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3 O LUGAR DAS IDEOLOGIAS NO CONTEXTO INTERNACIONAL EM QUE AMÍLCAR CABRAL LUTOU (1960-197)

3.2 Angola arde – o colonialismo português sob ataque (1961)

Em 1961, alguns episódios fazem com que a questão colonial portuguesa adquira repercussão internacional. Em 22 de janeiro, Henrique Galvão, opositor ao regime do Estado Novo, sequestra o navio português Santa Maria, declarando como uma das suas reivindicações a autodeterminação para as colônias portuguesas na África. Os meios de comunicação internacionais noticiam o ato, dando visibilidade à questão colonial portuguesa.316 O sequestro ocorre no primeiro

dia de governo do presidente americano Kennedy. Longe de ser casual, a coincidência de data havia sido calculada por Galvão e seu parceiro Humberto Delgado, os quais também tinham em conta a proximidade da subida ao poder do presidente brasileiro Jânio Quadros. Kennedy não condena o 313 SANTOS, Aurora, A organização..., pp. 107-108.

314 SOUSA, Julião, “A cisão sino-soviética e as suas implicações nos movimentos de libertação das antigas colónias portuguesas de África”, in VIEIRA, Cristina et al. (Coord.), Portugal-África: mitos e realidades vivenciais e

artística, Covilhã, UBI, 2012, p. 223.

315 Ibidem, p. 221.

sequestro, e a sua reação neutra é recebida como uma afronta por Portugal, que protesta junto ao embaixador americano em Lisboa. A este é lembrado que o acordo sobre a utilização da base aérea dos Açores pelos americanos estava para expirar em 1962.317

Kennedy tem uma postura favorável à descolonização, elegendo o apoio à autodeterminação como um fundamento da sua política externa. Ainda como senador, em 1957, Kennedy criticara o presidente Eisenhower por sua postura neutra diante da guerra da França na Argélia. Kennedy propugnava uma solução negociada que levasse à autodeterminação da Argélia.318 Na avaliação do

presidente Kennedy, apoiar a construção de Estados africanos independentes era a melhor forma de conter a expansão comunista e soviética no continente e atrair os dirigentes das novas nações para a área de influência americana.

Em janeiro, semanas antes do sequestro do navio Santa Maria, povos angolanos submetidos ao cultivo obrigatório de algodão haviam se revoltado na região da Baixa do Cassange, na província de Malanje. Embora a revolta tenha sido reprimida pela força militar portuguesa por meio de um massacre,319 os acontecimentos não receberam grande repercussão internacional.320

A data de 4 de fevereiro de 1961 é considerada o início da Guerra Colonial portuguesa, quando centenas de angolanos tomam de assalto as prisões da cidade de Luanda, pretendendo libertar presos políticos. Os assaltos recebem a cobertura dos meios de comunicação estrangeiros, que estavam em Angola aguardando a anunciada chegada de Henrique Galvão no navio Santa Maria.321 Galvão, no entanto, com o apoio da Marinha Americana, ruma para o Brasil.322 O recém-

empossado presidente Quadros, propugnador da Política Externa Independente, concede asilo político a Galvão, sob protestos das autoridades portuguesas.323 Os assaltos às cadeias são retaliados

pelas forças portuguesas com novas matanças e perseguições em Angola, desta vez sob a atenção da mídia internacional.324

Em 15 de março de 1961, a União dos Povos de Angola (UPA) lança ataques no Norte de Angola. Com catanas (facões) e outros armamentos rudimentares, os rebeldes matam indiscriminadamente homens, mulheres e crianças, europeus e africanos. Em depoimento recente, pouco antes de morrer, Holden Roberto (1923-2007), dirigente máximo da UPA à época da rebelião, afirma que a violência popular – que ele classifica como uma reação à opressão colonial – fugiu ao 317 SCHNEIDMAN, Witney, op. cit., p. 47.

318 Ibidem, p. 44.

319 Ver FURTADO, Joaquim, “O ano que marca a história”, in A guerra. Produção: RTP. Lisboa, Correio da Manhã, 2007. Série documental, episódio 7, 1 DVD (66 min.).

320 SANTOS, Aurora, A organização..., p. 120. 321 Ibidem, p. 119.

322 SCHNEIDMAN, Witney, op. cit., p. 48. 323 DÁVILA, Jerry, op. cit., p. 49.

controle da organização. O ataque havia sido orientado por Frantz Fanon (1925-1961), célebre teórico martinicano, dirigente da Frente de Libertação Nacional (FLN) argelina, e apoiador da UPA.325 Os meios militares portugueses, e mesmo elementos civis armados, respondem ao ataque

matando africanos tidos como suspeitos, cujas cabeças eram arrancadas e exibidas pelos portugueses em Angola.326

Os acontecimentos não são plenamente noticiados em Portugal e nas suas colônias. Lembrando-se hoje dos fatos do passado, Álvaro Silva Tavares, governador-geral de Angola em 1960-1961, conta que foi orientado a não falar ou deixar falar sobre os incidentes durante 24 horas, pois Salazar não queria que o ataque da UPA repercutisse e chegasse à ONU.327

Mas, aqueles dias de março de 1961 marcariam a entrada definitiva da discussão sobre as colônias portuguesas na ONU. Em 15 de março de 1961, no Conselho de Segurança (CS) da ONU, os Estados Unidos votam favoravelmente à proposta de resolução sobre a crise em Angola apresentada por Libéria, Ceilão e República Árabe Unida (Estado formado por Egito e Síria). Num raro momento de convergência, a União Soviética e os Estados Unidos votam favoravelmente à resolução. Todavia, a proposta não é aprovada, devido à abstenção de seis países, inclusive o Reino Unido e a França.328

Mesmo sem resultar na aprovação de uma resolução, a atitude ousada dos Estados Unidos faz estremecer as relações com Portugal. Além de desagradar aos governantes portugueses, a postura anticolonialista americana aguça o nacionalismo imperial da população portuguesa, assim como os sentimentos antiamericanos. Na sequência do voto americano, colonos portugueses em Angola vão às ruas em protesto, chegando a atirar o carro do cônsul americano à Baía de Luanda. Em Lisboa, também ocorrem manifestações de defesa do ultramar português, onde se leem faixas provocatórias aos americanos, dizendo-lhes que libertem o Alasca e devolvam a América para os índios.329

Submetido à pressão internacional, Portugal faz da sua intransigência perante a questão colonial uma importante arma de defesa. Adicionalmente, faz algumas reformas na sua política ultramarina, designadamente a revogação do Estatuto do Indígena, em 1961. Contudo, Portugal não aceita discutir qualquer proposta de autodeterminação para os territórios africanos sob o seu controle, nem para o curto prazo, nem para o longo prazo. Utiliza a base aérea nos Açores como um 325 Depoimento de Holden Roberto a FURTADO, Joaquim, “Angola, dias de morte”, in A guerra. Produção: RTP.

Lisboa, Correio da Manhã, 2007. Série documental, episódio 1, 1 DVD (54 min.).

326 Ver FURTADO, Joaquim, “Massacres contra chacinas”, in A guerra. Produção: RTP. Lisboa, Correio da Manhã, 2007. Série documental, episódio 3, 1 DVD (57 min.).

327 Depoimento de Álvaro Silva Tavares a FURTADO, Joaquim, “Angola, dias de morte”, 2007. 328 SCHNEIDMAN, Witney, op. cit., pp. 49-50.

eficaz meio de responder às pressões dos Estados Unidos. Aproxima-se da França e da Alemanha Ocidental, países simpáticos à causa portuguesa – na avaliação de Witney Schneidman, a França desejava manter a África ligada à Europa e limitar a presença americana no continente, enquanto a Alemanha Ocidental seria sensível ao argumento anticomunista e, além disso, estaria alheia à pressão anticolonialista afro-asiática, por não ser membro da ONU.330

Os opositores declarados do colonialismo português eram os países africanos e asiáticos, fortemente anticolonialistas, bem como os países socialistas. Os eventos em Angola chamam atenção de Khrushchev, que passa a ver as colônias portuguesas como um dos pontos de disputa de influência entre os blocos socialista e capitalista. Os movimentos de libertação das colônias portuguesas receberão uma atenção da União Soviética que, embora menor que a dispensada ao Oriente Médio ou ao Vietnã, será decisiva para o esforço independentista africano. Datam de 1961 os primeiros pacotes de auxílios soviéticos, tchecoeslovacos e búlgaros para o MPLA; em 1961, a Tchecoslováquia começa a fornecer armas ao PAIGC; e, em 1963, os soviéticos começariam a apoiar a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo).331 Ainda em 1961, o PAIGC consegue

assistência técnica e bolsas de estudo da Alemanha Oriental; e em 1962 e 1963, contribuições financeiras da União Soviética.332 No lado adversário, Portugal utilizava armamento estadunidense

contra os africanos, não obstante as intenções de Kennedy de apoiar a independência africana.333

3.3 No meio do oceano havia uma base aérea: Açores, uma pedra no caminho