• Nenhum resultado encontrado

tônica a partir de imagens fotográficas. Baseado em Phantom City, texto de Vilém Flusser escrito por ocasião de uma exposição fotográfica que percorreu a Europa na década de 1980 e cujo tema era a cidade sem pessoas, o seu alerta, depois de constatar em revistas e livros de história da arquitetura, voltava-se à ausência da figura humana na composição do objeto arquitetônico o qual era tecnicamente clicado.

E as considerações de Fuão ainda se desdobravam para ponderar so- bre o que é ensinado e mostrado aos arquitetos urbanistas, de modo que assim o perpetuamos, se trata de um imaginário onde à representação da arquitetura faltaria o caráter subjetivo do homem. Além de preocupações de ordem formal, seria preciso da alma das pessoas, pois cidades e arquiteturas também são “construídas” ao passo em que vivenciadas.

159 A consciência do lugar apareceu associada à tectônica, por isto a preocupação com a “manipulação” de certos atributos técnicos e materiais a fim de criar uma arquitetura espacialmente mais experimental. Com a reflexão sobre a interação corporal e inconsciente com o ambiente, o lugar e o edifício foram repensados para dar suporte ao conceito heideggeriano de habitar. ‘Habitar é definido como “um perma- necer ou estar com as coisas”.’(NESBITT, 2008, p. 32). Em seus estudos críticos, Christian Norberg- Schulz tratou da concretização do espaço existencial mediante a formação de “lugares”. Neste sentido contribuía o caráter tectônico, o que foi, naquele momento, captado por Frampton ao propor uma arqui- tetura mais autêntica, um posicionamento alternativo por reconhecer o rumo cenográfico da arquitetura pós-moderna.

160 Fuão, F. Cidades fantasmas. Arquitextos, São Paulo, 025.08, Vitruvius, jun. 2002. Disponível em <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/03.025/777>, acesso em nov. 2010.

Mas a questão da representação arquitetônica suscita uma reflexão bem mais ampla. Quando pensamos em representação, logo a associamos ao desenho (plantas, cortes, fachadas, perspectivas etc.) do projeto a fim de que venha a ser lido no canteiro de obras. Assim executa-se a obra e chega-se ao objeto materializado. Processo este que Sérgio Ferro161 salientou corresponder à separação entre trabalho intelectual e manual. Foi no Renascimento que o desenho ficou a cargo do arquiteto e deixou de ter a contribuição in loco das muitas mãos dos artistas, os quais se tornaram meros assalariados. Obviamen- te que houve a contribuição de conhecimentos perspectivos para a representa- ção da arquitetura, mas o processo de projeto baseado no desenho arquitetôni- co acabou sendo uma forma de mais-valia dirigida à produção de mercadorias. A respeito desta “instrumentalização” da arquitetura possibilitada pelo desenho perspectivo, resumiria a produção arquitetônica – a construção do real – à representação de um espaço intelectualmente imaginado? E o fator huma- no imprescindível à produção social do espaço? Arquitetura é também espaço vivido cotidianamente, e experimentá-lo depende de uma relação indissociável com o tempo. Ou seja, o ato de mover-se e/ou usá-la, faz da arquitetura intera- ção.

Palavras e desenhos podem somente produzir espaço no papel, não a experiência do espaço real. O espaço no papel, por definição é imaginário: é uma imagem. Mas, para os que não constroem (não importa se por motivos circunstanciais ou ideológicos), parece perfei- tamente normal satisfazer-se com a representação da- queles aspectos da arquitetura que pertencem a cons- tructos mentais – à imaginação. Essas representações separam inevitavelmente a experiência sensorial de um espaço real da avaliação de conceitos racionais. Entre outras coisas a arquitetura é uma função de ambos. E, se um desses critérios for eliminado, a arquitetura per- de algo. (TSCHUMI162, 1978 apud NESBITT, 2008, p. 582)

Mas, o processo de produção da arquitetura ainda se dá a partir de uma concepção linear e se funda no espaço concebido (inclusive o desenho atual-

161 “Aula 1” proferida junto à disciplina “IAU – 5891 Tópicos Especiais: Apontamentos Sobre História da Arte e da Arquitetura: Renascimento, Modernismo e Brasil” no Programa de Pós-Graduação em Arquite- tura e Urbanismo do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos, no período de 24 de setembro a 09 de outubro de 2012. Disponível em <http://eaulas.usp.br/portal/video.action?idItem=24- 70>, acesso em mar. 2013.

162 TSCHUMI, B. O prazer da arquitetura. In: NESBITT, K. (Org.). Uma nova agenda para a arquitetu- ra: antologia teórica (1965-1995). 2. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2008 [pp. 573-584].

170

170

mente tem sido “incrementado” pelas tecnologias da informação). Já o espaço vivido ou a produção continuada e aberta pela participação ativa dos citadinos e pelas apropriações corpóreas das ações humanas abririam, assim, a arquitetu- ra à processualidade, ao espaço considerado como campo de possibilidades sempre passível de atualização.

Voltando ao imaginário do arquiteto urbanista, o processo projetual ba- seia-se na representação (de uma imagem dada pelo desenho) e na separação fragmentada entre projeto, construção e uso. Assim o ensinado na academia e praticado no campo profissional põe de um lado o espaço concebido (um pro- duto final prescritivo e acabado) e do outro, o sujeito. Não que o desenho deva ser substituído ou seja dispensável, trata-se de uma ferramenta importantíssi- ma. Mas, talvez, um dos primeiros questionamentos a fazer seja justamente o quanto nos concentramos nele, o valor depreendido para um saber-fazer a arquitetura, e também aqui destacamos o urbanismo, baseado numa reprodu- ção estanque de etapas, cujo desenho incrementa um discurso inerente ao nosso métier (disciplina que exige conhecimento científico, artístico e tecnológi- co, mas que também têm implicância no campo político) e que muitas vezes fica distante do diálogo ou de uma condição processual compartilhada com e/ou dependente dos ocupantes, habitantes e/ou citadinos.

No mote deste mesmo raciocínio, citamos novamente Tschumi163 que desenvolveu uma proposta de arquitetura a partir da intromissão de eventos, cujo movimento dos corpos construiria o espaço. Para ele, a representação da arquitetura se daria pela conjunção indissociável entre espaço, evento (conteú- do programático/usos) e movimento. Deste modo, ao lado de uma definição espacial, há também a necessidade de uma dimensão temporal dada justamen- te pela experiência corporal da arquitetura.

Dito isto tudo, a título de explicitar ainda mais as preocupações contidas neste trabalho dissertativo, talvez fique um pouco mais claro se, por um mo- mento, pensarmos nos croquis aos quais recorria Lina Bo Bardi164 para desen- volver e apresentar seus projetos. Poderíamos ressaltar a produção da arquite- ta ítalo-brasileira, que em tempo se diga pertenceu, assumidamente, ao movi- mento moderno no Brasil, como singularmente vinculada à cultura popular e a soluções construtivas vernaculares. Mas nos interessa pontuar o quão os seus traços à aquarela traziam em evidência a participação dos trabalhadores e usuários. A título de exemplificação, tanto para o grande vão do MASP quanto

163 Ver Arquitetura e limites I, II e III. In: NESBITT, 2008 [pp. 172-188].

164 Nascida (1914) e formada arquiteta (1939) em Roma, após a 2ª Guerra Mundial emigrou para o Brasil onde desenvolveu carreira profissional. Bo Bardi voltou-se à produção de uma arquitetura entendida como “organismo apto para a vida” a incorporar o cotidiano e a energia das pessoas que a utilizavam. (OLIVEIRA, O. Lina Bo Bardi: sutis substâncias da arquitetura. São Paulo/Barcelona: Ed. Romano Guerra/Gustavo Gili, 2006)

para os pavilhões e ruas do SESC Pompéia, havia uma visão que preconizava a construção coletiva (desde a mão de obra aos usos) dos espaços.

Na contramão do simplório e poético, porém rico diálogo propositivo e processual desenvolvido por Lina, temos nos deparado com o valor (acredita- mos demasiado) concernido às hiper-reais imagens renderizadas representati- vas do projeto arquitetônico e urbanístico. Em muitos casos, o resultado “final” e virtual da planificação técnica e estética acaba se destacando à realidade participativa e de experimentação como, por exemplo, aquela cunhada por Lina durante o seu exercício profissional.

Objeto e sujeito em separado. Primeiro um e depois o outro. Daqui em diante é preciso deixar claro: no nosso entendimento, o espaço urbano se “faz” e é produzido enquanto acionado pelo sujeito. Não nos parece razoável, visto que cidade é fenômeno, ao mesmo tempo obra e produto social, dissociar o urbanismo, desde as suas práticas de análise às de ação/intervenção, daque- les, no caso dos seus praticantes ordinários, que constroem a cidade na cotidi- anidade. De agora em diante nosso tempo será aquele ínfimo capaz de tempo- ralizar o espaço.

4.3 Conhecer a cidade a partir do urbano: a “cegueira” e a “opacidade”