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3.2 O aparato projetual da arquitetura e do urbanismo em meio ao planejamento

3.2.3 O planejamento regulatório

Pós-1945, no modernismo “universal”, o mito apropriado às verdades eternas já não era requerido em função da estabilidade no sistema político. Mas o desenvolvimento capitalista apregoava a “modernização” econômica interna- cional, assim uma nova estética foi “forjada” como a resultante de um moder- nismo positivista, tecnocêntrico e racionalista, onde a arquitetura, o urbanismo e o planejamento urbano

[...] tornaram-se artes e práticas do establishment nu- ma sociedade em que uma versão capitalista corporati- va do projeto iluminista de desenvolvimento para o progresso e a emancipação humana assumira o papel

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128 de dominante político-econômica. (HARVEY, 2007, p. 42)

A cidade, previamente esquadrinhada e submetida ao controle rigoroso, não mais estaria suscetível ao acaso e à improvisação. O plano urbano da cidade modernista deveria estar a serviço da eficácia, entenda-se materializar um meio que garantisse a maior produtividade do trabalhador, além de um comportamento social que fosse previsível e harmônico. Passou-se a acreditar, então, que a homogeneidade seria ‘aliada na solução dos grandes antagonis- mos da sociedade capitalista’ (ARANTES, 2001, p. 25).

Inegavelmente que os ideais a-históricos e transculturais do Internacio- nal Style foram essenciais, sobretudo no que tange às soluções industrializadas e padronizadas para um emprego em larga escala. E foi, inclusive, após o fim da 2ª Guerra Mundial, nos países europeus, que o planejamento regulatório assomou-se como um grande sistema ‘tecnocrático-centralizado-autoritário’ (ARANTES; VAINER; MARICATO, 2011, p. 75). Às mãos do Estado do Bem- Estar Social, o objetivo era o de controlar e/ou incentivar o crescimento urbano das cidades e dotá-las com equipamentos coletivos, serviços públicos e habita- ção social.

Apoiando-se na centralização e na racionalidade do aparelho de Estado, o planejamento modernista do Walfare State, de 1945 a 1975, logrou adequar o processo de acumulação capitalista a uma significativa distribuição de renda e a um maciço investimento em políticas sociais (ARANTES; VAINER; MARICA- TO, 2011, p. 125, 126).

Do modernismo, esse planejamento urbano ganhou a herança positivista, a crença no progresso linear, no discurso universal, no enfoque holístico. Da influência keynesiana e fordista, o planejamento incorporou o Es- tado como a figura central para assegurar o equilíbrio econômico e social, e um mercado de massas. A ma- triz teórica que alimentava o planejamento [...] atribuía ao Estado o papel de portador da racionalidade, que evitaria as disfunções do mercado, como o desempre- go (regulamentando o trabalho, promovendo políticas sociais), bem como asseguraria o desenvolvimento econômico e social (com incentivos, subsídios, produ- ção da infraestrutura, regulando preços, produzindo di- retamente insumos básicos para a produção etc.). (ARANTES; VAINER; MARICATO, 2011, p. 126).

Mas nem só de doutrina racional vivia-se. Inúmeras críticas passaram a insurgir da dissociação entre aquilo que pregava o Movimento Moderno versus ao que na prática ocorria durante a fase do Estado como o promotor das mu- danças sociais.

Foi, sobretudo, no contexto de reconstrução das cidades europeias que “aplicou-se” todo o aparato doutrinário e o discurso hegemônico consolidados e divulgados pelos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna119. No período da retomada (Bridgwater, 1947) e dissolução (Otterlo, 1959) dos CIAM, discussões de cunho “transgressor” já sinalizavam um preludio de crise nas pretensões modernistas. Novos temas foram inclusos e debatidos, a tônica, assim, guinava para as relações humanas, por isso a atenção dada, por exem- plo, à pequena escala, ao indivíduo, à comunidade e aos espaços públicos.

No início da década de 1960, Jane Jacobs, no difundido Morte e vida de grandes cidades americanas, publicado em 1961, apresentava um ferrenho ataque ao Movimento Moderno frente ao que observou no cotidiano do bairro de Greenwich Village em Nova Iorque. Em função da profunda incompreensão por parte dos planejadores do que seriam as cidades, pregava pela diversidade urbana, alertava para o quão complexos eram os processos de interação social e defendia o emprego de soluções urbanísticas pautadas pelo incentivo ao convívio nos espaços públicos.

Cabe destacar, ainda, Kevin Lynch por A imagem da Cidade, de 1962. Segundo o autor, o estabelecimento do ordenamento urbano feito a priori, tal

119 Os CIAM constituíram-se como uma série de dez eventos europeus realizados entre 1928 a 1956. Reunindo-se sucessivamente em países diferentes, assembleias de trabalho discutiam como proceder para a realização prática da civilização maquinista, onde só a arquitetura e o urbanismo poderiam exprimir o espírito do novo na virada para o século XX. Desde 1928, na fundação dos CIAM em La Sarraz, na Suíça, a declaração firmada enfatizava o vínculo entre o fenômeno da arquitetura e o do sistema econômico em geral, indicando, de modo explícito, a sujeição da arquitetura às necessidades mais amplas da política e da economia. Os CIAM foram notórios por desenvolver e propagar um ideário de aplicabilidade universal os quais contribuíram para firmar um campo hegemônico da arquitetura e do urbanismo modernos. Em cada realização, a organização e condução da temática elegida cabia a distintos grupos, o que ficou refletido nas suas três fases de desenvolvimento. A primeira etapa, de 1928 a 1933, houve a predominância dos alemães e vigorou um aspecto mais doutrinário. A segunda etapa, de 1933 a 1947, sob a liderança dos franceses, destaca-se a figura de Le Corbusier e a ênfase no planejamento urbano, tendo como ápice a redação da Carta de Atenas. Na terceira etapa, de 1947 a 1953, já no período pós-guerra, são as ideias de cunho liberal que se destacam. O cenário demandava a reconstrução imediata das cidades, a racionalização e a padronização dos projetos e das construções alinhavam-se às indústrias e ao poder estatal. Em 1947, no CIAM VI, realizado em Bridgwater, na Inglaterra, os objetivos voltavam-se à criação de um ambiente físico capaz de satisfazer as necessida- des emocionais e materiais do homem. Uma nova geração de arquitetos surgia, suscitando embates diante ao idealismo da “velha guarda” de arquitetos modernistas. O CIAM VIII, realizado em 1951 em Hoddesdon, na Inglaterra, ao tratar do tema “O Coração da Cidade”, e o CIAM IX, de 1953, encontro em Aix-en-Provence, na França, intitulado “A Carta do Habitat”, culminaram no rompimento decisivo após a reação ao relatório elaborado no CIAM VIII que seguia entendendo a complexidade urbana a partir de um modelo bastante simplista. (FRAMPTON, 2008)

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qual um modelo, deveria contar, portanto, com a percepção a posteriori que derivava do ponto de vista dos habitantes, tornando-os interlocutores dos pla- nejadores, demonstrando a especificidade e a semelhança de cada, ou entre, cidades (CHOAY, 1976, p. 93, 94).

E para completar o quadro de crise social, a publicação de Manuel Cas- tells com A questão urbana, de 1972, e de David Harvey com A justiça social e a cidade, de 1973, o espaço urbano passaria a ser entendido ‘como um produto social e os “problemas urbanos” relacionados com a dinâmica das relações de produção e a estrutura de poder na sociedade capitalista’ (SOUZA, 2010, p. 26).

Ao início dos anos 1970, a crise econômica do sistema capitalista mun- dial abalou a capacidade de investimento e regulação do Estado. O esgotamen- to das estratégias de sustentação do crescimento econômico e do desenvolvi- mento urbano baseado nos gastos sociais promovido pelo Estado estimularam a ascensão do neoliberalismo. A solução veio com o mínimo de intervenção estatal e a livre regulação do mercado. ‘Com a ascensão ao poder de dois representantes da nova direita [...], Margareth Thatcher na Inglaterra e Ronald Reagan nos EUA, o neoliberalismo ganhou um impulso decisivo’ (SOUZA, 2010, p. 30).

Sendo assim, a modernidade instaurou as bases tanto para o ideal de emancipação humana quanto para o progresso tecnológico e científico, de modo que deveriam andar juntos. Mas sem o ímpeto revolucionário artístico e cultural característico à longa história do modernismo, este se configurou assi- milado ao poder estatal e ao imperialismo cultural. Ao invés de “pender” nas oposições da definição de Baudelaire como fizeram as demais vanguardas artísticas, se esvaziou da sensibilidade, sempre como principal meta a atingir, da emancipação humana e das verdades eternas. Ocorreu, por conseguinte, a imposição doutrinária da racionalidade técnico-burocrática às ordens cultural e social. Foi no ápice deste contexto, já no fim da década de 1960, que os movi- mentos contraculturais e antimodernistas vieram à tona, reivindicando pelo fim da hegemonia da “alta” cultura no modernismo (HARVEY, 2007, p. 44).

Neste contexto uma onda crítica passou a ser dirigida às narrativas éti- cas modernas. Tendo como meta o futuro e o progresso (a busca do “Vir-a- Ser”), ou seja, a construção de um projeto econômico e social, as verdades eternas, as metanarrativas e a unificação entre política, economia e vida social, cultural e estética ruíram. Concomitantemente, a crise do capitalismo nos anos 70 impôs a necessidade de o capital refundar o seu regime de acumulação, interferindo na organização do Estado e nas relações sociais. Desta forma, o fordismo/keynesianismo cedeu ao regime de acumulação flexível, e o Welfare State, às políticas neoliberais. Teríamos o sistema capitalista em sua forma tardia ou informacional (HARVEY, 2007; JAMESON, 1997), e as várias esferas

que compõem a vida humana se alteraram. Entraríamos, portanto, em uma nova fase histórico-cultural, o pós-modernismo.