo. Em julho de 1968, Cabral estava em Argel, capital da Argélia, país africano fundamental no apoio aos movimentos de libertação, para participar de uma reunião do Comitê de Libertação da OUA. Conforme trechos de postais enviados de lá por Amílcar à sua segunda mulher, Ana Maria Cabral448: “Nós somos muito bem conceituados, admirados, perante todos”, diz Cabral em 17 de

Julho de 1968.449 “O Bouteflika [Abdelaziz Bouteflika, então ministro do Exterior argelino] fez um

dos maiores elogios já dirigidos ao nosso PAIGC e (vá lá) a mim. Os camaradas estão todos radiantes. A nossa delegação é a vedeta desta coisa. Parece que este é o condão do PAIGC”, dizia ele no dia seguinte.450 “O nosso PARTIDO subiu tão alto no quadro africano (e mundial) que tenho

medo das responsabilidades que pesam sobre os nossos ombros”, declara à mulher em 19 de julho.451

446 GLEIJESES, Piero, op. cit.

447 TELEPNEVA, Natalia, op. cit., p. 149.

448 Ana Maria Cabral, nascida na Guiné em 1941, foi mulher de Amílcar desde 1966 até a morte deste em 1973. É dirigente da Fundação Amílcar Cabral em Cabo Verde.

449 CABRAL, Ana Maria; ELÍSIO, Filinto; SOUTO, Márcia (Org.), Itinerários de Amílcar Cabral, Lisboa, Rosa de Porcelana, 2018, p. 42.

450 Ibidem., p. 44. 451 Ibidem, p. 46.

3.9 O peso do racismo, o poder do dinheiro, a força da solidariedade internacional