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2 RECONSTITUINDO INCERTEZAS: NACIONALISMO E MARXISMO NO AMÍLCAR CABRAL PRÉ-REVOLUCIONÁRIO (1948-1960)

2.1 Cabo-verdianidade, Mundo Português e atração pela África

O artigo Algumas considerações acerca das chuvas, publicado em 1949 no boletim Cabo

Verde, versa sobre o retorno das chuvas a Cabo Verde, após quatro anos de seca. Cabral considera

este retorno um acontecimento de “significado transcendente” para Cabo Verde, onde a chuva “ultrapassa o mero significado meteorológico que poderá ter numa ou noutra terra, onde a sua ausência não implica a perda de vidas humanas”.143 Primeiramente, fala da alegria e da esperança

que as chuvas trazem para os habitantes do arquipélago, em sua vida cotidiana. De forma poética e emotiva, Cabral expressa a comoção que a chegada das chuvas provocou nos cabo-verdianos, como a seguir:

E os corações, dos novos aos velhos, pulsaram mais fortemente, sob a alegria daquela constatação. E nos olhos já baços do povo, alguns até cansados, secos de chorar as inevitáveis desgraças inerentes à crise, renasceu o brilho da vida, reflectindo a esperança que as chuvas trouxeram. E de localidade em localidade, de casa em casa, de bôca em bôca, uma frase, que se transformou no tema necessário de todas as conversas, correu o Arquipélago: “A chuva voltou! E vai chover de verdade, porque já houve cheias!” (Não importa agora analisar até onde esta afirmação está de acôrdo com a realidade científica).144

A seguir, num tom mais político e reivindicatório, menciona que o retorno das chuvas coincide com a entrada do novo governador de Cabo Verde. Manifesta esperança de que a nova administração traçará um plano de ação que garanta um bom ano agrícola para Cabo Verde, e, consequentemente, uma melhora das condições de vida da população das ilhas. Afirma que, para a consecução do plano, é fundamental “uma colaboração íntima entre as entidades responsáveis e o povo”, bem como a “elucidação, esclarecimento ou consciencialização do chamado ‘homem da rua’”.145 Cabral situa Cabo Verde dentro da comunidade do “Mundo Português”. Em alguns trechos

deste texto, emprega as expressões “povo cabo-verdiano” e “povo de Cabo Verde”, como a seguir: Ditaram as palavras que ficam escritas, aquela mesma esperança que renasceu com as chuvas, que tomou côr no verde acalentador da vegetação herbácea que cobre os vales e os montes, e que, invadindo a alma, fortaleceu a fé no destino do povo de Cabo Verde. Destino que será traçado à custa do trabalho consciente, dentro da comunidade do Mundo Português, trilhando os caminhos do Ressurgimento e do Progresso.146

Termina o artigo de forma efusiva: “Para isso e por isso [o progresso] – todos lutarão. A Bem de Cabo Verde, pelo bom nome e pela glória de Portugal”.147

143 CABRAL, Amílcar, “Algumas considerações acerca das chuvas”, Cabo Verde: Boletim de Propaganda e

Informação, ano 1, n.1, 1 Out. 1949, disponível em: <http://hemerotecadigital.cm-

lisboa.pt/Periodicos/CaboVerde/N01/CaboVerde_item1/P3.html>, acesso em: 27 Fev. 2018, p. 7.

144 Ibidem, p. 5. Note-se que a emoção pelo retorno da chuva foi tão forte que Cabral, um apaixonado pela ciência, até deixa em segundo plano a falta de cientificidade das afirmações populares...

145 Ibidem, p. 6.

146 Ibidem, p. 7, grifo nosso. 147 Ibidem, p. 7.

Entre 1949 e 1952, Cabral publica no boletim Cabo Verde uma série de cinco artigos intitulada Em defesa da terra, que se ocupa das questões agrárias de Cabo Verde, nomeadamente o problema da erosão do solo. Tal como o artigo Algumas considerações acerca das chuvas, a série

Em defesa da terra tem caráter político e reivindicatório, além de técnico-científico. Ela também

nos fornece elementos sobre os sentimentos nacionais e a evolução dos projetos políticos de Cabral. No primeiro texto da série, Cabral dirige-se ao público com a fórmula “nós, portugueses, cabo- verdianos” – uma forma de destacar o elemento cabo-verdiano dentro do “mundo português”, que ele cita na mesma frase:

a todo o espírito desejoso do bem do povo caboverdeano se imporá como necessidade premente a defesa da Terra. (…) E tal combate, em defesa da Terra, é possível com probabilidades de êxito, desde que seja conduzido com inteiro sentido das realidades que regem o fenómeno. Conseguiram- no já outros povos pelo emprego dos conhecimentos científicos ao serviço do bem-estar geral. (…) E nós, portugueses, caboverdeanos, iniciando o combate à erosão, defendendo a Terra e o Homem de Cabo Verde, elementos indubitavelmente essenciais dentro do Mundo Português, não faremos mais do que integrarmo-nos no grande movimento contra a erosão que se verifica na presente quadra da vida dos Homens.148,149

O texto tem como objeto a agricultura de Cabo Verde, mas nele Cabral também cita as experiências de outros povos e países, como os Estados Unidos e a África do Sul. Para Cabral, a defesa da terra cabo-verdiana faz parte da luta de todos os homens pela preservação da terra.

Poderíamos perguntar-nos se a forma como Cabral se refere a Portugal e Cabo Verde seria uma espécie de autocensura ou uma tática reivindicativa. Poderíamos imaginar que Cabral tivesse ideias independentistas para Cabo Verde no final da década de 1940, mas as escondesse ao escrever na imprensa colonial, uma vez que não seria possível defender abertamente a independência naquele regime. Como tática política, situar Cabo Verde como parte de Portugal seria uma forma de reivindicar melhorias para a colônia – já que Cabo Verde fazia parte de Portugal, que fosse tratado como tal, em igualdade com as regiões metropolitanas da nação.

Contudo, não acreditamos que se tenha tratado disso, mas que Cabral de fato compreendesse o destino de Cabo Verde atrelado ao de Portugal. É o que sugere a comparação entre o que ele publicava na imprensa colonial e o que ele escrevia no âmbito privado, bem como entre o que ele escrevia em 1949-1952 e o que escreveria no final dos anos 1950. Num órgão da imprensa colonial, Cabral não poderia falar abertamente em independência. Por isso, não encontraremos uma defesa do fim do colonialismo nem mesmo nos textos publicados no final dos anos 1950, quando ele já estava 148 CABRAL, Amílcar, “Em defesa da terra (I)”, in Estudos agrários de Amílcar Cabral, Lisboa, IICT, Bissau, INEP,

1988 [1949], p. 65, grifo nosso.

149 Ao leitor interessado, informamos que parte dos estudos agrários de Cabral pode ser acessada online na seguinte seção do Arquivo Amílcar Cabral mantido pela Casa Comum (Fundação Mário Soares): <http://casacomum.net/cc/arquivos?set=e_2779>. Acesso em: 2 Out. 2018.

comprometido com o anticolonialismo. Contudo, é de se notar a diferença entre a forma como se expressa em 1949 e como o faz em meados e fim dos anos 1950. Em 1949, Portugal era referido de forma calorosa e até glorificadora. Com o passar dos anos, o envolvimento na luta anticolonialista e o seu descobrir-se como africano corresponderão a uma linguagem de distanciamento afetivo para com Portugal. Também resultarão na compreensão da realidade das colônias portuguesas dentro do quadro africano, não do império português. O seguinte trecho de Em defesa da terra (I) indica o início do desenvolvimento desta perspectiva, que avançaria nos anos seguintes: “A erosão atingiu em Cabo Verde, como aliás em muitas outras regiões da África, aspectos gravíssimos”.150

Na esfera privada, encontramos elementos de que Amílcar inicialmente sentia a sua identidade cabo-verdiana como parte de uma identidade mais abrangente portuguesa. Esta concepção, chamada por alguns autores de protonacionalismo151 e por outros de subnacionalismo,152

terá sido dominante entre a intelectualidade cabo-verdiana das primeiras décadas do século XX. Na correspondência trocada com Maria Helena Rodrigues, nos tempos de estudante em Lisboa, Amílcar fala de Cabo Verde com certa referência pátria, ao mesmo tempo que manifesta sentimentos de pertença a Portugal. Em carta de 1/4/1948, refere-se a ter-se encontrado em Lisboa com um “meu patrício”.153 Observamos que “patrício” (usada na carta) e “povo” (empregada nos

artigos) são palavras mais fortes politicamente que o gentílico “cabo-verdiano”, que poderia ser usado com uma conotação apenas regional. Em carta de 13/8/1948, fala em “cabo-verdianidade” – e explica: “o termo é extenso e nós é que inventamos”.154 O uso da primeira pessoa – no singular, em

“meu patrício”, e no plural, em “nós é que inventamos” – indica que há uma parte da sua identidade nacional de que uma portuguesa como Maria Helena (branca, de pais portugueses e nascida na metrópole) não compartilhava. Não obstante, a intenção de Cabral não é excluir Helena desta identidade, mas fazer com que ela passe a integrá-la: na carta de 13/8/1948, o tema da cabo- verdianidade aparece justamente porque Amílcar diz que Helena estava a tornar-se uma “cabo- verdiana”, que já começava a manifestar “uma certa cabo-verdianidade”.155

150 CABRAL, Amílcar, “Em defesa da terra (I)”, p. 65, grifo nosso.

151 Como LOPES, José Vicente, Cabo Verde: as causas da independência, Praia, Spleen, 2003.

152 FERNANDES, Gabriel, Em busca da nação: notas para uma reinterpretação do Cabo Verde crioulo, Florianópolis, EdUFSC, Praia, IBNL, 2006 apud CARVALHO, Maria Adriana, O liceu em Cabo Verde, um imperativo de

cidadania: 1917-1975, Lisboa, FPCE/UL, 2009, Tese de Doutoramento, disponível em:

<http://repositorio.ul.pt/handle/10451/969>, acesso em: 21 Dez. 2017, p. 45. 153 CABRAL, Iva; SOUTO, Márcia; ELÍSIO, Filinto (Org.), op. cit., p. 83. 154 Ibidem, p. 112.

Em 10/4/1950, a propósito de ter ido assistir a um jogo (imaginamos que de futebol) entre Portugal e Espanha, escreve que nunca se supôs “tão português. (…) Se bem que desconfio que talvez tivesse sido ‘espírito clubista’. Em todo caso, se o meu vibrar foi de português, justifica-se: o cabo-verdiano é na realidade e até onde pode ser, obra portuguesa, português, portanto”.156 Tanto o

sentimento de cabo-verdianidade quanto o de pertencimento ao mundo português não são naturais e meramente espontâneos, mas histórica e socialmente construídos, e estão relacionados à educação que Amílcar recebeu no Liceu Gil Eanes, no Mindelo, ilha de São Vicente, Cabo Verde.157

Nesta altura, a sua ideia de libertação africana era ambígua e incipiente, próxima de um projeto político de igualdade entre os povos. Conforme Sousa, no final dos anos 1940, Cabral iniciava um longo processo de tomada de consciência quanto à distinção entre a luta antifascista portuguesa e a luta anticolonialista africana. Esta viragem ocorre graças ao contato com os movimentos Negritude e Pan-africanismo, à conjuntura mundial e à convivência com os nacionalistas angolanos em Lisboa.158 As primeiras tentativas de autonomização do grupo de

africanos politizados residentes em Lisboa diante da esquerda portuguesa resultam na criação do Centro de Estudos Africanos (CEA), em 1951. O PAIGC (inicialmente, com a sigla PAI) é fundado em meados ou no fim dos anos 1950.