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2 A ARTILHARIA: ASPECTOS HISTÓRICOS

2.1 SURGIMENTO E EVOLUÇÃO DA ARTILHARIA

2.1.3 A inovação francesa do século XVIII

Foi na França, durante o século XVIII, que a Artilharia recebeu seus maiores avanços técnicos. O Rei Luís XIV já havia organizado a primeira tropa destinada especialmente ao serviço de Artilharia, ainda em 1693, a Royal Artillerie. Em 1732, Luís XV designou Jean-Florent de Vallière como responsável pela reorganização do material de artilharia.

Vallière aperfeiçoou as viaturas da campanha, com vistas a melhor resistir ao recuo. Padronizou também o material, reduzindo o número de calibres, bem como estabeleceu especificações de peso, tamanho, espessura e calibre, normatizando a fabricação mediante rígidas especificações por meio de tábuas e plantas de construção. Contudo, até meados do século XVIII as peças de artilharia francesas continuavam muito pesadas em comparação às prussianas e às suecas, o que impossibilitava que se levasse para as campanhas mais que um canhão por mil homens (ALVES, 1959, p. 120).

Segundo McNeill (2014, p. 198), “o canhão, quando fundido, era pesado demais para deslocar-se com a tropa e então raramente aparecia no campo de batalha. Seu emprego principal era defender e atacar fortalezas.”.

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Figura 7 – Canhão de Vallière

Fonte: Vallière (2017).

A padronização estabelecida por Vallière era apenas aproximada, uma vez que as peças não podiam ser fundidas seguindo um formato idêntico. A técnica até então utilizada, fundia canhões utilizando um molde em que se tentava, com técnicas manuais, alinhar o orifício do interior de cano com a parte externa do armamento. Assim, por mais hábil que fosse o artesão, era praticamente impossível alinhar o núcleo do molde com o exterior, ocasionando um desalinhamento entre a câmara e interior do tubo com o exterior do cano, além de outras irregularidades, resultando num armamento mais pesado, impreciso e inseguro. Isso gerava, dentre outros fatores, insegurança e pouca eficiência por ocasião do tiro.

Foi a partir da inovação de Jean Maritz, um engenheiro e metalúrgico suíço a serviço da França, que se tornou possível a fabricação de peças mais leves.

Jean Maritz, engenheiro e metalúrgico suíço a serviço da França, desenvolveu uma máquina de perfuração com a intenção de fundir canhões como uma peça sólida de metal, perfurando o cano ao fim do processo. Isso gerou uniformidade e precisão na fabricação de canhões. A partir de 1755, com uso dos fornos de fundição, já em plena Revolução Industrial, foi possível também fundir vários canhões de uma única vez, propiciando a produção em série.

Figura 8 – Canhão fabricado pelo processo Jean Maritz

Fonte: Mori (2018, p. 41).

O ajuste muito mais preciso entre projétil e alma do tubo advindo do cano perfurado proporcionou canhões mais leves e manobráveis, sem perder poder de fogo. Os canos poderiam ser encurtados e com paredes mais finas, uma vez que era necessário menos pólvora para a explosão produzir o mesmo efeito. Além disso, os canhões produzidos em série eram muito mais seguros, uma vez que o metal tinha a mesma espessura em todas as partes do cano.

Os canhões fabricados por Maritz ainda não haviam sido testados em combate quando, após a derrota na Guerra dos Sete Anos, Luís XV manda acionar Jean Baptiste Vaquette de Gribeauval, oficial de Artilharia que, após passar quatro anos estudando os métodos de artilharia na Prússia de Frederico, foi enviado à Áustria já no curso da Guerra dos Sete Anos, onde participou capturando um ponto forte silesiano com canhões de cerco.

Gribeauval chefiou uma equipe de artilheiros franceses para testar canhões recém- desenvolvidos a partir da inovação mecânica de Jean Maritz, entre os anos de 1763 e 1767. Foi a partir da inovação fabril de Jean Maritz, portanto, que Gribeauval desenvolveu uma série de modificações, fruto de sua experiência adquirida durante os anos de aprendizado na Prússia e nos cercos da Guerra dos Sete Anos. Gribeauval reprojetou todos os demais acessórios necessários à artilharia de campanha, tais como, carretas, carroças de munição, arreios e dispositivos de pontaria. Além disso, introduziu um dispositivo em forma de parafuso que ajustava a elevação da arma com precisão e uma mira com retículo ajustável que tornou possível estimar com precisão o ponto de impacto do projétil antes da arma ser disparada.

Figura 9 – Canhão com acessórios adaptados por Gribeauval

Fonte: Chartrand; Hutchins (2003).

No tocante à munição, Gribeauval agregou projétil e carga de projeção num pacote único, o que aumentou significativamente a cadência de tiro. Desenvolveu, ainda, diferentes tipos de munições, constituídas de projéteis sólidos, granadas ou balotes, para empregar em situações diversas, assegurando, assim, a versatilidade dos canhões.

O esforço de Gribeauval resultou em uma artilharia de campanha tão móvel e eficiente que seria capaz de acompanhar todos os movimentos da infantaria, possibilitando apoiar pelo fogo denso e preciso todas as etapas da manobra.

O batismo de fogo dessa surpreendente arma se deu no Bombardeio de Valmy, em 1792, e a partir de então todos os êxitos do exército revolucionário de Napoleão teve a presença desse fator diferencial nos combates, capaz de almejar alvos a distâncias maiores que mil metros. Devido a essas inovações e a toda a sistematização estabelecida por Gribeauval, este foi chamado por Napoleão Bonaparte “pai da artilharia francesa”.

William McNeill considera essa modificação feita tanto na fabricação do armamento quanto no emprego, instrução e adestramento do canhão sem precedentes na história, comparável apenas ao surgimento das catapultas na antiguidade e aos aperfeiçoamentos feitos pelos artesãos nos canhões, durante o século XV, quando os primeiros projéteis de ferro foram introduzidos, chegando a tipificar essa inovação como uma “transformação radical”. O impacto dessa transformação foi tão profundo que afetou até mesmo a cultura militar da época, ocasionando natural resistência por parte de antigos

soldados e mesmo políticos aos novos valores de combate, em que a técnica superava a coragem e a força física22.

Vale considerar que, embora a perfuratriz de Jean Maritz, associada às adaptações de Gribeauval tenha desempenhado papel de extrema relevância junto à reestruturação que o exército francês sofreu nas últimas décadas do século XVIII, é sabido que a conjuntura política ditou a necessidade dessa transformação organizacional.

O orgulho nacional ferido após os fracassos e derrotas na Guerra dos Sete Anos e o sentimento coletivo de que a França deveria reaver a liderança sobre a Prússia em terra e sobre a Inglaterra nos mares foi a força que impulsionou as alterações estruturais. Não fosse assim, a resistência à inovação motivada por interesses pessoais poderia ter barrado o ímpeto da transformação institucional. (MCNEILL, 2014, p. 195)

Uma evidência disso, é que somente após a morte de Vallière, Gribeauval consegue implementar suas reformas: “Esse notável artilheiro teve de sustentar terrível luta contra seus opositores, encabeçados por Vallière, e somente após a morte deste, sendo nomeado Inspetor Geral, em 1777, pôde fazer triunfar seus pontos de vista.” (ALVES, 1959, p. 126).