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O sistema ferroviário no Brasil pretendia alavancar a modernidade sob uma perspectiva estratégica. Havia a necessidade de interligar e ocupar o

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Figura 2: Planta da Vila

de Santa Maria da Boca do Monte, elaborada por Otto Brinckmann em 1861. FONTE: MELLO, 2002, p. 91.

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território como um todo, o que facilitaria o acesso e a defesa das fronteiras terrestres. E significava, também, um meio eficiente de progresso econômico para as elites nacionais em um país onde até então predominava um sistema agrário e escravista.

Os caminhos de ferro não só construíram uma territori- alidade, na ocupação do espaço físico, mas neste es- paço esquadrinharam práticas sociais, estratégias de controle e tarefas rotineiras para o exercício de um po- der disciplinar que a sociedade burguesa exigia para a reprodução do capital e, conseqüentemente, para sua acumulação.(POSSAS, 2001 apud FLÔRES, 2007, p. 67, 68)

No governo regencial, em 1835, foi promulgada a primeira lei ferroviária que tinha por meta ‘a construção de um sistema ferroviário que ligasse as pro- víncias de Minas Gerais, Bahia e São Paulo ao Rio de Janeiro, assim como pretendia estender suas linhas até o Rio Grande do Sul’ (FLÔRES, 2007, p. 71). Esta lei previa a concessão da exploração a empreendedores que investis- sem na construção das estradas de ferro, já que a província não dispunha de capacidade gerencial ou mesmo financeira para a implantação das ferrovias. Em 1855, foi autorizada a construção da estrada que ligou o Rio de Janeiro a Minas Gerais e São Paulo, a Estrada de Ferro Central do Brasil. A partir de então, o sistema ferroviário brasileiro expandiu-se, especialmente porque esta- va vinculado a polos de desenvolvimento econômico, como o Sudeste, região em crescente desenvolvimento econômico.

Dentre os muitos interesses quanto ao sistema ferroviário no sul do Bra- sil, ressalvam-se questões relativas à conexão meridional ao restante do país, à estratégica posição juntos às fronteiras do Uruguai e Argentina e próxima ao Paraguai, além do interesse ao escoamento da produção agrária. Havia, tam- bém, a questão de povoamento do interior do Rio Grande do Sul, principalmen- te pelas levas de imigrantes alemães, italianos, judeus etc., ocupação que seria facilitada pelas linhas férreas. Desde o império que estas situações eram pon- deradas e, em 1872, o Rio Grande do Sul já contava com o “Projeto Geral de uma Rede de Vias Férreas Comerciais e Estratégicas para a Província do Rio Grande do Sul”, elaborado pelo engenheiro José Ewbank da Câmara, o qual previa a construção de quatro linhas que atravessavam a província, interligan- do-a de norte ao sul e de leste ao oeste.

A primeira ferrovia gaúcha, entre Porto Alegre e São Leopoldo, foi cons- truída e explorada pela empresa inglesa Porto Alegre and New Hamburg (Brazi- lian) Railway Company Limited, inaugurada em 1874. Mas a mais importante

estrada de ferro construída ao longo da história do Rio Grande do Sul foi a Porto Alegre – Uruguaiana. Esta ferrovia, cujas obras foram iniciadas no ano de 1877, tinha como propósito ligar o litoral à fronteira oeste da província.

Em 1897, o governo republicano realizou concorrência pública a fim de arrendar a ainda inconclusa Estrada de Ferro Porto Alegre – Uruguaiana. Em 1898 (figura 3), é conhecida a vencedora, uma sociedade anônima de capital belga que atuava na prestação de serviços ferroviários na Europa, a Compag- nie Auxiliaire de Chemins de Fer au Brésil, cujos escritórios administrativos foram instalados em Santa Maria. Em 1905, um novo e mais amplo contrato foi assinado unificando toda a rede ferroviária rio-grandense, surgia assim a Via- ção Férrea do Rio Grande do Sul (VFRGS), ‘uma concessão pública adminis- trada por empresa constituída por capitais privados’ (FLÔRES, 2007, p. 107).

Para cumprir com o contrato firmado, os belgas executaram uma série de obras para interligar a malha ferroviária do Estado. Dessa forma, principal- mente com relação ao prolongamento da Estrada de Ferro Porto Alegre – Uru- guaiana, em 1907 foi inaugurado o trecho entre Cacequi e Alegrete, o qual alcançou, ao fim do mesmo ano, Uruguaiana. A essa linha principal, interliga- vam-se outros ramais e linhas, como a Santa Maria – Marcelino Ramos. O ideal difundido no império de ligar a província de São Paulo a do Rio Grande do Sul foi parcialmente realizado com a entrega do trecho final da estrada entre Santa Maria – Marcelino Ramos, na divisa com Santa Catarina, em 1910. Porém, as obras para a interligação completa da malha ferroviária do Estado não foram executadas como o previsto. Por problemas financeiros, a Compagnie Auxiliaire ‘vendeu parte de suas ações aos norte-americanos, transferindo, assim, o controle administrativo da Viação Férrea à nova concessionária, a Brazil Railway, em 1911’ (FLÔRES, p. 115).

A Brazil Railway dá início à gestão norte-americana das ferrovias gaú- chas e efetua, por fim, a ligação da malha do Rio Grande do Sul à de São Pau- lo através da Ferrovia Sorocabana. No entanto, a situação da VFRGS tendia a agravar-se ainda mais, pois os reflexos da 1ª Guerra Mundial atingiram finan- ceiramente a concessionária. Os ferroviários reclamavam da baixa remunera- ção e das condições de trabalho. Ao eclodir a greve de 1917, que foi um movi- mento muito expressivo em todo o Rio Grande do Sul, os ferroviários aderiram imediatamente. O seu desfecho, face intervenção do governo estadual, resultou na retomada do controle acionário pela Compagnie Auxiliare. No entanto, mesmo com tentativas de recomposição financeira com apoio do governo fede- ral, não houve as devidas melhorias nos serviços tampouco nas condições de trabalho.

Em 1920 o contrato com a empresa belga é rescindido e, em 1922, pas- sa o controle administrativo da Viação Férrea ao governo do Rio Grande do Sul. Com a encampação e consequente estatização do sistema ferroviário,

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iniciou um período de retomada do crescimento da estrutura férrea. Como a malha férrea estava praticamente completa em seus trechos principais, os esforços concentravam-se na modernização de equipamentos e frotas de trens, na reforma necessária às vias e em questões relativas aos recursos humanos.

A partir de 1930, apesar da conspiração “anti-ferroviária” que a instância federal oferecia ao transporte rodoviário, nos anos entre 1935 até 1945, sob o governo de Getúlio Vargas, a solução para a queda nos rendimentos da ferro- via gaúcha, fruto dos reflexos da crise de 1929, foi encaminhada ao governo federal, o qual passou a investir na Viação Férrea. Já no período da 2ª Guerra Mundial, a situação econômica era complexa e mesmo que implementasse várias medidas de racionalização de custos, a VFRGS não conseguiu se sus- tentar. No governo de Juscelino Kubitschek, a malha ferroviária estadual pas- sou ao domínio da Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima (RFFSA), criada em 1957 (figura 4).

Sob administração centralizada e autoritária, com a racionalização ad- ministrativa e econômica em pauta, em 1987, comemoraram-se os trinta anos da RFFSA. A publicação de um encarte32 comemorativo revelam dados estatís- ticos onde uma situação aparentemente “progressista” em termos de produtivi- dade e arrecadação financeira é divulgada. Mas, pelo contrário, os números relativos ao transporte de passageiros, ao pessoal empregado, à extensão da malha férrea e à frota eram bastante deficitários.

O “progresso” medido em cifras excluía o enorme contingente nas per- das humanas. Apesar do relatório “oficial” em questão, Mello (2002, p. 65) aponta para a contradição dos discursos, pois no ano de 1979, o então presi- dente da Rede, cujo mandato foi excepcionalmente curto, alarmava as dificul- dades imensas pelas quais passava o sistema ferroviário. Apesar das práticas (ou manobras) administrativas lançarem mão de uma aparente situação de otimismo, a realidade da RFFSA apontava para outra direção, o do seu des- mantelamento.

[...] as políticas de planejamento antes de serem eco- nômicas, visaram, no primeiro momento, a um modelo de desenvolvimento que atendesse aos interesses da indústria automotiva e, agravando ainda mais as condi- ções da rede [RFFSA], as políticas de cunho ideológico e logístico da revolução [militar] objetivando diminuir a força de uma classe historicamente politizada. A falta de investimentos e o conseqüente sucateamento da in- fra-estrutura e descaso com os funcionários somados a

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Figura 3 (à esquerda): Mapa da malha ferroviária do Rio Grande do Sul em 1898, época do arrendamento pela Compagnie Auxiliare. FONTE:

IPHAE, 2002, p. 22. Figura 4 (à direita): Mapa da malha ferroviária do Rio Grande do Sul em 1959, época da reversão à RFFSA. FONTE: IPHAE, 2002, p. 25.

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desarticulações funcionais da estrutura existente, deno- tam que interesses alheios ao interesse público nortea- vam as decisões, notadamente quando se constata que tais políticas iam em sentido contrário a todas as experiências e iniciativas para o setor de transportes exitosas de outros países.(MELLO, 2002, p. 56)

Finalmente, em 1992, a RFFSA foi incluída no Programa Nacional de Desestatização com o propósito de desonerar a união, fomentar investimentos e propiciar maior eficiência operacional. O modelo apresentado para a transfe- rência ao setor privado consistia na divisão do sistema ferroviário em sete ma- lhas regionais. Em 1996, ocorreu o leilão da malha Sul, a qual com 6.586 km de linha férrea ligando os estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, cuja operação coube à América Latina Logística (ALL).

2.3 A modernidade chega com o trem: Santa Maria como o Centro Ferro-