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Uma boa dose de lirismo e mistificações – o comportamento do Brasil (1961-1969)

3 O LUGAR DAS IDEOLOGIAS NO CONTEXTO INTERNACIONAL EM QUE AMÍLCAR CABRAL LUTOU (1960-197)

3.4 Uma boa dose de lirismo e mistificações – o comportamento do Brasil (1961-1969)

Jânio Quadros toma posse como presidente do Brasil em 31 de janeiro de 1961, cargo ao qual renunciará sete meses depois, em 25 de agosto de 1961. Anuncia uma nova Política Externa Independente, propondo o não alinhamento automático com os Estados Unidos, a revisão das relações com Portugal e o apoio à descolonização.340

Durante o mandato de Jânio, é aprovada a Resolução nº 1603, da XV Sessão da Assembleia Geral da ONU, em 20 de abril de 1961, que apela a Portugal para que realize reformas em Angola, com o propósito de implementar o estabelecido na Resolução nº 1514 (resolução sobre a independência das colônias), e cria um subcomitê para acompanhar a situação angolana.341 A

resolução é aprovada com 73 votos favoráveis. Só dois países declaram votos contrários – a Espanha, que ainda tinha colônias na África, mas ao contrário de Portugal já começava a prestar informações sobre elas, e a África do Sul, que não se importava em desagradar a maioria afro- asiática, tendo em vista que o regime do apartheid já lhe atraía a rejeição irremediável deste bloco.342 O Brasil foi um dos nove países a se absterem, após Jânio ter mudado várias vezes de

opinião sobre o seu voto, exigindo uma dedicação adicional da diplomacia portuguesa.343

Jerry Dávila reconstitui a vacilação de Jânio nesta votação a partir das memórias de Mário Gibson Barboza, publicadas pelo próprio diplomata, e de Afonso Arinos, organizadas pelo filho do eminente político, diplomata e intelectual brasileiro.344

Afonso Arinos conta que, enquanto ministro das Relações Exteriores de Jânio, prepara com o presidente uma minuta anticolonialista, e instrui o delegado brasileiro na ONU, Ciro de Freitas Vale, a votar favoravelmente à proposta afro-asiática sobre Angola. No entanto, o embaixador brasileiro em Lisboa, Francisco Negrão de Lima, defensor da política colonial portuguesa, age em conluio com o ministro dos Negócios Estrangeiros português, Marcelo Mathias, repassando ao presidente brasileiro, por telegrama, o pedido de Mathias para que o Brasil se abstivesse. Mathias argumenta que a resistência do governo português objetivava fundar em Angola uma civilização luso-africana que garantisse a convivência de todos, sem exclusão dos elementos portugueses da sociedade angolana. Segue-se que o embaixador português, Manuel Rocheta, reúne-se com Jânio 340 DÁVILA, Jerry, op. cit., p. 49.

341 THE SITUATION in Angola, New York, 20 Apr. 1960, disponível em: <http://www.un.org/en/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/RES/1603(XV)>, acesso em: 15 Jun. 2018. As resoluções da Assembleia Geral das Nações Unidas podem ser acessadas em: <http://www.un.org/en/sections/documents/general-assembly-resolutions/>.

342 SANTOS, Aurora, A organização..., p. 133. 343 Ibidem, p. 132.

344 GIBSON BARBOZA, Mário, Na diplomacia, o traço todo da vida, 2. ed., Rio de Janeiro, Francisco Alves, 2002

apud DÁVILA, Jerry, op. cit., pp. 125-127; e ARINOS FILHO, Afonso, Diplomacia independente: um legado de Afonso Arinos, São Paulo, Paz e Terra, 2001 apud DÁVILA, Jerry, op. cit., pp. 125-127.

em Brasília, convencendo-o a mudar o voto do Brasil para uma abstenção, segundo o relato de Gibson. Um inconformado Afonso Arinos ouve a confirmação presidencial da mudança de voto. Jânio diz ao ministro Arinos que chegou a chorar quando Rocheta descreveu a difícil posição que o Brasil estava criando para Portugal.345

A informação de que Jânio teria chorado ao ouvir a exposição de Rocheta indica a sua suscetibilidade à argumentação e à abordagem portuguesa, de forte teor sentimental e ideológico. Rocheta certamente terá falado – como o fez Mathias – de democracia racial, integração racial, civilização luso-africana, etc.

Esses eram valores em que Jânio acreditava, nos quais baseava a própria defesa que fazia do anticolonialismo. Em artigo de 1961 à revista Foreign Affairs, Jânio defendia a adoção de uma posição anticolonialista pelo Brasil, inclusive quanto ao colonialismo português. Segundo Jânio, esta posição seria coerente com o caráter mestiço da nação brasileira. Ele acreditava que o país era “o exemplo mais bem-sucedido de coexistência e integração racial que a história já conheceu”, estando apto a “dar às nações do continente negro um exemplo da ausência total de preconceito racial”.346 Desse modo, a justificativa do anticolonialismo de Jânio era uma ideologia que, ao fim e

ao cabo, tornava-o vulnerável ao discurso colonialista português – e que, além disso, não correspondia à realidade, pois as desigualdades raciais do Brasil eram (e são) imensas, com os brancos concentrando o poder político e econômico, e a população negra e indígena sofrendo toda sorte de privações e discriminações.

Com a saída prematura de Jânio, que renuncia em agosto de 1961, o próximo presidente brasileiro a ter de se posicionar sobre o pleito independentista africano é João Goulart. Jango, como era conhecido, seria destituído pelo golpe militar de 1º de Abril de 1964. Antes disso, sob a sua presidência, o Brasil vota favoravelmente a duas resoluções contra o colonialismo português aprovadas na ONU: a Resolução nº 1699, de 19/12/1961, e a Resolução nº 1742, de 30/1/1962. Porém, o país opta pela abstenção nas votações das resoluções nos 1807 e 1819, aprovadas na ONU

em dezembro de 1962. Um ano depois, em dezembro de 1963, abstém-se na votação da Resolução nº 1913.347

As abstenções em dezembro de 1962 vieram na sequência de conversas realizadas em agosto daquele ano entre o embaixador brasileiro em Portugal, Negrão de Lima, e o ministro dos Negócios Estrangeiros português, Franco Nogueira. Na ocasião, o Brasil fora seduzido pela proposta de uma Comunidade Luso-Brasileira, com facilidades econômicas para o país sul-americano nas colônias 345 DÁVILA, Jerry, op. cit., pp. 126-127.

346 QUADROS, Jânio, “Brazil’s New Foreign Policy”, Foreign Affairs, v. 40, n. 1, 1961, pp. 19-27 apud DÁVILA, Jerry, op. cit., pp. 50-51.

portuguesas.348 Quanto à abstenção de dezembro de 1963, o Estado brasileiro explicaria a posição

assumida na XVIII Sessão da Assembleia Geral da ONU em relatório lido pelo senador Antônio Carlos Konder Reis, em nome dos senadores que estiveram na ONU como observadores. O relatório foi publicado no Diário do Congresso Nacional de 16 de maio de 1964, já após o golpe militar.349 No item 41 do relatório, o Brasil explicará que seguirá firme na defesa do princípio

anticolonialista; contudo, no caso de Portugal, optará pelo caminho da “persuasão”, não da “agressão”, conduzindo a questão “convenientemente”. Entre os fatores a serem levados em consideração no trato da questão colonial portuguesa, em primeiro lugar está a “vinculação histórica, étnica e afetiva com Portugal”. O segundo fator listado é a importância dos territórios portugueses na África para a segurança nacional brasileira. O terceiro ponto a se considerar é a situação econômica dos países africanos após a independência. Em quarto e último lugar, aventa-se a perspectiva de o Brasil expandir-se economicamente na Europa por intermédio de Portugal.350

É de se observar que o primeiro fator é o único que se apresenta operativo e coerente com o comportamento demonstrado pelo Brasil diante do problema. A evocação à segurança nacional brasileira, listada no segundo fator, deve ser entendida como um esforço de vincular a questão colonial à Guerra Fria e à ameaça comunista. Quanto ao terceiro, não consta que os países recém- independentes ou os povos em luta contra o colonialismo tenham pedido a opinião do Brasil, ou de qualquer outro país, sobre a sua situação econômica. Por fim, ao que tudo indica, as perspectivas econômicas mencionadas no quarto ponto não se concretizaram: dez anos depois, em janeiro de 1974, Gibson Barboza concluirá, em carta enviada ao presidente Emílio Médici (1969-1974), para apreciação pelo Conselho de Segurança Nacional, que o apoio brasileiro ao colonialismo português representava um ônus à economia nacional, principalmente no setor de importação de petróleo, não tendo trazido qualquer dividendo econômico ou político para o país latino-americano.351

Aliás, já desde a década de 1950, no governo de Getúlio Vargas, o Brasil apoiava o colonialismo na África em prejuízo da sua própria economia, por razões ideológicas. Segundo Letícia Pinheiro, a lusofilia e a aliança com o bloco ocidental anticomunista falavam mais alto que a concorrência representada pelo colonialismo na África em produtos como o cacau e o café. O colonialismo na África também fazia concorrência ao Brasil no setor de recepção de investimentos estrangeiros, uma vez que as colônias africanas gozavam de políticas preferenciais de assistência econômica e técnica. Mesmo assim, o desejo de manter a coesão no bloco anticomunista, bem como a lealdade a Portugal e a outros países ocidentais, fazem o Brasil de Vargas atuar a favor das 348 SANTOS, Aurora, A organização..., p. 203.

349 Diário do Congresso Nacional, Brasília, 16 Maio 1964, disponível em:

<https://legis.senado.leg.br/diarios/PublicacoesOficiais>, acesso em: 21 Jun. 2018, pp. 1193-1201. 350 Ibidem, p. 1196, item 41.

potências coloniais na ONU.352 E, já que fizemos este recuo no tempo, lembremos que em 1960, no

governo de Juscelino Kubitschek, o Brasil, embora tenha votado favoravelmente à Resolução da Descolonização, absteve-se de apoiar a autodeterminação da Argélia, e votou contra a Resolução nº 1542, que obrigava Portugal a prestar informações sobre as suas colônias.353

Após o golpe militar, como observa Pinheiro, à tradicional estima do Brasil por Portugal soma-se a afinidade política entre dois regimes autoritários.354 A partir daí, verificam-se por parte do

Brasil apenas votos contrários ou abstenções às resoluções aprovadas contra o colonialismo português na ONU. Em 1966, o chanceler Juracy Magalhães envia, em ofício secreto, instruções ao embaixador brasileiro designado para Lisboa, Carlos Silvestre de Ouro Preto. Para além de exaltar as relações luso-brasileiras e o papel que os portugueses tiveram na construção do Brasil, Magalhães diz a Ouro Preto que questionar o colonialismo português equivaleria a condenar a obra portuguesa no Brasil.355

Em 1967, o Brasil chegará a realizar exercícios conjuntos com a Marinha portuguesa na costa angolana – um grau de comprometimento muito elevado do Brasil com o colonialismo português. Os exercícios ocorrem às vésperas da posse presidencial do general Artur da Costa e Silva (1967-1969), que declara que o seu governo daria total apoio a Portugal na ONU. No Rio de Janeiro, as diplomacias de Argélia, Gana, Senegal e Egito protestam veementemente ao chefe de gabinete do Itamaraty, Pio Correia. Este, um fiel aliado de Portugal, não dá importância às reclamações dos diplomatas africanos. Na sequência, os embaixadores de Senegal e Gana enviam uma declaração à imprensa expressando as suas preocupações. Por conta deste ato completamente razoável e legítimo, são tachados de “inexperientes” pelo chanceler brasileiro Juracy Magalhães; de “péssimos” e “inexperientes” pelo jornal O Globo; e de “imaturos” e “desrespeitosos” pelo Jornal

do Brasil. O escritor Rubem Braga sai em defesa dos africanos no Diário de Notícias, criticando a

atitude do Brasil diante do colonialismo português. Na África, o episódio repercute, com a imprensa da Zâmbia e da Nigéria defendendo os diplomatas africanos e criticando o Brasil. O resultado da pressão dos “inexperientes” diplomatas africanos é que o Brasil recusa novos convites de Portugal para exercícios navais conjuntos. Em 1969, o chanceler Gibson Barboza, visando dissuadir o presidente Médici de autorizar novos exercícios conjuntos, por conta dos prejuízos diplomáticos que eles causariam, apela para a lógica da Guerra Fria, alegando que as manobras poderiam levar a

352 PINHEIRO, Letícia, “‘Ao vencedor, as batatas’: o reconhecimento da independência de Angola”, Estudos

históricos, Rio de Janeiro, v. 1, n. 39, 2007, pp. 83-120, disponível em:

<http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2562>, acesso em: 23 Jun. 2018. 353 Ibidem, p. 87.

354 Ibidem,p. 88.

que os países africanos cedessem bases navais à União Soviética. Assim, os exercícios, com os quais a Marinha brasileira já tinha concordado, são cancelados.356