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3 A ARTILHARIA INTEGRADA À REDE

3.4 TRANSFORMAÇÃO E INOVAÇÃO DISRUPTIVA

3.4.1 Antecedentes da Transformação Militar

O conceito específico de transformação militar desenvolveu-se mais amplamente após a virada do milênio, porém conceitos similares o precederam, como também o precederam antecedentes remotos e imediatos.

Os antecedentes remotos remontam ao início da Guerra Fria quando, diante da superioridade de capacidades militares convencionais soviéticas obtidas após a Segunda Grande Guerra, o governo norte-americano resolve lançar mão de um conjunto de políticas, denominadas offset strategies (estratégias de compensação).

A primeira estratégia de compensação (First Offset Strategy), lançada a partir de meados da década de 1950 pelo governo norte-americano, visava dissuadir sua potência rival de avançar sobre o teatro de operações europeu, por meio do desenvolvimento e ampliação de capacidades nucleares e das respectivas plataformas de lançamento. O objetivo era elevar o custo humano, político e econômico que a União Soviética teria que arcar ao iniciar uma guerra convencional. Esse objetivo foi atingido, uma vez que compensou efetivamente as vantagens das capacidades convencionais soviéticas, dissuadindo os países integrantes do Pacto de Varsóvia de avançar sobre a Europa (TEIXEIRA JÚNIOR; DUARTE, 2018, p. 14).

No decorrer da década de 1960 ocorre o aumento da participação estadunidense na Guerra do Vietnã, cujo término, em agosto de 1973, marcou um capítulo dramático na

história das Forças Armadas dos Estados Unidos, o que gerou fortes questionamentos acerca do perfil de Força e da forma com que essas forças deveriam atuar em combate.

Como resposta a essa crise institucional, os efetivos do Exército estadunidense foram profissionalizados e foi implementada uma reestruturação administrativa completa denominada Operação STEADFAST (sinônimos possíveis do Inglês: firme, constante, inabalável) a qual estabelece, em 1973, o Comando de Treinamento e Doutrina do Exército (TRADOC)49. Caberia ao TRADOC, a partir de então, assumir todo o desenvolvimento doutrinário, de ensino e treinamento do Exército. Segundo Trizzotto (2018):

[...] até então, a doutrina militar era um resultado do processo de treinamento de soldados e líderes e do equipamento disponível. Com a profissionalização do Exército e a Reorganização STEADFAST, é a doutrina militar que passa a guiar o treinamento e as requisições de material; o TRADOC passa a requerer as tecnologias que seriam desenvolvidas e não a simplesmente escolher, dentre as que estavam disponíveis, aquelas que melhor conviessem. O processo de desenvolvimento de armamentos passa a ser da consciência para a realidade, o que não tinha precedentes à época. (TRIZZOTTO, 2018, p. 16).

Diante de um quadro em que doutrina e equipamentos encontravam-se defasados em relação à União Soviética, urgia ao TRADOC a reformulação da doutrina militar vigente, a qual era calcada nos princípios da Estratégia do Atrito50, que previa o uso da massa e da mobilização nacional. Foi concebida, portanto, em 1976, a Doutrina de Defesa Ativa, que previa, diante da hipótese de iniciativa de ataque por parte das forças do Pacto de Varsóvia, no Fronte Central da OTAN51, a realização de uma ação defensiva de atrito seguida de um ataque em profundidade sobre as reservas do inimigo.

Essa concepção doutrinária foi fortemente criticada pela sociedade norte-americana, pois, por ser calcada em posições defensivas, decorreria daí um elevado desgaste das tropas, o que viria a exaurir as forças da OTAN num eventual confronto. Diante desse quadro de insatisfação, Donn Starry assume o TRADOC e empreende um esforço no

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TRADOC – Comando de Treinamento e Doutrina do Exército dos Estados Unidos (do Inglês: United

States Army Training and Doctrine Command). Criado em 1973 com o objetivo de reformular a doutrina empregada no Vietnã e de subordinar a essa doutrina militar reformulada as políticas de aquisição de material e desenvolvimento de sistemas para as FFAA.

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Estratégia de atrito – Como definida pelo historiador militar alemão Hans Delbrück, procura incapacitar

o poder de combate inimigo, esgotando-o com “golpes de todos os tipos”, adotando atitudes como cercar uma fortaleza, ocupar uma província, bloquear as linhas logísticas do inimigo, formar uma aliança ou cortar um destacamento do oponente (LINN, 2002, p. 503).

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O Front Central da OTAN constituía-se na principal hipótese de emprego das FFAA dos EUA e,

segundo Mearsheimer (1982a), seria travada na região central da Europa, na fronteira entra Alemanha Oriental e Ocidental, entre tropas da OTAN e do Pacto de Varsóvia.

sentido de reformular a Defesa Ativa para uma estratégia mais efetiva. Surge assim a

AirLand Battle (do Inglês: Batalha Ar-Terra, ALB), doutrina que previa ataques

simultâneos na retaguarda profunda do inimigo, o que exigiria elevado nível de coordenação entre as forças da OTAN.

De acordo com Trizzotto (2018),

A ALB vai um passo além da Defesa Ativa, tendo como foco os ataques simultâneos na frente de combate e, em profundidade, na retaguarda inimiga, utilizando-se da coordenação profunda entre forças aéreas e terrestres. Buscava- se, dessa forma, interditar os movimentos inimigos na retaguarda. Para isso, o conceito operacional prevê o emprego conjunto e integrado de forças terrestres, aéreas e navais em operações em profundidade, manobras de ação indireta, ataques aéreos decapitantes e de interdição, e operações especiais, tudo isso presidido pelo uso intenso de tecnologia no campo de batalha, objetivando uma guerra curta, com poucas baixas e custo limitado (TRIZZOTTO, 2018, p. 18).

Por ser uma doutrina complexa que rompeu paradigmas na década de 1980, seria necessário investir recursos no desenvolvimento de plataformas avançadas e sistemas integrados de tecnologia. Sendo assim, aproveitou-se de uma política lançada em meados da década de 1970, a segunda estratégia de compensação (Second Offset Strategy) que, por sua vez, dava ênfase ao desenvolvimento de sistemas de precisão e sistemas de comunicações integrados, além do desenvolvimento de aeronaves com tecnologia stealth, isto é, com capacidade furtiva face à detecção por radares. O objetivo dessas medidas era assegurar aos EUA maior possibilidade de reação, proporcionando maior flexibilidade estratégica, operacional e tática.

A Second Offset Strategy empreendeu grande avanço, levando à criação de diversos sistemas, como o Sistema de Defesa de Navegação por Satélite – que posteriormente viria a se tornar o amplamente utilizado sistema de posicionamento global (Global Position

System - GPS); também o Sistema Conjunto de Informações Táticas (Joint Tactical Information System); e o Programa Conjunto de Fusão Tática (Joint Tactical Fusion Program). Além disso, nesse mesmo período, foram desenvolvidas e produzidas as

plataformas de combate que até hoje são consideradas a espinha dorsal das FFAA norte- americanas, as quais são popularmente conhecidas como “18 Army Legacy”. Ao todo, constituíram-se em sistemas que elevaram a capacidade de gerenciamento e obtenção de informações em combate, tornando os EUA tecnologicamente e militarmente superiores à URSS (TEIXEIRA JÚNIOR; DUARTE, 2018, p. 15).

De acordo com Elinor Sloan (2008, p. 2), analistas soviéticos haviam constatado, já na segunda metade da década de 1970, que o desenvolvimento de computadores, sistemas de vigilância espacial e de mísseis de precisão de longo alcance permitiam ao Ocidente competir ou mesmo superar qualitativamente o Oriente em capacidade militar convencional, o que fomentou os primeiros estudos sobre a então denominada Revolução Técnica Militar (Military Technical Revolution – MTR).

Dessa constatação, pode-se inferir que o somatório de medidas implementadas nos EUA com a Second Offset Strategy fez com que os EUA superassem qualitativamente a URSS, atingindo, portanto, seu objetivo. Segundo o mesmo autor, no início da década de 1980, Nicolai Ogarkov, então Chefe do Estado-Maior Soviético, ficou convencido de que os EUA encontrava-se nos primeiros estágios de uma MTR, o que levou a União Soviética a aumentar seus gastos com defesa, a fim de comprar equipamentos tecnologicamente avançados. Essas medidas levaram a URSS a ver aumentadas suas dificuldades econômicas, que eventualmente corroboraram para o colapso soviético.

Os eventos da queda do Muro de Berlim (1989) e do colapso da União Soviética (1991) delinearam pensamentos acerca da unipolaridade mundial. Dessa forma, projetava- se a ideia de que nenhuma outra potência voltaria a ameaçar a ordem estabelecida pelos Estados Unidos no sistema internacional, o qual estaria configurado pela predominância vitoriosa do sistema democrático liberal, tutelado por essa superpotência. Francis Fukuyama aborda essa questão na obra “O Fim da História e Último Homem”, lançada em 1992:

Argumentei que um consenso notável a respeito da legitimidade da democracia liberal como um sistema de governo havia surgido em todo o mundo nos últimos anos, à medida que conquistava ideologias rivais como a monarquia hereditária, o fascismo e, mais recentemente, o comunismo. Mais do que isso, no entanto, argumentei que a democracia liberal pode constituir o ponto final da evolução da humanidade e a forma final de governo humano e, como tal, constituiu o fim da história. (FUKUYAMA, 1992, p. xi).

Chegou ao conhecimento do público, nesse mesmo ano, o documento Defence

Planning Guidance (Orientação de Planejamento de Defesa), redigido sob a chefia de Paul

Wolfowitz, quando este era Subsecretário para Políticas de Defesa do Governo George Bush. O documento ficou conhecido como Doutrina Wolfowitz e traçou os objetivos e linhas gerais da política externa dos EUA no período pós-Guerra Fria, bem como guiou as ações das FFAA norte-americanas. Claramente inspirado nas obras de Fukuyama, como

também em Paz Democrática (1986), de Michael Doyle - que fortalecia o papel da OTAN, mesmo após a queda da União Soviética, dessa vez com a finalidade de sustentar (ou implantar) as democracias liberais ao redor do mundo, fomentando assim a paz mundial – o

Defence Planning Guidance visava à prevenção da emergência de um novo polo no

Sistema Internacional, a fim de garantir a manutenção da unipolaridade norte-americana. O documento previa, ainda, a ação unilateral e mesmo preemptiva dos EUA, caso não contasse com apoio de aliados, contra ameaças à segurança nacional. Contudo, essas diretrizes previam a adaptação e mesmo redução de forças para atuar na defesa externa, expressando a confiança no ambiente de segurança muito mais favorável do que o antecedeu.

No campo dos estudos militares, a teoria de William Lind sobre Guerra de Quarta Geração era amplamente debatida, juntamente com os estudos sobre MTR que haviam sido interrompidos na União Soviética após a queda do regime comunista. Segundo Lind, a Quarta Geração da Guerra é caracterizada por uma quebra no consenso acerca do monopólio estatal da guerra, jamais vista desde a Paz de Westfália, cuja origem se encontra na crise universal do Estado (LIND, 2005, p. 14). Dessa forma, além de herdar características inerentes à Terceira Geração da Guerra, como a descentralização e a iniciativa, os conflitos armados assumiriam um perfil difuso, com atores não-estatais diretamente envolvidos, onde táticas de guerrilha ocorreriam simultaneamente a combates convencionais.

Sobre a documentação soviética da MTR, pode-se inferir, conforme Sloan (2008, p.3), que essa já se encontrava sob estudos do Departamento de Defesa dos EUA desde 1980. Em 1993 o nome MTR foi substituído, por Andrew Marshall, pelo termo Revolution

in Military Affairs (do Inglês: Revolução em Assuntos Militares - RMA), para designar

semelhante proposta, na qual a aplicação de novas tecnologias às plataformas e centros de comando e controle havia produzido uma alteração substancial não apenas na forma de combater, como também na própria natureza da guerra, o que demandaria novas capacidades para as Forças Armadas. Segundo esse conceito, essas capacidades seriam possibilitadas mediante uma completa reestruturação organizacional, bem como necessárias alterações na doutrina militar e conceitos operacionais. Sobre a definição de RMA, conforme definiu Andrew Marshall em 1993, tratava-se de

[…] uma grande mudança na natureza da guerra trazida pela aplicação inovadora de tecnologias, as quais combinadas com dramáticas mudanças na doutrina militar e novos conceitos operacionais e organizacionais, altera fundamentalmente o caráter e a condução das operações militares. (SLOAN, 2008, p. 3, tradução nossa).

Ao longo da década de 1990, fortemente impactados pelas operações da Guerra do Golfo, esses debates tomaram uma configuração sensivelmente diversa do propósito anterior mais “revolucionário”, passando a ser preferida pelos círculos militares estadunidenses a palavra “transformação”, fruto de uma evolução no entendimento conceitual sobre o fenômeno em tela. De fato, a Operação Tempestade no Deserto evidenciou que já havia um processo de transformação em curso nas FFAA dos EUA, nas quais os elementos tecnológicos produziram um efeito decisivo para o sucesso na condução daquele conflito.52

A Guerra do Golfo serve de marco, portanto, em que se percebe que o perfil de força norte-americana havia passado pela transição do “velho modo americano de fazer a guerra”, baseado no atrito e no poder de fogo maciço, para o da guerra informacional, no qual as armas de precisão, a superioridade de informações e as manobras rápidas e furtivas ganharam a supremacia no espaço de batalha (BOOT, 2003, p. 29)53.