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2 RECONSTITUINDO INCERTEZAS: NACIONALISMO E MARXISMO NO AMÍLCAR CABRAL PRÉ-REVOLUCIONÁRIO (1948-1960)

2.7 Formação do ideário antirracista

O ideário antirracista de Amílcar Cabral é influenciado pelas correntes dos movimentos africanistas com que ele tem contato nos anos universitários. Lembremos que, em 1949, Cabral toma conhecimento do movimento Negritude, por meio da Anthologie de la Nouvelle Poésie Nègre

et Malgache, organizada no ano anterior por Léopold Sédar Senghor.268 Assim Cabral transmite a

Maria Helena, em 8/1/1949, o fascínio que tal publicação lhe provoca:

267 DIOP, Cheikh Anta, op. cit., p. 10, tradução livre. Trecho original: “Il devient donc clair que c’est seulement

l’existence d’États Africains Indépendants fédérés au sein d’un Gouvernement central démocratique, des côtes libyques de la Méditerranée au Cap, de l’Océan Atlantique à l’Océan Indien, qui permettra aux Africains de s’épanouir pleinement et de donner toute leur mesure dans les différents domaines de la création, de se faire respecter – voire aimer – de tuer toutes les formes de paternalisme, de faire tourner une page de la philosophie, de faire progresser l’humanité en rendant possible une fraternisation entre les peuples qui deviendra alors d’autant plus facile qu’elle s’établira entre États indépendants au même degré et non plus entre dominants et dominés.”

268 A antologia é publicada em Paris, em 1948, pelas Presses Universitaires de France (PUF), com prefácio de Jean- Paul Sartre. Senghor, intelectual, poeta e político, seria presidente do Senegal de 1960 a 1980.

Coisas que nem sonhava, poesias maravilhosas escritas por negros de todas as partes do mundo francês, poesias falando da África, dos escravos, dos homens, da vida e das aspirações dos homens. Sublime… infinitamente humano… Muito me traz este livro e, entre muito, a certeza de que o Negro, o tão explorado Negro, está acordando em todo o mundo. E não é um acordar egoísta, como tantos de que fala a História. Não. Um acordar universal, de braços abertos para todos os Homens de boa vontade. Sem ódio, mas com amor, um amor como só a escravidão pode alicerçar na alma de um ser humano. Porque, como diz Jean-Paul Sartre, “la négritude n’est pas

un état, est amour”.269

Outra fonte de influência para as elaborações de Cabral sobre a igualdade racial é a produção da ONU sobre o assunto, entidade cujas atividades e publicações ele acompanha pelo menos desde 1948. A ONU goza de elevado prestígio e confiança por parte de Cabral, que a associa a alguns dos valores pelos quais ele mais prezava, como a ciência, a educação e a não discriminação racial.

Uma amostra da confiança que Amílcar depositava na ONU é o trecho de uma carta de 29/8/1948, em que ele alertava Helena para que tivesse cuidado com as notícias dos jornais, que muitas vezes eram falsas, devido a “interesses em jogo”. Dá como exemplo uma notícia falsa de que o Conselho Econômico e Social da ONU teria emitido um parecer contrário ao casamento entre indivíduos de cor ou religião diferentes. Amílcar diz não ter acreditado na notícia ao lê-la num diário, porquanto naquele conselho trabalhavam “dos maiores pensadores da atualidade”. Qual não foi a sua surpresa, alguns dias depois o conselho veio a público desmentir a notícia publicada.270

Em carta de 28/8/1950, Amílcar transcreve, em francês, trechos do artigo do antropólogo norte-americano Alfred Métraux, publicado no Le Courrier, jornal da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), em que Métraux afirma que o racismo se alimenta de noções cientificamente falsas e de dogmas irracionais. Amílcar conta que a mesma edição trazia “uma declaração feita pelos maiores sábios na matéria, acerca do racismo”, os quais concluíam que características genéticas não explicam as diferenciações entre povos ou grupos étnicos, mas sim a história cultural de cada grupo. Os especialistas afirmavam que os homens tinham natureza idêntica, e que a personalidade e o caráter não eram reflexo da raça. Para Amílcar, esta era “a voz da Ciência e da verdade”.271

A Unesco também é mencionada no artigo de Amílcar Cabral A propósito da educação, publicado em junho de 1951 no boletim Cabo Verde.272 Neste artigo, Cabral defende que a educação

269 ANDRADE, Mário, op. cit., pp. 43-44. Essa carta de Cabral a Maria Helena é uma daquelas de que só se conhecem os fragmentos publicados por Mário de Andrade, não constando da coletânea publicada pela editora Rosa de Porcelana.

270 CABRAL, Iva; SOUTO, Márcia; ELÍSIO, Filinto (Org.), op. cit., p. 195. Nessa carta, à qual voltaremos adiante, Cabral discorre sobre a situação na África do Sul.

271 Ibidem, p. 312.

272 CABRAL, Amílcar, “A propósito da educação”, Cabo Verde: Boletim de Propaganda e Informação, ano 2, n. 21, Jun. 1951, disponível em: <http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_44504>, acesso em: 23 Jan. 2018.

é a base fundamental para a emancipação do homem, e que todos os seres humanos, independentemente da cor, devem ter um mínimo de instrução, sem a qual não poderia haver uma coletividade educada. Cabral lista os fins que a educação deveria perseguir, segundo os técnicos da Unesco, no sentido de promover o desenvolvimento individual de homens e mulheres, bem como o desenvolvimento coletivo de uma dada sociedade. Recordemos que o Estado Novo – tanto os seus líderes quanto os segmentos da sociedade que o apoiavam – tinha um discurso e uma prática fortemente obscurantistas e antieducacionais, não só para as colônias, mas também para a metrópole.273 O artigo de Cabral, escrito em réplica a um artigo de José Lopes, combatia uma

concepção de educação desconectada dos problemas sociais, e baseada nos valores da hierarquia, do temor e da obediência – valores apreciados pelo Estado Novo, e que Cabral associava à “psicologia do homem-servo”.274 A linha argumentativa de Cabral neste artigo é situar as suas ideias – de

ilustração, emancipação e igualdade racial – no campo da modernidade, com o uso repetido do advérbio hoje no início de frases ou orações, como a seguir: “Hoje numa colectividade educada, ninguém se admira ou pasma de ver uma criança, ‘mesmo’ de raça africana, de côr preta, que lê ou escreve uma carta”.275 As ideias contrárias à educação defendida por Cabral são situadas no passado,

como no trecho em que ele utiliza a expressão “Longe vai o tempo” para introduzir ideias com as quais não concorda, empregando no parágrafo a seguir o advérbio “Hoje” para apresentar a sua concepção de educação.276 A Unesco seguramente fazia parte deste mundo moderno com que Cabral

se identificava, e aparecia no artigo como um elemento conferidor de autoridade, por ser uma organização de prestígio internacional, da qual Portugal aspirava fazer parte.

Nas leituras marxistas que fazia no período, Cabral também vai buscar inspiração para as suas formulações antirracistas. Não encontramos, nos escritos pré-revolucionários de Cabral, citações diretas a Marx, Engels ou Lênin. Tampouco Amílcar menciona, nas cartas publicadas, possuir ou ler obras destes autores. Isto pode ser explicado pelo ambiente repressivo vigente em Portugal; se bem que, em carta de 10/10/1955 enviada a Maria Helena,277 Amílcar comenta estar

lendo Os Subterrâneos da Liberdade, romance de Jorge Amado – leitura oficialmente proibida pelo regime, mas, possivelmente, não muito perseguida na prática.278

273 O leitor pode encontrar provas disto ao longo do trabalho de CARVALHO, Maria Adriana, op. cit. 274 CABRAL, Amílcar, “A propósito da educação”, p. 25.

275 Idem. Grifo de Cabral para indicar os trechos transcritos do artigo de José Lopes. 276 Idem.

277 CABRAL, Iva; SOUTO, Márcia; ELÍSIO, Filinto (Org.), op. cit., pp. 372-374.

278 Por exemplo, num jornal escolar da cidade do Porto de 1953, encontramos um estudante (José Augusto Seabra) citando Jorge Amado e Graciliano Ramos como autores brasileiros que influenciaram a literatura portuguesa a buscar no povo o público e o assunto para os seus escritos. Aparentemente, o jovem articulista liceal não se preocupava com a circunstância de estar a citar alguns autores proibidos pelo regime. A começar pelo título – Para

Sem embargo, algumas das suas formulações sobre o racismo no período 1948-1950 dão indícios de que Cabral estava habituado a ler e debater ideias deste campo político-filosófico, aplicando conceitos do materialismo histórico às suas teorizações. Em 15/4/1949, Amílcar diz a Maria Helena:

Não é a existência de uma raça ou de um grupo étnico ou do que quer que seja que define ou condiciona o comportamento de um agregado humano. Não. São, isso sim, o meio social e os problemas resultantes da reacção a esse meio e as reacções dos próprios homens envolvidos. Tudo isso define o seu comportamento. Dito de outra maneira: um grupo de homens – seres humanos – comporá uma “raça” ou “grupo étnico” ou outra coisa, na medida em que enfrentam problemas comuns e lutam por aspirações comuns.279

Nesse trecho, Cabral rejeita uma explicação biologizante e naturalizante para os comportamentos humanos. Ele considera que os indivíduos, os grupos e as relações humanas são produtos da história humana, produzida pelos próprios seres humanos ao responderem os desafios colocados pelo meio em que vivem. Ainda, seria a lida e a luta em comum os elementos a darem coesão aos agrupamentos humanos.

Em outra carta, de 25/4/1948, Cabral declara que os preconceitos nascem “de condições criadas pelo próprio homem”.280 Isto é, as ideias, os preconceitos, não surgem de forma inata na

subjetividade das pessoas, mas resultam de uma realidade em que o homem é a principal força criadora.

Em 29/8/1948, Amílcar responde a uma carta de Helena sobre a situação da África do Sul. Àquela altura, o país africano instaurava o apartheid, e Helena envia a Amílcar um recorte de jornal com tal notícia. A questão da África do Sul preenche quase oito das dez laudas manuscritas por Amílcar, que narra o histórico das relações raciais no país e descreve as forças políticas envolvidas naquela conjuntura.281 Num trecho desta carta, Amílcar assevera que a situação na África do Sul

compreende-se “tendo em vista a base de todos os conflitos humanos: a razão económica.” Ele explicava: para os brancos da África do Sul, não era conveniente que “os filhos dos negros, evoluídos, instruídos,” se tornassem concorrentes dos seus filhos “na luta pela vida”. Desejavam manter a posição de mando para o branco, e de servidão para o negro; de acesso à “civilização” para os brancos, de “condições primitivas” para os negros.282

um conceito humano de cultura –, o texto do então estudante portuense assemelha-se em muito com os escritos

cabralinos. Ver SEABRA, José Augusto, “Para um conceito humano de cultura”, O mensageiro – jornal académico

do Liceu de Dom Manuel II, n. 11, 1953, p. 6, disponível em: <http://hemerotecadigital.cm-

lisboa.pt/Periodicos/Omensageiro/N11/N11_item1/P6.html>, acesso em: 19 Maio 2018. 279 Fragmento reproduzido em ANDRADE, Mário, op. cit., p. 45.

280 CABRAL, Iva; SOUTO, Márcia; ELÍSIO, Filinto (Org.), op. cit., p. 91. 281 Ibidem, pp. 193-206.

Dois anos depois, em 28/8/1950, novamente estimulado por um recorte de jornal enviado por Helena, Amílcar escreve sobre incidentes de discriminação racial ocorridos no Brasil: Katherine Dunham, bailarina, negra, tivera a sua entrada negada num hotel em São Paulo, o mesmo ocorrendo a Joe Louis, campeão de boxe, igualmente negro.283 Uma das considerações que Amílcar faz nesta

carta é que o problema do racismo não seria solucionado por meio de leis (normas jurídicas) como as que eram propostas no Brasil naquele momento.284 Cabral argumentava que a existência de

legislação antirracista em muitos estados norte-americanos não impedia que o negro fosse “linchado ou escorraçado” naquele país. Em Portugal, prosseguia Amílcar, apesar de a Constituição ser “dos mais belos documentos da igualdade dos homens”, o negro era afastado do Exército, da Marinha, da Magistratura e de outros órgãos. De acordo com Amílcar, a legislação do gênero pouco mais fazia do que ameaçar os racistas com menor poder econômico. Concluía Cabral: “Outras serão as [leis] que hão de extirpar de vez e para sempre o preconceito – e essas terão de corresponder a uma alteração profunda do complexo económico-social do Mundo, base, afinal, dos preconceitos.”285

A defesa de que é na realidade socioeconômica que se deve intervir para se conseguirem mudanças profundas na forma de se relacionar dos seres humanos é uma proposta fundamental do comunismo marxista. Para Marx, a tarefa de que os comunistas devem ocupar-se é transformar o

mundo. E transformar o mundo é, essencialmente, modificar a vida terrena dos homens, a vida

econômica, material e real do mundo existente.286 Outras correntes filosóficas materialistas haviam

afirmado que as circunstâncias materiais condicionavam a ação humana; a novidade do marxismo é defender que as circunstâncias podem ser e são transformadas pela ação humana.287 Cabral articula

estas ideias ao afirmar que os preconceitos originam-se de circunstâncias materiais criadas pelos homens e que podem ser alteradas por estes.

Embora os primeiros marxistas, Marx e Engels, pouco ou nada tenham elaborado acerca do problema do racismo, Cabral conseguiu extrair da filosofia proposta por estes autores princípios que lhe pareceram úteis para a causa antirracista: supremacia do elemento histórico sobre o biológico; 283 CABRAL, Iva; SOUTO, Márcia; ELÍSIO, Filinto (Org.), op. cit.pp. 312-313.

284 Calculamos que Cabral se referisse à Lei Afonso Arinos, aprovada no ano posterior, 1951. Ainda em vigor no Brasil, esta lei penaliza atos resultantes de preconceitos de raça e de cor. Ver: BRASIL, Lei nº 1.390, de 3 de julho de 1951, disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1950-1959/lei-1390-3-julho-1951-361802- normaatualizada-pl.html>, acesso em: 23 Nov. 2018.

285 CABRAL, Iva; SOUTO, Márcia; ELÍSIO, Filinto (Org.), op. cit., p. 313.

286 Ver, entre outros, MARX, Karl; ENGELS, Friedrich, Feuerbach. Oposição das Concepções Materialista e

Idealista – capítulo primeiro de A Ideologia Alemã, tradução de Álvaro Pina, Lisboa, Avante, 1982 [1845-1846],

disponível em: <https://www.marxists.org/portugues/marx/1845/ideologia-alema-oe/>, acesso em: 19 Abr. 2018. 287 Ver MARX, Karl, Teses sobre Feuerbach, tradução de Álvaro Pina, Lisboa, Avante, 1982 [1845], disponível em:

centralidade da análise e da ação no ser humano; sustentação econômica e material da realidade; e necessidade de transformar a realidade.

Sustentamos que Amílcar não poderia desenvolver as ideias filosóficas externadas nessas cartas sem contato com a literatura marxista. Conquanto seja possível que pessoas ou grupos de pessoas tenham ideias semelhantes, em épocas e locais diferentes, sem terem tido contato umas com as outras, para que isto ocorra é preciso que estejam sob condições e influências semelhantes. Ora, a gênese das ideias do marxismo remete à filosofia alemã do século XIX, articulando correntes do materialismo, do idealismo e da dialética. Cabral recepciona as teorizações marxistas no contexto da circulação destas ideias nos locais por onde andou.