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A ARTILHARIA E O SISTEMA INTERNACIONAL: AS TRANSIÇÕES

2 A ARTILHARIA: ASPECTOS HISTÓRICOS

2.2 A ARTILHARIA E O SISTEMA INTERNACIONAL: AS TRANSIÇÕES

Partindo da descrição acerca da evolução da Artilharia e relacionando-a com os períodos de transição tecnológica, é possível sustentar a existência de uma correlação entre ambas, bem como de suas implicações para o Sistema Internacional.

De fato, desde seu surgimento, a Artilharia esteve relacionada à capacidade estatal, uma vez que apenas os estados que detinham recursos suficientemente grandes poderiam arcar com o ônus da fabricação dos pesados e onerosos canhões. Como afirma O'Connel (1989, p. 136), a tecnologia utilizada para fabricar canhões fez da “era das armas de fogo uma era de príncipes” em que poucos países, como “França, Espanha, Inglaterra, Sacro Império Romano-Germânico, Turquia e mais tarde Rússia e Prússia”, os quais detinham grandes reservas monetárias, mão de obra qualificada e recursos minerais, puderam ter acesso à grande letalidade obtida à distância que aquelas armas proporcionavam, obtendo, através de sua posse e seu emprego, vantagem decisiva na conquista de territórios que possibilitassem acesso a mais recursos. Esse fenômeno alterou o equilíbrio de poder na Europa, viabilizando a formação dos Estados Soberanos Territoriais, fomentando a polaridade das nascentes monarquias, com políticas expansionistas e, simultaneamente, reduzindo a influência das cidades-estados italianas e outras pequenas monarquias europeias.

O fenômeno acima pode ser demonstrado pela competição armamentista entre o Reino da França e o Ducado de Borgonha que, na segunda metade do século XV, após incorporar as técnicas de fundição de bronze de fabricantes de sinos das catedrais góticas,

produziu um canhão muito mais leve a partir da inventividade dos artesãos dos Países Baixos que substituíram o projétil de pedra por uma esfera de ferro e, simultaneamente, introduziram o uso de pólvora granulada, que oferecia uma combustão mais rápida, imprimindo maior velocidade ao projétil (MCNEILL, 2014, p. 104-105). Essa inovação possibilitou a confecção de canhões até três vezes menores, mais leves e seguros, o que tornou possível o transporte desses materiais, visando sua utilização nos cercos a fortificações. Foi, dessa forma, emblemática a expedição de Carlos VIII que atravessou com um conjunto de 350 canhões conduzidos por 8.000 cavalos a nova artilharia de cerco móvel, para então tomar o Reino de Nápoles. (ALVES, 1959, p. 82).

Não fosse o esforço empreendido por engenheiros italianos, ao qual somou-se a genialidade de Leonardo da Vinci e de Michelângelo, ao desenvolverem a trace italienne26 – como ficou conhecida o conjunto de técnicas de fortificações que incluíam fossos e parapeitos de terra pouco compactadas, com canhões de proteção para fogos de contrabateria – a Europa Ocidental poderia ter-se convertido em um império unificado, como de fato ocorreu em outras regiões de globo, como na Ásia, na Europa Oriental e nas Américas, onde formaram-se impérios como o Mughal, na Índia, o Moscovita, na Rússia, o Otomano, na Europa Oriental, além dos vastos domínios territoriais de Portugal e Espanha decorrentes da utilização dos canhões móveis (MCNEILL, 2014, p. 113). Conforme constata McNeill (2014, p. 116, grifo nosso), “a extensão dos impérios Mughal, Moscovita e Otomano foi definida, na prática, pela mobilidade de suas peças de artilharia imperiais.”

De fato, o fenômeno da consolidação de uma unidade imperial deixou de ocorrer na Europa, em parte pela horizontalização das capacidades estatais, militares ou produtivas, como se pode ver pela importação de técnicas de construção de fornos e fundição de metais pela Suécia a partir dos Países Baixos no século XVII. O papel da Artilharia, nesse período, se deu em sentido contrário, uma vez que as nações que ameaçavam o status quo passaram a dominar as técnicas de produção de canhões, a exemplo de Gustavo Adolfo, Rei da Suécia, que inovou a arte da guerra devido ao emprego eficiente de canhões mais leves em apoio à manobra da infantaria e cavalaria em todas as fases do combate. Antes da implementação técnica e tática de Gustavo Adolfo, apenas ocasionalmente a artilharia havia

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Expressão francesa, literalmente 'traço italiano', que designava o modo italiano de adaptar as fortificações à ameaça representada pelo novo armamento de cerco: o canhão.

desempenhado papel importante no transcurso de batalhas, exceto como referido nas batalhas de cerco, uma vez que era muito difícil ter armas pesadas em campo.

Dessa forma, o impasse da Guerra dos Trinta Anos deveu-se, em grande medida, ao fato de a Artilharia de Campanha compensar qualitativamente a excelência dos Tercios Espanhóis. Os Tercios - formação típica espanhola dos séculos XVI e XVII, constituída por piqueiros ao centro da formação, escoltados por arcabuzeiros e ulteriormente por mosqueteiros, em formação quadrangular - são a consolidação do acúmulo histórico na experiência humana de fazer a guerra desde a antiguidade. Eram considerados, também, a representação da superioridade de recursos econômicos humanos e materiais dos Habsburgos. Como ficou evidenciado na Batalha de Rocroi (1643), as tropas francesas derrotaram as espanholas devido à capacidade de coordenação e controle de seus comandantes e ao uso intensivo de canhões.

Nesse contexto, o canhão horizontalizou as capacidades de combate, decretando o fim da hegemonia da infantaria espanhola nos campos de batalha e de uma forma de combate considerada invencível. Daí a constatação quanto à centralidade da Artilharia na formação do Sistema Internacional, pois ao limitar as pretensões hegemônicas do Sacro Império Romano-Germânico gerou a situação de equilíbrio que culminaria com o surgimento do Sistema Internacional.

A partir do século XVIII, os avanços da ciência trouxeram aplicação prática para as técnicas de tiro dos canhões. A contribuição de físicos como Galileu Galilei, Huyghens e Newton pela descoberta da Lei da Gravidade e da Resistência do Ar e de suas variações, foi a base para o desenvolvimento da ciência balística, que auxiliaria na predição do local que os projéteis disparados atingiriam. Dessa forma, podia-se, assim, melhor direcionar as robustas armas, somando ao efeito explosivo um resultado efetivamente letal sobre o adversário. Em 1742 foi então publicada a obra New Principles of Gunnery, de Benjamin Robins, que foi amplamente debatida à época e revolucionou o conhecimento sobre técnica de tiro de artilharia (ALVES, 1959, p. 141).

Com o século das luzes, foi possível unir o método científico aos avanços da engenharia, dando um caráter tecnológico às inovações no ramo da artilharia. Decorrente desse avanço sem precedentes, seguiu-se a Revolução Industrial, que trouxe em seu arcabouço a contribuição das máquinas a vapor de baixa e alta pressão. As evidências desse processo puderam ser vistas na França onde, ao processo fabril introduzido por Jean Maritz,

uniram-se as inovações técnicas de Gribeauval, cujo resultado foi um canhão de elevado refinamento e precisão, que pode ser produzido com uniformidade, e do qual foram tributárias todas as conquistas do período napoleônico.

A inovação de Maritz-Gribeauval, portanto, representa o marco em que foi possível caracterizar efetivas alterações tecnológicas na produção de canhões e na artilharia de modo geral, partindo-se do entendimento que o avanço tecnológico requer o domínio das condições para ocorrência de um fenômeno, de modo a possibilitar o caráter translocal de sua reprodução. (DUARTE, 2012a, p. 9 a 13). A seguir, pode-se verificar no Quadro 1, que foi confeccionado com base em estudo produzido por Carlota Perez (2002), o qual refere a existência de cinco paradigmas tecnológicos. Neste quadro procurou-se relacionar as evoluções tecnológicas com as respectivas evoluções no campo militar da Artilharia de Campanha e suas consequências para o Sistema Internacional.

Quadro 1 – Revoluções Tecnológicas e a Artilharia de Campanha

* De acordo com dados levantados por McNeill (2014), o Processo Bessemer foi patenteado em 1857, diferentemente da Planta produtora de aço de Carnegie (1875) segundo Perez (2002).

Fonte: elaborado pelo autor (2019), com base em Perez (2002).

Os períodos de transição tecnológica que se sucederam impactaram diretamente o desenvolvimento das bocas de fogo, mas também é verdade que determinados avanços na ciência e na metalurgia foram decorrentes da necessidade de otimizar o fabrico de canhões

para as guerras. Dentre esses, merece destaque o processo Bessemer de produção do aço, que fruto de uma necessidade constatada na Guerra da Crimeia, sobretudo no que concerne a uma deficiência dos materiais de artilharia da época, gerou uma ansiosa busca pela produção de armamentos em larga escala, o que veio a redundar numa nova onda da Revolução Industrial, considerada por alguns autores como Segunda Revolução Industrial e que contou como principais insumos, em um primeiro momento, a eletricidade e o aço.

Como resultante deste período que se estende ao longo da segunda metade do século XIX até o primeiro quartil do século XX, obtêm-se os canhões de aço, raiados e de retrocarga, com capacidade aumentada de alcance e a produção em larga escala de armamentos que vai resultar na corrida armamentista, que redundou na Primeira Grande Guerra. Ainda, como resultado para a doutrina de apoio de fogo terrestre, temos o emprego do tiro curvo de longo alcance para a Artilharia de Campanha, que foi possível graças aos avanços obtidos na produção do armamento de aço, somado ao uso do telefone e de outros equipamentos óticos e de topografia, o que possibilitou a condução do tiro por observadores avançados. Este elemento representou uma substancial mudança de doutrina, que trouxe efeitos notáveis para as operações terrestres.

Com o advento dos motores a combustão e o surgimento dos primeiros automóveis e aeroplanos no início do século XX, inicia-se uma nova fase de evolução tecnológica. Esse último insumo, o do motor a combustão e do petróleo, emprestou notável mobilidade às plataformas de combate. Note-se que, ainda na Era do Vapor e das Ferrovias (Quadro 1), com o uso de locomotivas e de canhões ferroviários, todo o aparato da guerra já havia recebido significativa mobilidade estratégica. Já no transcurso da Segunda Guerra Mundial, os meios empregados recebem mobilidade tática, pelo incremento proporcionado pelos veículos blindados sobre lagartas, fator que vai resultar em um novo paradigma da guerra: o da Guerra de Movimento. A Artilharia de Campanha, também se beneficiou desse incremento, inicialmente pelo atrelamento das peças a veículos automotores - artilharia autorrebocada – mas sobretudo pela forma com que incorporou o novo embate de blindados, isto é, pelo desenvolvimento e emprego dos obuseiros autopropulsados.

Por fim, tem-se que a Artilharia encontra amparo no seio da Terceira Revolução Industrial, por intermédio da digitalização das plataformas de combate – por plataformas, entende-se, nesse caso específico, as peças de artilharia ou obuseiros, como também as viaturas de apoio necessárias à integração das redes de Comando e Controle do Sistema de

Artilharia de Campanha – com vistas à sua integração em uma ampla rede de Comando, Controle, Comunicação, Computadores, Inteligência, Vigilância e Reconhecimento (sigla em Inglês: C4ISR), de modo a prover a consciência situacional em todos os níveis de comando.