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2 RECONSTITUINDO INCERTEZAS: NACIONALISMO E MARXISMO NO AMÍLCAR CABRAL PRÉ-REVOLUCIONÁRIO (1948-1960)

2.8 Um nacionalista africano dentro do aparelho colonial português

Na Nota Prévia do artigo A agricultura na Guiné – algumas notas sobre as suas

características e problemas fundamentais,288 publicado na revista lisboeta Agros em 1959, Cabral

afirma ser guineense. O que hoje pode parecer evidente – aliás, já na nota prévia Cabral utiliza o advérbio “evidentemente”289 –, uma vez que Amílcar nasceu e lutou na Guiné, nem sempre o foi.

Tendo deixado a Guiné em 1932, aos 8 anos de idade, só retorna à terra natal vinte anos depois, em 1952, como engenheiro agrônomo. Cabo Verde, onde crescera, tinha sido uma referência patriciana mais forte até então. O artigo apresentado na Agros terá por base os dados observados em três anos de exercício como agrônomo na Guiné (1952-1955), em especial os resultados do recenseamento agrícola de 1953 efetuado por Cabral e Maria Helena Rodrigues.

Adotando a nomenclatura oficializada pelo regime português em 1951, Cabral abandona o termo “colônias” e emprega “territórios que constituem o Ultramar Português”.290 Não utiliza o

termo colonialismo, que ainda usava em 1954, como a seguir: “o colonialismo introduz em África um novo sistema de produção (...) Mantém, contudo, o sistema itinerante (...) Das contradições criadas resulta que, dia a dia, se acentua a devastação da terra africana”.291 Em 1959, Cabral

descreve o mesmo processo, mas evitando o termo “colonialismo”: “Houve na agricultura 288 CABRAL, Amílcar, “A agricultura na Guiné – algumas notas sobre as suas características e problemas fundamentais” in Estudos agrários de Amílcar Cabral, Lisboa, IICT, Bissau, INEP, 1988, pp. 525-535. Publicado originalmente na revista Agros, Lisboa, v. 43, n. 4, 1959, pp. 335-350.

289 “Evidentemente, o facto de, além de ser guineense, ter estado na Guiné durante três anos, como agrónomo (...)”, CABRAL, Amílcar, “A agricultura na Guiné...”, p. 525.

290 Ibidem, p. 525.

guineense uma transformação do modo de produção, à qual não se fez corresponder uma alteração das técnicas culturais. Resultou daí uma contradição que se vem manifestando na destruição da terra cultivável, pelo agravamento progressivo dos defeitos do sistema itinerante”.292 Em 1959, já eram

independentes o Gana (1957) e a Guiné-Conacri (1958), entre outros países africanos. O clima de condenação ao colonialismo aumentava, e a palavra que o designava adquiria carga de denúncia. A edição que recebeu a contribuição de Cabral era toda dedicada à agricultura ultramarina portuguesa, em sintonia com o uso da investigação colonial, em especial no campo das ciências agrárias, como instrumento para a preservação do império português.

Na primeira menção à diversidade cultural da população guineense, Cabral se referirá a “‘povos’ ou ‘raças’” da Guiné.293 Após essa primeira citação, utilizará apenas o termo povos, sempre

entre aspas. O que estes povos teriam de idêntico é que todos se dedicavam à agricultura e estavam sujeitos à mesma “situação político-social”294 – nas entrelinhas, esta situação era a submissão ao

colonialismo. A forma de explorar a agricultura, contudo, apresentava variações: diferentes costumes, instrumentos de trabalho, relações de produção e de propriedade, espécies cultivadas etc.

Além de descritivo, o texto é reivindicativo. Cabral critica a burocracia dos Serviços Agrícolas, que não serve o agricultor indígena, “o elemento essencial da economia da Guiné”. Aponta a ausência de investigação e experimentação; de assistência técnica; e de técnicos. Cabral afirma que, exceto pelo fornecimento de parte das sementes de amendoim ao agricultor indígena, “não existe o menor vestígio de assistência técnica agrícola na Guiné.”295 Em outra passagem,

Cabral enuncia:

Os “povos” da Guiné são agricultores. Dessa realidade vive a Guiné: do trabalho daqueles que, secular e socialmente anónimos, com base na tradição e no conhecimento empírico do meio, cultivam a terra e são, por isso mesmo, o elemento essencial da economia guineense. A

agricultura, a tantas vezes apoucada agricultura do indígena, não é apenas a base da economia guineense: é a própria economia da Guiné. Sem ela, nem alimentação, nem comércio, nem

indústria.296

Mais do que um louvor ao trabalho do indígena, este trecho contém uma análise crítica ao empreendimento colonial português na Guiné, assentado quase exclusivamente na exploração do indigenato, sem introdução de mudanças na estrutura da economia guineense. Não obstante a realização de alguns investimentos em infraestrutura social e econômica a partir da metade da década de 1940,297 a ação colonial portuguesa na Guiné continuava limitada à exploração do

292 CABRAL, Amílcar, “A agricultura na Guiné...”, p. 533. 293 Ibidem, p. 526.

294 Idem. 295 Ibidem, p. 534.

296 Ibidem, p. 526, grifo nosso.

trabalho tradicional do indígena. Anos mais tarde, a incapacidade de Portugal desenvolver social e economicamente as suas colônias seria duramente criticada por Cabral em fóruns internacionais e em palestras internas do PAIGC.

Numa altura em que estava comprometido com a luta anticolonial, às vésperas de disputar e conquistar a liderança do movimento de libertação nacional da Guiné-Bissau e de Cabo Verde,298

Cabral faz uma lista de propostas bastante contraditórias, ou até inconciliáveis, com a natureza do colonialismo, como a valorização do preço dos produtos agrícolas no mercado e a instalação local de indústrias de transformação destes produtos.299

No final, dirigindo-se ao público especializado da revista Agros, Cabral apela aos engenheiros agrônomos para que não traiam “um princípio ético fundamental da sua profissão: o de

que devem trabalhar afincadamente, contra todos os obstáculos, pela elevação do nível de vida das populações rurais.”300

Embora os conteúdos sejam semelhantes, o texto de 1959 sobre a Guiné tem um tom menos efusivo que o de 1954 sobre a África Negra. Isto talvez denote menos esperança e menor investimento emocional na luta dentro da legalidade. Incutir certas ideias na sociedade portuguesa era importante, mas confrontar o colonialismo, se preciso com armas, parecia-lhe a via que efetivamente garantiria a libertação dos povos africanos.

298 Ver SOUSA, Julião, op. cit., parte I, cap. 5.

299 CABRAL, Amílcar, “A agricultura na Guiné...”, p. 535. 300 Idem, grifo do autor.

3 O LUGAR DAS IDEOLOGIAS NO CONTEXTO INTERNACIONAL EM QUE