• Nenhum resultado encontrado

Ao fazer referência à atividade tradicional de extração do coco babaçu, a tradição não se remonta ao passado, não tem a ver com a história, mas se refere à consciência do presente, das lutas atuais e em como elas estão acontecendo (ALMEIDA, 2006b, p. 9). Tradicional também não se refere apenas a terra, pelo contrário, diz respeito àqueles que a estão ocupando: “Tradicional é uma maneira de ser, uma maneira de existir, é uma maneira de demandar, de ter uma identidade coletiva, que é a experiência política do grupo face a outros grupos e ao próprio Estado” (ALMEIDA, 2006a, p. 67).

O termo tradicional, expressa a forma como as comunidades, que se apresentam como tradicionais, ou assim são denominadas, estabelecem as suas relações com os meios de produção, sendo o tempo, nesse caso, desprezado, o que não é determinante há quanto tempo aquele espaço é ocupado pelo grupo, se um dia ou um mês, a terra é tradicional, e logo, a ideia de tradicional não é trabalhada como centenária ou imemorial, denota a maneira de existir coletivamente, logo, “é o que caracteriza esse outro mundo possível” (ALMEIDA, 2006a, p. 65). A forma de se relacionar com as palmeiras de babaçu e o sentimento nutrido pelas mulheres quebradeiras em relação aos benefícios que a palmeira de babaçu proporciona, revela a maneira peculiar e tradicional das comunidades que vivem do babaçu.

O tradicional na forma de viver das mulheres quebradeiras está ligado diretamente à relação com o recurso natural do babaçu, caracterizando uma organização peculiar. A quebradeira de coco Sebastiana Ferreira, moradora do município de Lago do Junco, Estado do Maranhão, traduz o que a palmeira de babaçu, significa para as mulheres quebradeiras de coco: “A vida. Pra mim o babaçu representa a vida”123. Toda a relação de afetividade das mulheres quebradeiras com as palmeiras de babaçu foram a base para a luta pelo babaçu livre, e de acordo com Joaquim Shiraishi Neto (2004, p. 189), as mulheres quebradeiras de coco babaçu interferem na cultura jurídica ao darem novo significado para a propriedade privada da terra, pois para as mulheres quebradeiras é impensável separar a atividade extrativa do babaçu da sua condição de vida.

A palmeira de babaçu representa para as mulheres quebradeiras um bem principal e não secundário ao solo, logo não pode ser tomado como algo abstrato, ou seja, o babaçu é o bem mais relevante, não concebendo esse bem como mero acessório da terra, mas como um

123 PROGRAMA GLOBO CIÊNCIA. Episódio: O caminho entre razão e emoção. Exibido pelo Canal Futura. Ano 2008. Apresentado por Alexandre Henderson. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=GsPjWz1i1_U&playnext=1&list=PL3CBED82347F443F6. Acesso em: 30 mai. 2011.

bem de significativo valor, de onde retiram o seu sustento e de suas famílias. O antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida, em entrevista para o Programa Globo Ciência, exibido pelo Canal Futura, em 2008, fala sobre a relação das mulheres quebradeiras de coco babaçu com a natureza, e como o seu saber tradicional convive com as inovações tecnológicas incorporadas pelas mulheres quebradeiras, para gerirem a cooperativa e produzirem o sabonete, o óleo e a farinha de babaçu.

Em Lago do Junco, no empreendimento da cooperativa, a razão do ponto de vista empresarial, a razão do ponto de vista da organização dos fatores que contribuem para a cooperativa eles estão muito presentes. É o saber tradicional delas que lida com a inovação tecnológica. O caso da emoção é a maneira como elas se relacionam com a própria natureza, que é eivada de fortes sentimentos, de fortes laços. O tempo todo defende a palmeira, a minha palmeira, a palmeira que é minha mãe, quer dizer se tem todos esses dados que são dados que revelam uma relação afetiva com a natureza. A relação com a natureza é absolutamente afetiva. E problema todo está justamente em transformar essa relação afetiva, combinada com os outros elementos, mercado, leis de mercado, distribuição de produtos, que permitem os dividendos da cooperativa no final do mês. Então se tem uma combinação entre esses dois elementos. Esses dois elementos fazem parte do fortalecimento identitário e fazem parte da gestão das cooperativas e dos empreendimentos que elas estão levando a cabo neste momento124.

A Constituição de 1988 rompeu com a imemorialidade ao dispor sobre as terras tradicionalmente ocupadas, no artigo 20125, inciso XI, portanto, trata-se de uma inovação importante, já que reconhece não apenas a ocupação física das áreas habitadas pelos grupos, mas a ocupação tradicional. Significa reconhecer o território em toda a extensão necessária à proteção e valorização das particularidades culturais de cada grupo, e “não importa se não tem história, importa quem a ocupa, quais os sujeitos da ação” (ALMEIDA, 2006a, p. 66).

Terras tradicionalmente ocupadas são as terras indígenas, são as terras quilombolas, são as terras ribeirinhas, são as terras dos seringueiros, são as reservas extrativistas e os babaçuais, arumanzais126, piaçabais127, açaizais128, carnaubais129 etc. Não são

124 Idem.

125 Art. 20. São bens da União:

[...]

XI - as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.

126 “Arumã = póapoa (bw) (Ischnosiphon spp.), da família das matantáceas; uma espécie de cana de colmo liso e reto, oferece superfícies planas, flexíveis, que suportam o corte de talas milimétricas; o colmo da planta é descascado/raspado/ariado, pode ser tingido ou mantido na cor natural; também usado com casca, que lhe confere maior resistência e uma cor pardo clara laqueada. O arumã (ou guarimã) é utilizado pelos povos indígenas amazônicos, a partir do Maranhão, onde a planta (que tem várias espécies) cresce em regiões semialagadas”. Disponível em: http://www.artebaniwa.org.br/aruma1.html. Acesso em: 03 set. 2011. “Nosso arumanzal continua vigoroso. Daqui já extraímos muita fibra para tecer nossos utensílios e artesanatos. Levamos arumã daqui e apresentamos bonita Arte Baniwa em Paris, no Ano do Brasil na França. Até já enviamos arumã para pesquisadores que estão experimentando reforçar estruturas de concreto com fibra de arumã, assim como ocorre com outras fibras vegetais", relatam Moisés Luis e Luis Laureano Baniwa, e os principais monitores da experiência de plantio desde que ela foi iniciada na comunidade de Itacoatiara-mirim, em São Gabriel da

imemoriais. Não há mais esta figura imemorial. Importa o presente e não o passado. Importa o hoje e não o ontem. O tradicional não se justifica pela história. Esse é que é o fato novo nesta emergência de novas identidades, porquanto a estes povos lhes foi roubada essa história de permanecer nos mesmos lugares. Foram sempre deslocados forçadamente, empurrados para um lado e para o outro (ALMEIDA, 2006a, p. 66).

Assim, o termo utilizado para fazer referência a essas populações, tradicionais, não pode mais ser interpretado como linear dentro da história ou sob a visão de passado ou mesmo sob a ótica do que sobrou, uma reminiscência, um resíduo, ou algo que é um degrau para a evolução social ou está em extinção, pois o termo tradicional renasce como reivindicação para aspirações contemporâneas e como “direito envolucrado em formas de autodefinição coletiva” (ALMEIDA, 2006b, p. 9). No presente, essas populações emergem através de um processo de construção do próprio tradicional, por meio de mobilizações e conflitos, que modificam com profundidade as formas de solidariedade calcadas em relações primárias, e sob essa ótica, o tradicional se refere ao tempo presente, à contemporaneidade, portanto, o tradicional é social e politicamente construído (ALMEIDA, 2006a, p. 67).

O tradicional se refere ao modo como as mulheres quebradeiras e suas famílias reivindicam seus direitos e lutam para efetivá-los, quando na sua forma de organização em movimento social, na construção da nova identidade de mulher quebradeira, na sua valorização enquanto profissão e atriz participante da vida em comunidade. Para legitimar sua atividade tradicional de coleta e quebra do babaçu, buscam a efetiva promulgação de leis para proteção, tanto da sua atividade, enquanto mulheres quebradeiras como das palmeiras, inibindo o desmatamento, o envenenamento e a colheita de forma irregular do babaçu, assim

Cachoeira (AM). Disponível em: http://www.amazonia.org.br/noticias/print.cfm?id=354131. Acesso em: 04 set. 2011.

127 A piaçava ou piaçaba é uma palmeira. Seu nome científico é Attalea funifera Martius. É espécie nativa e endêmica do sul do Estado da Bahia. O nome vulgar piaçava é de origem tupi, traduzido como “planta fibrosa” com a qual se faz utensílios caseiros. Disponível em: http://www.ceplac.gov.br/radar/piacava.htm. Acesso em: 04 set. 2011. A economia da piaçava é marcada por alta exploração dos ribeirinhos e já vem de longa data, porém só começou a ser denunciada há pouco tempo, conforme relata Alzira Garcia, indígena da etnia tukano e coordenadora do Departamento de Agricultura Indígena de Barcelos (AM). Os proprietários dos piaçabais mantêm inúmeras famílias trabalhando nos igarapés em troca de alimentos e roupas descontado do pagamento. As famílias contraem as dívidas com os proprietários e nunca conseguem pagá-las. "Quanto mais se trabalha, mas a conta aumenta. Muitas vezes morre o pai e os filhos ficam lá trabalhando para pagar as dívidas", denunciou Alzira. Disponível em: http://www.amazonia.org.br/noticias/print.cfm?id=19357. Acesso em 04 set. 2011.

128

Palmeira nativa da Floresta Amazônica que produz frutos de cor roxa. O açaí é um alimento muito importante da dieta amazônica. Hoje é cultivado também em diversos outros estados brasileiros, além da Região Amazônica. Foi introduzido para o resto do mercado nacional durante os anos 80 e 90. Disponível em: http://www.açaí.com/. Acesso em: 04 set. 2011.

129

Palmeira que se adapta em solos arenosos e alagadiços, várzeas e margens dos rios de regiões de clima quente. Com incidência no Nordeste e Pantanal brasileiros.

como o seu indevido aproveitamento pela indústria, leia-se a contratação pelas empresas dos catadores de coco130 (ALMEIDA et al., 2005, p. 85-100).