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3.2 O aparato projetual da arquitetura e do urbanismo em meio ao planejamento

3.2.2 A arquitetura, o urbanismo e o Movimento Moderno

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A arquitetura e o urbanismo, disciplinas também inseridas nos movimen- tos vanguardistas do século XIX e XX, ajudaram substancialmente a conformar o modernismo. Em diferentes momentos, o deparar-se com contradições fez com que as vanguardas trabalhassem no sentido de incitá-las, superá-las e/ou negá-las.

Os intelectuais imbuídos do espírito da época, dentre estes os arquite- tos urbanistas, vislumbravam um futuro estritamente dependente de um presen- te que fosse projetado. Esta lógica pragmática a permear o pensamento domi- nante emanava do estatuto científico assumido na história ocidental, sobretudo a partir do século XVIII, de modo que a razão progressista era condição sine qua non para a constituição de uma nova sociedade. Sendo assim, o projeto para a cidade modernista buscava controlar a realidade visando transcendê-la, e ao mesmo tempo trabalhava para reestruturar o mundo real. A bem da verda- de, pretendia-se a realização de um modelo utópico dependente do sistema integrado por capital e trabalho. Na medida em que visava a resolução dos problemas sociais, um compromisso ético foi assumido e liderado, na teoria e na prática, pela arquitetura e pelo urbanismo.

Parece-nos importante destacar as diferentes fases108 do modernismo. Até o período de “formação”, a estética modernista reagia às novas condições de produção capitalista e de circulação e consumo de massa, as quais surgiram em meio às cidades que vinham crescendo, aleatória e desordenadamente, ao longo do século XIX.

A propósito, mudanças não aconteciam só na ordem física das metrópo- les que se constituíam, mas na percepção e no mundo da representação e do conhecimento, exigindo que as condições da modernidade pudessem minima- mente ser assimiladas. Esta exposição do indivíduo a novos estímulos, assim como o submetê-lo a uma experiência urbana intimamente entrelaçada às rápidas transformações pelas quais passavam as cidades, foi observada por Georg Simmel com a atitude blasé109, além de Charles Baudelaire e, posterior- mente, por Walter Benjamin ao relatar o “duelo” do flâneur110 com os novos tempos.

108 Antes da Paris de 1848; de “formação” entre 1848 até 1914 com a 1ª Guerra Mundial; o “período heroico” do entreguerras; e o modernismo “alto” ou “universal” pós-1945 até por volta de 1968 a 1972, quando emergia o pós-modernismo. Periodização sugerida por Harvey (2007, pp. 35-44).

109 ‘Como o dinheiro tornava-se o parâmetro a reger, também, as relações sociais, o indivíduo volta-se a si, fecha-se a fim de “proteger-se”, e lança mão de termos objetivos e instrumentais no trato com o próximo no dia-a-dia em que enfrenta a multidão.’ (SIMMEL, G. As grandes cidades e a vida do espírito (1903) In: Mana, Rio de Janeiro, v. 11, n. 2, out. 2005. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?- script=sci_arttext&pid=S0104-93132005000200010&lng=en&nrm=iso>, acesso em set. 2011). 110 Os ensaios de Walter Benjamin, inspirados na obra do poeta francês Charles Baudelaire, chamam a atenção para a figura do flâneur, o tipo de homem “criado” pela modernidade. Interessava-lhe a cidade, percorria as ruas da metrópole narrando as transformações urbanas na Paris do século XIX. Conduzido por um tempo que ia desaparecendo, ao mesmo tempo em que uma nova estética ia surgindo, a cidade

Como os esforços da arquitetura e do urbanismo concentravam-se em auxiliar na racionalização global do universo produtivo, o pensamento, as pro- postas e a prática modernistas foram, de certo modo, influenciados por uma circunstancialidade contextual. Bastaria, por exemplo, fazermos referência às intervenções de Haussmann em Paris, e às proposições de Howard e de Gar- nier, com as cidades jardim e industrial, respectivamente.

No modernismo “heroico”, face ao desastre da guerra, (re)encontrar o mito do eterno e do imutável fazia-se crucial. A ordem seria a de impor uma visão estética às cidades, possibilitando então atingir as metas outrora preten- didas pelo Iluminismo, mas desde que sob outra forma de projeto. Vinha à tona um discurso poético – a emancipação como solução para os problemas sociais – e pragmático. A cidade tiraria partido da liberdade proporcionada pela tecno- logia e produtividade tanto em benefício da economia quanto da sociedade. Eficiência, resolução das inúmeras funções colocadas pelo mundo moderno e beleza, eis aí a revolução na estética da arquitetura e das cidades.

Portanto, era preciso pensar e agir assim como experimentar um novo método de planejar/projetar que se afastasse dos postulados da arquitetura clássica111. Opondo-se às tipologias arquitetônicas, cujas origens assentavam- se nos tratados humanistas, e ao tecido urbano tradicional, outro modo de significação teria de ser desenvolvido para representar a virada ao modernis- mo. Conforme Choay (1976, p. 21)112, pela concepção de estruturas técnicas e estéticas e pelo pressuposto de um indivíduo-tipo, o qual definido por ‘necesi- dades-tipo científicamente deducibles’ e universais, era possível definir o tipo ideal de estabelecimento humano.

era o espaço da flanêurie. Ao flanar, ‘as mais finas e sutis articulações do indivíduo moderno com o cenário urbano’ eram reveladas (MASSAGLI, S. Homem da multidão e o flâneur no conto “O Homem da Multidão” de Edgar Allan Poe. In: Terra roxa e outras terras: revista de estudos literários, vol. 12, Londrina: Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Estadual de Londrina, 2008 [pp. 55- 65]. Disponível em <http://www.uel.br/pos/letras/terraroxa/g_pdf/vol12/TRvol12f.pdf>, acesso em abr. 2013).

111 Poderíamos citar, por exemplo, a rejeição das tradições, sobretudo tipológicas, arquitetônicas. Os classicistas imitavam o mundo real, transformando em mito os aspectos e/ou as crenças mais significati- vas, expressando-os esteticamente, proporcionado o prazer – um dos termos, a venustas, da tríade vitruviana. Mas não só. Ao analisar Projecto e Utopia: arquitetura e desenvolvimento do capitalismo, de Manfredo Tafuri, publicado em 1973, Marques (2010, p. 157, 158) ressalta que o trabalho intelectual passou à esfera do trabalho produtivo, do profissionalismo, desenrolando uma tensão entre a autonomia, pela sua consciência crítica, e o comprometimento com o sistema político-econômico. Por isto, a “sacra- lidade” intelectual da disciplina arquitetônica não podia mais ser assegurada, o que implicava na destrui- ção dos papéis clássicos outrora em vigor.

112 A autora faz uma distinção entre pré-urbanismo e urbanismo: ‘El urbanismo difiere del preurbanismo en dos puntos de vista importantes. En lugar de ser obra de generalizadores (historiadores, economistas o políticos), es, bajo sus dos formas, teórica y práctica, patrimonio de especialistas, generalmente arquitectos.’ (CHOAY, F. El urbanismo: utopías y realidades. 2 ed. Barcelona: Lumen, 1976, p. 39, 40).

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Vislumbrava-se para as cidades modernas poder realizar coisas da or- dem do possível, tornando-as reais desde o design das utilidades domésticas, passando pelo objeto arquitetônico até o ordenamento urbano. Se revisitarmos o documento emblemático do Movimento Moderno, a Carta de Atenas113, pas- sagens afirmam que a arquitetura presidia aos destinos da cidade. A pretensão totalizadora do discurso técnico competente, o qual foi lançado academicamen- te levando em conta as condições sociais e econômicas, estendeu-se à esfera política, de modo que os órgãos administrativos garantissem o bem-estar da coletividade.

Perante o caos das cidades sobre o qual o discurso e a prática do Mo- vimento Moderno buscavam acabar e, então, estabelecer o adequado fluir das atividades humanas no espaço, ou seja, diagnosticado tudo aquilo que com- prometia o progresso da cidade e da sociedade, a solução que andava lado-a- lado ao plano/projeto urbanos era a tabula rasa. Tal qual o “destruir para criar” presente nas representações e linguagens que intuíam definir a modernidade, na arquitetura e no urbanismo essa noção vinculava-se à prática de eliminar o tecido urbano tradicional ou antigo das cidades para cunhar, total ou parcial- mente, algo “novo”.

Assim a “tábula rasa” configurou-se como estratégia projetual recorren- te114 cuja noção representava o poder de decidir sobre o que materialmente destruir, manter e/ou inserir. E o especialista elegido para apontar as perma- nências e intervenções formais sobre a cidade era o arquiteto urbanista.

Neste mesmo sentido, ao ‘aceitar que é a experiência que domina o su- jeito e o cria’ (TAFURI, 1985 apud MARQUES, 2010, p. 159), a prerrogativa de recorrer à racionalidade dos usuários aliando-a a planificação estética e funcio- nal da totalidade do espaço urbano, faria com que o homem paulatinamente “entendesse” qual a função a desempenhar naquele sistema. E não só, pois também haveria a rendição coletiva de indivíduos tratados como idênticos, e a utopia, em parte, se realizaria. Solapando as diferenças incidentes no campo da vida, o modelo em série da fábrica passou ao modelo de uma sociedade expressa como uma massa inteiramente homogênea.

Como no urbanismo moderno a concepção das cidades se dava a partir de uma lógica unitária, o orientar-se aparecia definido a priori. Munida de um plano global, os mapas existiam antes mesmo das cidades. Entre uma relação

113 Escrita por ocasião do CIAM IV, realizado entre julho e agosto de 1933 a bordo do S. S. Patris, em um cruzeiro pelo Mediterrâneo entre as cidades de Atenas e Marselha. A Carta de Atenas, porém, só foi publicada dez anos depois (FRAMPTON, 2008, p. 328). Para consultá-la, verificar a Relação de Cartas Patrimoniais do IPHAN. Disponível em <http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=233>, acesso em ago. 2012.

114 O exemplo mais emblemático foi a renovação de Paris através do Plano Haussmann. De prerrogativa higienista para acabar com os cortiços em pleno centro da metrópole parisiense e também para facilitar a circulação de automóveis, era preciso modernizar a cidade eliminando o seu traçado urbano medieval.

de causa e efeito, ao buscar a ordem e a geometrização da dimensão espacial do objeto, a experiência espacial subentendia-se passível de ser prevista, sen- do maior o controle da sua recepção pelo sujeito. Ao fornecer caminhos ortogo- nais e contínuos, imaginava-se evitar a desorientação, mas principalmente possibilitar a compreensão da cidade segundo uma estrutura, tal qual uma rede hierárquica organizada de acordo com o zoneamento funcional dos espaços.

Le Corbusier, em Urbanismo (1992)115, abre o primeiro capítulo dos seus estudos, bem como a proposta para como deveriam ser as cidades mo- dernas, com o seguinte item: ‘o caminho das mulas, o caminho dos homens’. Para ele, ‘o homem caminha em linha reta porque tem um objetivo; sabe aonde vai’ (LE CORBUSIER, 1992, p. 5). Já a mula, desprovida de inteligência, não pensa e então caminha munida de uma vontade arbitrária, indolente, descontra- ída, resultando daí o caminho da animalidade. Para o grande divulgador do Movimento Moderno, o progresso humano e econômico das cidades só seria logrado se adotássemos como princípio de construção a linha e o ângulo reto, os quais correspondiam a uma geometria perfeita para manter o mundo em equilíbrio.

Ainda em diversas passagens do livro em questão, Le Corbusier tam- bém comparou o corpo da cidade ao corpo humano. Para tanto, fez menção, sobretudo, ao sistema de funcionamento do organismo, citando termos como medicina e cirurgia. Um entendimento que apreendia a forma e as funções especializadas do corpo a fim de recriá-los sobre a cidade. Em resumo dizia ele que ‘a cidade [era] um turbilhão; cumpre classificar suas impressões, reconhe- cer suas sensações e fazer a escolha dos métodos curativos e benfazejos’ (LE CORBUSIER, 1992, p. 54).

Quando a linha for contínua, regular, quando as formas tiverem um invólucro sem nenhuma ruptura, condicio- nadas por uma regra clara, nossos sentidos serão afa- gados; nosso espírito ficará elevado, liberto, fora do caos, inundado de luz; pensará “domínio”, se elevará e sorriremos. Eis a base, é fisiológica, irrefutável. [...] Ho- rizontais, prismas magníficos, pirâmides, esferas, cilin- dros. Nossos olhos os vêem puros e nosso espírito en- levado calcula a precisão de seu traçado. Serenidade e alegria. (LE CORBUSIER, 1992, p. 56)

Não por acaso que ao final de Urbanismo (livro o qual já estava concluí- do), em um apêndice intitulado Confirmações incentivos admoestações, Le

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Corbusier116 resolveu apresentar esquemas ilustrativos sobre anatomia e fisio- logia animal, concebendo então uma clara e particular analogia da cidade como organismo. São várias imagens acompanhadas de poucas linhas escritas, porém, dentre as legendas, uma faz alusão à cidade. Referindo-se a um dese- nho esquemático do coração e dos pulmões (e, por conseguinte, do sistema circulatório), diz ele: ‘relações diretas e precisas, rápidas, entre duas funções independentes... Dorme-se à noite nas cidades-jardins; trabalha-se às 9 horas da manhã no centro.’ (LE CORBUSIER, 1992, p. 290).

Para realmente reestruturar globalmente a realidade, a arquitetura e o urbanismo também tiveram de incorporar e lançar a ideia de trabalhar com um novo tipo de sujeito. Este seria acomodado em habitações e cidades padroni- zadas a partir de células-tipo. Novamente em uma alusão ao organismo, a arquitetura aparece tal qual uma célula, e a reunião de muitas células (de arqui- teturas) organizando a cidade.

É oportuno dizer que um entendimento conceitual a respeito do homem aparece desde os tratados teóricos sobre arquitetura, os quais situavam as origens da disciplina e viam no homem, este corpo-objeto, um instrumento mediador entre as formas produzidas e a imitação da natureza. No Movimento Moderno, houve um rompimento com a compreensão do homem praticada pela estética renascentista. A arquitetura não mais deveria imitar a algo, mas sim representar. E a função era a mensagem a ser lida na forma, onde o homem “aparecia” através de um sistema de medidas expresso pelo Modulor. Um cor- po genérico a humanizar, pela transposição métrica, a produção das célu- las/máquinas de morar. Além disto, o cientificismo do corpo humano dado pela relação com a anatomia e a fisiologia foi utilizado como parâmetro para o ade- quado funcionar do grande “corpo” que era a cidade.

A cidade, em síntese, era como máquina e organismo feita para um homem ideal(izado). No urbanismo, o plano urbano assumia ser o veículo a alcançar um bem comum, para tanto seguia a mesma “cartilha” apesar dos diferentes contextos. Acabar com as pré-existências, “matar”117 a rua-corredor para zonear unidades autônomas distribuídas em amplos espaços verdes aber- tos ao lazer e à fruição, cabendo às ruas só a função de circular. A planificação garantiria tanto a programação da produção quanto a “produtividade do espíri-

116 Conforme indicação de seu sócio: ‘Porque não mostra, para fazer pensar, uma concha perfeita, o esquema do sistema cardíaco, um belo corte de um aquecimento central...’ (LE CORBUSIER, 1992, p. 285).

117 Le Corbusier (2004, pp. 169-172), ao longo de dez conferências proferidas em Buenos Aires, em 1929, constata que nem sempre seria possível acabar com a rua-corredor, pelos custos nas desapropri- ações afirma ele, reitera que deveria permanecer como estava: sobrecarregada. Fazer “medicina” geraria muitas despesas, ‘um engodo’. A solução, aponta, a fim de resolver a cidade-corredor e de assegurar a higiene pública, é a “cirurgia”, despesa diminuta, ruas largas a urbanizar subúrbios, disper- sar, crescer e vencer as distâncias via automóvel.

to”118. Arquitetura em tudo, urbanismo em tudo. O ideário modernista, ao “mo- delizar” os seus objetos, alavancou a produção industrial, assim como colabo- rou para criar uma massa de consumidores a demandar por mercadorias e a trabalhar com a mesma eficiência logística implicada no ideário da cidade.

Num certo momento, houve uma maior aproximação entre o trabalho in- telectual dos arquitetos e urbanistas – munidos do conhecimento específico – e o poder político-administrativo – dotado da capacidade de execução –, ficando, cada vez mais evidente, ao urbanista o papel de planejador urbano. Até que chegaria o ponto em que o Movimento Moderno veria os seus objetivos esgota- dos, pois ao realizar aquilo a que se propôs, ou fez superar as realidades retro- gradas ou tornou-se bastante incômodo.

Uma ordem construída idealmente, nivelando diferen- ças e condições históricas das mais variadas, subordi- nada ao princípio do modelo único e com validade in- ternacional [...], forçosamente substituía o homem con- creto e as relações reais na sociedade por uma organi- zação espacial maximamente eficiente do ponto de vis- ta do sistema econômico geral. (ARANTES, 2000, p. 55)

E conforme o Movimento Moderno assumia o papel determinante na planificação da realidade, ou seja, enquanto concretizava as suas realizações, a arquitetura e o urbanismo tornavam-se objetos inseridos na própria reorgani- zação da produção.