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2 RECONSTITUINDO INCERTEZAS: NACIONALISMO E MARXISMO NO AMÍLCAR CABRAL PRÉ-REVOLUCIONÁRIO (1948-1960)

2.3 Interiorização do marxismo

A erosão do solo, preocupação da mencionada série Em defesa da terra, foi o tema eleito por Amílcar Cabral para o seu trabalho de conclusão de curso em Engenharia Agrônoma.191 O objeto de

seu estudo foi a região de Cuba, no Baixo Alentejo, Portugal, onde o estudante realizou atividades de estágio e pesquisa.

Trata-se de um trabalho de Engenharia bastante interdisciplinar. Em meio a equações matemáticas, gráficos e fotografias de gotas de chuva incidindo sobre a terra, encontramos conhecimentos de História, Economia e Filosofia. Além de elementos como a vegetação, o solo e o clima, Cabral analisa a ação do homem sobre a natureza, o regime de propriedade adotado, a influência da educação.

Neste trabalho, podemos perceber que as leituras marxistas de Cabral já influenciam a sua produção intelectual.192 Desse modo Cabral disserta sobre o desenvolvimento do solo: “a

meteorização é a ‘negação’ (relativa) da rocha. Agentes naturais destroem a sua estrutura, negam- na. A ‘negação’ (relativa) da meteorização corresponde ao desenvolver do corpo-solo. Dessa dupla negação resulta um novo ser – independente, natural e histórico.”193 “O corpo natural solo constitui,

na sua complexidade físico-químico-biológica, um todo em equilíbrio. Equilíbrio dinâmico, em que os constituintes são interdependentes. Equilíbrio realizado através de contradições, geradoras de sucessivas transformações.”194 É de se notar em seu texto o diálogo entre o materialismo dialético e

as ciências naturais, bem ao estilo de Friedrich Engels. Lembre-se que o jovem Amílcar aparece na caricatura do livro de final de curso carregando um livro do cofundador do marxismo (ver anexo).

Além do livro de Engels, no desenho Amílcar é representado portando um livro de Dostoievski (Fiodor Dostoievski, romancista russo, 1821-1881). Amílcar é desenhado utilizando óculos e vestindo equipamento de futebol, modalidade desportiva que praticava enquanto estudante. É retratado a chorar, e as suas lágrimas irrigam o arquipélago de Cabo Verde. A cabeça é proporcionalmente maior que o restante do corpo. Os traços de negritude (cabelo crespo, pele escura, lábios carnudos) são destacados. Amílcar carrega também um molho de chaves – seriam as 191 CABRAL, Amílcar, “O problema da erosão do solo. Contribuição para o seu estudo na região de Cuba (Alentejo)”,

in Estudos agrários de Amílcar Cabral, Lisboa, IICT, Bissau, INEP, 1988, pp. 81-176. Relatório final do curso de

engenheiro agrônomo, Lisboa, Instituto Superior de Agronomia, 1951, 133 pp., mimeografado.

192 Como já haviam notado ANDRADE, Mário, op. cit.; CHABAL, Patrick, op. cit.; e TOMÁS, António, op. cit. 193 CABRAL, Amílcar, “O problema da erosão do solo...”, p. 91.

chaves da CEI? Acreditamos que as chaves representassem a sua atuação em associações estudantis. Os elementos da caricatura refletem a imagem que os seus colegas faziam dele: um jovem negro, intelectualizado, passional e politizado; com tendências à esquerda, interessado em literatura, mas também em esporte; preocupado com a sua terra de referência (Cabo Verde); atuante no associativismo estudantil.

Cabral entende a ciência como “uma criação do homem para todos os homens”,195 surgida da

necessidade de “lutar contra, conhecer e dominar os fenómenos naturais”.196 A ciência deveria estar

a serviço da humanidade, ou não teria razão de ser. A ciência pura seria um conceito vazio, pois cedo ou tarde se encontraria aplicação para os achados científicos.

José Neves situa a monografia de Cabral no contexto do desenvolvimento dos estudos agrários de Portugal da primeira metade do século XX. Segundo Neves, as ciências agronômicas portuguesas passaram por um processo de sociologização ao longo do século XX, assumindo preocupações ecológicas, integrando-se ao campo da economia política, e contribuindo para o desenvolvimento da geografia agrária e da sociologia rural. Esta inclinação sociologizante terá se refletido na produção científica de Cabral. A sua monografia seria um dos exemplos da viragem ocorrida no campo da pedologia (estudo do solo), que adquire uma dimensão ecológica, preocupada não só com a terra, a fauna e a flora, mas também com os homens e as suas relações sociais.197

Cabral preocupava-se com a relação entre a exploração e a conservação da natureza. O coletivo deveria se sobrepor ao individual, e seria necessário entender a terra como algo a ser conservado para as futuras gerações, em nome da preservação do próprio homem. Ele aponta que a estrutura concentradora da propriedade da terra no Alentejo seria uma das causas da erosão da terra, ao favorecer a busca predatória do lucro e afastar a preocupação com a conservação. Ademais, funcionaria como um desincentivo para que o camponês se preocupasse com o solo. Cabral acredita que seria maior o interesse em conservar o solo se este fosse “uma fonte de bem-estar e de progresso, não apenas para um reduzido número de indivíduos, mas para todos, nomeadamente para os que o trabalham”198.

Outro aspecto inter-relacionado com o problema da erosão seria a “educação do povo”. Por falta de conhecimento técnico, o trabalhador agrícola alentejano adotaria práticas nocivas ao solo. 195 CABRAL, Amílcar, “O problema da erosão do solo...”, p. 85.

196 Ibidem, p. 87.

197 NEVES, José, “Ideologia, ciência e povo em Amílcar Cabral”, História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, 23 Mar. 2017, disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/s0104-59702017005000001>, acesso em: 16 Maio 2017.

Ao trabalhador faltaria também instrução geral. Segundo as estatísticas oficiais, cerca de 76% dos trabalhadores agrícolas do distrito de Beja, onde se localiza Cuba, eram analfabetos em 1940.199

Para que cada geração explorasse a terra sem comprometer “as necessidades, sempre crescentes, das gerações futuras”, seria necessária uma “educação esclarecida”, que visasse

a realização plena do homem, integrado no seu meio e no mundo, liberto de egoísmos impeditivos de uma acção consciente no sentido da realização do bem comum (…) É de notar-se, porém, que o problema da educação está intimamente ligado ao condicionamento sócio-económico da região ou regiões em que é debatido.200

Cabral inclui em sua tese uma “nota histórica” sobre o Alentejo e Portugal. Segundo Cabral, o panorama agrário do Alentejo é um produto da história de Portugal, e não das condições naturais do clima e do solo.201 Ao discorrer sobre a dominação romana, a ocupação árabe, os

Descobrimentos, a República, relacionando os fatos da história geral com os da história da agricultura, demonstra conhecer bem a história de Portugal. Não é para menos: além de ter ido à universidade em Portugal, recebeu em Cabo Verde, que então era uma possessão portuguesa, uma educação voltada para Portugal. Não obstante, a visão histórica que ele desenvolve na sua monografia difere da doutrinação recebida no liceu, baseada na glorificação de “santos e heróis”202.

Cabral não fala da história de Portugal da forma tradicional, que daria destaque às dinastias monárquicas e a grandes acontecimentos isolados; a sua análise baseia-se na história econômica e política deste território, com ênfase não em indivíduos, mas nas classes sociais, em mais um ponto de confluência com o campo comunista. Todavia, não utiliza termos identificados com a tradição marxista – por exemplo, não utiliza “classes sociais”, mas “polos da estrutura social”, para falar de patrícios e plebeus, e de latifundiários e jornaleiros,203 o que acreditamos ser uma forma de

autocensura.

Para além da sua aplicação às ciências agrárias e à luta política, o interesse de Amílcar Cabral pela filosofia marxista chegava aos seus pensamentos mais íntimos e cotidianos no início dos anos 1950. Ao termos acesso às cartas de Amílcar a Maria Helena, verificamos que ele estava frequentemente a filosofar, intercalando abstrações e reflexões às declarações de amor e aos comentários sobre o dia a dia. Uma carta sem datação, mas provavelmente escrita em 1950 ou 1951, antes de Amílcar e Helena casarem-se (o que ocorreria em dezembro de 1951), ilustra esta mescla de filosofia, amor e vida prática. Na carta, Amílcar fala sobre os planos do casal de uma vida em 199 CABRAL, Amílcar, “O problema da erosão do solo...”, p. 154.

200 Ibidem, p. 155. 201 Ibidem, p. 122.

202 Ver CARVALHO, Maria Adriana, op. cit., p. 290 et seq.

comum, expondo o seu ponto de vista num modelo de tese, antítese e síntese. A tese era o desejo dos dois de viverem em comum. Para isso, necessitavam de “condições materiais mínimas”, existentes “em realidade”, e que houvesse uma “identidade de princípios”. A ânsia pela realização deste desejo aumentava a cada dia, causando a “subestimação das necessidades” materiais mínimas e declarando “guerra a todo o pensamento tendente a analisá-las”. Desse modo, a antítese era que a exaltação do desejo de viverem juntos tornava-se contrária a este objetivo comum. Cabral afirma: “impõe-se encontrar uma síntese”, que consistiria em “avaliar a possibilidade de condições materiais mínimas”; “realizar essas condições”; “destruir sistematicamente” as tendências à “exaltação do desejo” – “destruir as reações do instinto de conservação e do egoísmo, sempre prejudiciais a uma visão clara das realidades, indispensáveis à consecução do objetivo comum”; “localizar no tempo, nunca com caráter absoluto, a realização do objetivo tese, que, efetivado, é já uma síntese”; e, por fim, “forjar cada vez mais uma identidade de princípios”.204

Como se sabe, tese, antítese e síntese são conceitos do método dialético idealista hegeliano – por sua vez, herdeiro da filosofia grega –, o qual será reelaborado por Marx e Engels para a criação do método dialético materialista.205 Neste trecho, de forma até inusitada, Cabral exercita o uso de

conceitos filosóficos dialéticos, e também materialistas, ao estabelecer a existência de condições

materiais mínimas na realidade para a consecução de um projeto de vida a dois.

Vê-se que Amílcar buscava administrar a sua vida pessoal de acordo com os princípios da racionalidade, do planejamento e do realismo. A sua relação com o outro, mesmo no campo amoroso, era vista como uma relação política, na qual a realização de objetivos comuns pressupunha a construção de uma identidade de princípios. Cabral procurava compreender a realidade de maneira dialética, o que é exemplificado pela escolha de apresentar o seu ponto de vista num esquema de tese, antítese e síntese. O uso desta linguagem confere humor à carta, pois não se espera que um namorado ou noivo fale sobre planos de casamento com a amada desta forma. Em outras cartas, a reflexão filosófica é mais sutil, e empresta beleza à mensagem, como neste trecho de carta enviada em 17/9/1952, a bordo de um navio rumo a Cabo Verde:

Tenho a certeza de que, se não enjoares, hás de gostar muito da viagem. Quando contemplo a beleza do mar, as maravilhas do pôr do sol em pleno oceano, imagino-te, penso-te pensando esta mesma beleza, esta mesma maravilha. Hás de notar que o movimento constante do mar é o reflexo

de um exemplo do movimento constante de tudo quanto existe.206

204 CABRAL, Iva; SOUTO, Márcia; ELÍSIO, Filinto (Org.), op. cit., p. 323, grifos de Amílcar Cabral.

205 Ver HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich, Dicionário Político do Marxists Internet Archive – Secção em Português, disponível em: <https://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/h/hegel.htm>, acesso em: 11 Maio 2018. 206 CABRAL, Iva; SOUTO, Márcia; ELÍSIO, Filinto (Org.), op. cit., p. 337, grifo nosso.