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O SOCIOAMBIENTALISMO E SUA INFLUÊNCIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

2.5 A MUDANÇA DE PARADIGMAS SOBRE A QUESTÃO AMBIENTAL

2.5.1 O SOCIOAMBIENTALISMO E SUA INFLUÊNCIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Durante a segunda metade do século XX, a antiga concepção sobre meio ambiente foi sendo alterada gradativamente, ou seja, se antes os recursos naturais eram vistos somente como um bem a serviço do ser humano para suprir sua necessidade de sobrevivência, a partir da década de 70, em virtude da degradação da natureza provocada pelo acentuado desenvolvimento industrial e pela demanda crescente por bens de consumo, que poderia ocasionar o esgotamento dos recursos naturais e um colapso nas formas de reprodução e de perspectivas para o futuro, a degradação ambiental passou a ser uma ameaça real ao bem estar, à sadia qualidade de vida humana, quiçá a sua sobrevivência.

Apesar da concepção sobre o meio ambiente e sua proteção ter sofrido uma mudança de paradigmas após a Conferência de Estocolmo, na Suécia, em 1972, e mais intensamente durante os anos 8051, foi somente a partir dos anos 90 que as mudanças foram mais substanciais. De acordo com Edson Ferreira de Carvalho (2005, p. 142), o que se denomina por consciência ecológica é um fenômeno social contemporâneo recente e com repercussão global nas últimas décadas do século XX, ocasionada pela degradação ao meio ambiente, em virtude do modelo de desenvolvimento em vigor na sociedade.

Acreditava-se, antes da Conferência de Estocolmo, que o crescimento econômico era sinônimo de desenvolvimento, mas a importância concedida ao meio ambiente era como fonte de recursos para suprir as necessidades de uma pequena porção da humanidade e como depósito de rejeitos desse grupo, contudo, toda a exploração ao meio ambiente apoiava-se na teoria da percolação, que segundo nos ensina Edson Beas Rodrigues Júnior (2010, p. 121), “presumia-se que a expansão econômica automaticamente promoveria bem-estar social”. O índice do Produto Interno Bruto - PIB era a medida para verificar o crescimento, porém, o crescimento econômico não é suficiente para fomentar o desenvolvimento humano, pois a concentração de riqueza se apresenta como um obstáculo para a efetivação dos direitos fundamentais de grande parte da humanidade.

Com esse novo cenário se apresentando, a Organização das Nações Unidas - ONU, em 1969, aprovou a Declaração sobre Progresso e Desenvolvimento Social, na qual privilegiou a adoção de uma nova concepção de desenvolvimento baseada na efetivação total dos direitos humanos, mas esta Declaração, mesmo que timidamente, a conservação do meio ambiente foi observada e ressaltada como um limite às políticas e atividades, que tinham como finalidade o desenvolvimento material e social (RODRIGUES JÚNIOR, 2010, p. 122). Com a Declaração, o índice do PIB deixa de ser a medida do desenvolvimento para a concretização do bem comum, passando a realização do bem comum a ser responsabilidade dos Estados, que devem buscar promover condições dignas a todos os indivíduos sob suas jurisdições (CANÇADO TRINDADE apud RODRIGUES JÚNIOR, 2010, p. 122).

Essa Declaração estabeleceu como objetivos da política de desenvolvimento a erradicação da pobreza, através da garantia do direito ao trabalho livre e digno, desvinculado de qualquer exploração, o direito à alimentação, direito à saúde e de acesso universal aos bens

51 Foi publicada a Estratégia Mundial para a Conservação. Por esse documento de 1980, publicado em Nova Iorque e elaborado sob o patrocínio e supervisão do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente - PNUMA, da UICN - União Internacional para a Conservação da Natureza e do WWF - Fundo Mundial para a Natureza, “os sistemas tradicionais de manejo deveriam ser incentivados, sem mencionar, no entanto, que se trata de populações locais vivendo dentro ou fora das unidades de conservação” (DIEGUES apud VIANNA, 2008, p. 208).

culturais e à instrução. Em 1971, a ONU reuniu na cidade Founex, na Suíça, especialistas para prepararem um estudo que subsidiasse a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano, que se realizaria em 1972, em Estocolmo, na Suécia, quando o relatório Founex reconheceu a relação de causa e efeito entre, de um lado, o desenvolvimento industrial sem controle dos países industrializados e o subdesenvolvimento econômico nos países pobres e, de outro lado, a degradação de seus ecossistemas (RODRIGUES JÚNIOR, 2010, p. 123).

Buscando soluções, foi organizada a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano, em Estocolmo, Suécia, no ano de 1972, e o resultado dessa Conferência, surgiu à ideia de abandono definitivo da ideia de desenvolvimento pautada apenas na expansão econômica, e argumentou a favor da proteção do meio ambiente para se alcançar o desenvolvimento. Essa nova proposta ficou conhecida como ecodesenvolvimento ou desenvolvimento sustentável.

Desenvolvimento sustentável consiste tanto em um fim quanto em um processo para alcançá-lo. Como fim, consiste na expansão da autonomia do indivíduo e de grupos humanos de perseguirem seu projeto de vida por meio da realização integral de seus direitos fundamentais e da simultânea proteção da base de recursos naturais de que depende sua sobrevivência. [...]. Desenvolvimento como processo constitui uma estratégia de crescimento econômico de longo prazo, caracterizada pela integração das dimensões humana e ecológica ao processo econômico (RODRIGUES JÚNIOR, 2010, p. 123).

A finalidade do desenvolvimento sustentável é a erradicação da pobreza e a efetivação dos direitos fundamentais dos seres humanos, tendo seu limite imposto pela natureza para assegurar às presentes e futuras gerações um desenvolvimento duradouro, portanto, o crescimento econômico deve ser autônomo, sem basear-se em soluções importadas, apto a promover o desenvolvimento sustentável, pois do contrário fomentará a dependência externa e a homogeneização cultural. Como resultado dessa Conferência, surgiram a Declaração de Estocolmo e a implantação do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente – PNUMA, sendo que “esse foi o primeiro foro mundial a debater os graves problemas ambientais do planeta” (CARVALHO, 2005, p. 142).

Outra importante contribuição da Conferência de Estocolmo foi à consciência da relação entre meio ambiente e direitos humanos, mas apesar de não ter declarado abertamente o meio ambiente como um direito humano, a Conferência de Estocolmo estabeleceu a ligação estreita entre o meio ambiente ecologicamente equilibrado e os direitos humanos civis e

políticos como a forma adequada de vida e reprodução física, social, cultural e econômica do ser humano, pois prevê no princípio 1º que:

O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequadas, em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna, gozar de bem-estar e é portador solene de obrigação de proteger e melhorar o meio ambiente, para as gerações presentes e futuras. A esse respeito, as políticas que promovem ou perpetuam o “apartheid”, a segregação racial, a discriminação, a opressão colonial e outras formas de opressão e de dominação estrangeira permanecem condenadas e devem ser eliminadas52.

Com a previsão dos direitos acima e a condenação de práticas nocivas a toda a humanidade, a Conferência de Estocolmo inaugurou o debate não somente sobre as questões ambientais no planeta, mas também levou à baila problemas graves e urgentes de serem denunciados, condenados e combatidos. Em nível nacional o clamor por uma legislação pertinente a regular a proteção do meio ambiente somente veio a ganhar força com o processo de redemocratização do país, no momento em que “se iniciam articulações políticas entre os movimentos sociais e o movimento ambientalista” (SANTILLI, 2005, p. 31), e a partir desse diálogo entre os movimentos, surge o socioambientalismo para influenciar na edição das normas que irão reger todo o contexto ambiental brasileiro.

Esse diálogo funda-se no pressuposto de que as políticas públicas ambientais somente ganhariam eficácia social e sustentabilidade política se houvesse a inclusão das comunidades locais, detentoras de conhecimentos específicos acerca dos ecossistemas a que estão incorporadas, e, indo mais além, o socioambientalismo é uma criação tipicamente brasileira, não podendo ser comparado a nenhuma outra ideia lançada no ambientalismo internacional, pois mostra o rumo para realizar a integração de políticas setoriais, suas perspectivas e atores, num projeto que faz com que o Brasil aprecie e valorize suas peculiaridades pluriétnicas para alcançar a sustentabilidade (SANTILLI, 2005, p. 34).

A Constituição de 1988 trouxe em seu bojo, a preocupação com o meio ambiente, expressa no artigo 22553, consagrando-o como um direito fundamental, então, nesse contexto, o direito ambiental tem como fim o ser humano, vendo esse ser no conjunto de suas dimensões frente à humanidade. Portanto, não podemos dissociar o ser humano da natureza, onde as normas ambientais deverão estar voltadas às relações sociais e não a uma assistência à natureza, o que conseguinte, se deve logo, fazer uma análise sobre as relações entre processos

52 Disponível em: http://www.silex.com.br/leis/normas/estocolmo.htm. Acesso em: 14 jan. 2012.

53 Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

econômicos, ambientais, sociais, políticos e jurídicos, que deverão pautar-se em situações concretas, pois se determinada sociedade entra em conflito com o seu contexto atual, produzirá leis com o objetivo de regular essas novas relações, e assim, acontece com a legislação ambiental, onde a organização social atual está em constante embate, já que de um lado têm-se os benefícios da industrialização e do progresso e de outro se têm a miséria, as doenças, o desconforto e a ameaça à proteção da biodiversidade.

No caso das mulheres quebradeiras de coco babaçu a nova realidade, que começa a ser desenhada com a edição da Lei de Terras Sarney, em 1969, no Estado do Maranhão, totalmente desfavorável às mulheres quebradeiras e suas famílias, tem o cercamento aos babaçuais, institucionalizado pela Lei de Terras Sarney, exige uma nova postura perante a nova realidade que se impõe. A escassez de terras para cultivar a roça e o impedimento ao extrativismo do babaçu induz à necessidade de organização política e social por parte das mulheres quebradeiras, à ressignificação da identidade de mulher quebradeira de coco e à redefinição de papeis femininos e masculinos nos âmbitos público e privado.

Toda a transformação na vida das mulheres quebradeiras teve impulso com o cercamento aos babaçuais, ou seja, a privatização das terras em que existem palmeiras de babaçu reconfigurou as relações sociais entre homens e mulheres no contexto da extração do coco babaçu, e foi decisivo para a identificação e valorização da mulher quebradeira. Para entender as mudanças que ocorreram nas relações de gênero dentro do contexto da extração do coco babaçu é necessário recorrer à crítica feminista que evidencia a conscientização individual e coletiva das mulheres para se tornarem agentes históricas, e participantes da vida em comunidade, se fazendo abandonar as universalidades e definições estáticas e uniformes do que vem a ser papel de mulher e de homem, que é a contribuição da crítica feminista para a reconfiguração dos papeis femininos e masculinos, pois a crítica feminista se divorcia dos parâmetros congelados e valores culturais que pregavam modelos de comportamento essencialistas, ocidental e branco.

Como ressalta María Luisa Femenías (2007, p. 11-12), a sociedade latino-americana está fundada em três raízes, a indígena, a branca europeia e a negra e as questões próprias do feminismo pós-colonial, do multiculturalismo, do ecofeminismo e do pensamento subalterno se configuram a partir da identidade dos inúmeros povos que habitam a América Latina e a universalidade não se aplica a todos os membros da sociedade latino-americana, pois há a discriminação por sexo-gênero, etnia e classe. Como afirma Lourdes Bandeira (2008, p. 210- 212), a crítica feminista parte da consciência histórica, tanto individual como coletiva, reconstruída para possibilitar às mulheres enxergar a dominação masculina, que as excluía das

esferas de poder e tinha como justificativa para tal exclusão a incapacidade e o obscurantismo feminino, mas com os cercamentos aos babaçuais ocorre uma mudança gradual e profunda naquilo que Luiza Bairros (1995, p. 459) denomina de “natureza feminina e outra masculina”, a qual pregava que as diferenças entre homens e mulheres estavam alicerçadas como fatos naturais, e sob essa perspectiva, a opressão das mulheres pelos homens seria um fenômeno universal, não sendo levados em conta os diferentes contextos históricos e culturais.

Nesse sentido, a crítica feminista é importante para o estudo da vida das mulheres quebradeiras, pois colabora fortemente para entender as mudanças que ocorreram não somente nos embates com os proprietários e o Estado, mas em cada mulher quebradeira, que repercutiram na organização do MIQCB, na formação das várias associações e cooperativas, culminadas com a valorização da atividade extrativa e da autoidentificação de mulher quebradeira de coco babaçu, o que foi então uma redefinição de papeis, desnaturalizando o feminino.Ao se organizarem politicamente para enfrentarem a expropriação a que estavam sendo submetidas mais intensamente após a institucionalização da Lei de Terras Sarney, proporcionou às mulheres quebradeiras uma mudança de paradigmas nas suas relações privadas e públicas, oriundas dos diálogos promovidos dentro do MIQCB, das associações e das cooperativas, que fortaleceram a autoidentificação e a valorização da mulher quebradeira de coco babaçu, e promoveu rupturas com antigos paradigmas de determinação dos papeis sociais que deveriam ser desempenhados por homens e mulheres.

A luta por meio do MIQCB e a nova identidade política da mulher quebradeira, romperam barreiras tanto no espaço privado como no público, possibilitando à mulher quebradeira sair do ambiente familiar para lutar pela livre extração do babaçu, pois o recurso natural do babaçu é fonte de renda indispensável para a vida das 400 mil famílias que se dedicam ao extrativismo do babaçu. A luta é intensa e violenta para garantir o livre acesso ao babaçu, como afirma a quebradeira de coco Maria Alaídes de Souza, no momento em que as mulheres quebradeiras buscavam dialogar com os proprietários, e mostrar que o coco babaçu era indispensável à sobrevivência das suas famílias, que aquele recurso natural era primordial para o sustento das comunidades que dependiam da sua extração, e apresenta a violência com que eram tratadas as mulheres quebradeiras ao reivindicarem o direito de adentrar nas matas para coletar o coco.

A gente ia lá dizer pra não cortar o cacho, ia lá dizer pra não ajuntar o coco e ia lá dizer que se tivesse junto fazia o mutirão e quebrava pra ser uma das formas de mostrar que a gente tava com precisão. Então quando a gente ia lá que a solta54, por

exemplo, aonde eles tavão derrubando tava cheia de homens com arma na mão que tinha um trator derrubando, a gente ia todo mundo se tremendo, mas tava obrigada. Ali é como aquela história, ou você vai ou morre55.

Ao falar que “ou você vai ou morre”, Maria Alaídes de Souza, demonstra que as mulheres quebradeiras partiram para a luta em defesa do babaçu livre, rompendo com a ideia de que a natureza e o ser humano são dissociados, e reforça o pensamento socioambiental, pois as mulheres quebradeiras ao dependerem diretamente das palmeiras de babaçu, as preservam e valorizam a cultura de extração do babaçu. Nesse sentido, o socioambientalismo influencia na elaboração das leis, decretos e conceitos, que irão compor a nova ordem nacional de proteção ambiental, o que para isto se tem a promulgação da Lei nº 9.985/2000, conhecida como Lei do SNUC, que regulamenta o art. 225, § 1º, incisos I, II, III e VII da Constituição Federal e instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza, além de outras providências, o Decreto nº 4.339/2002, instituiu princípios e diretrizes para a implementação da Política Nacional da Biodiversidade.

O reconhecimento de que as populações tradicionais são essenciais na proteção da biodiversidade é o elemento presente nesse novo estágio de mentalidade de proteção ambiental, aliados à necessidade de valorização dessas populações que se organizam de forma diferenciada do restante da sociedade brasileira.Como nos ensina Juliana Santilli (2005, p. 40), o socioambientalismo é uma invenção tipicamente brasileira e representa uma alternativa ao conservacionismo/preservacionismo ou movimento ambientalista tradicional, por serem correntes distantes dos movimentos sociais e das suas lutas políticas, pois defendiam que a única forma de proteção da natureza seria afastar o ser humano, com a criação de ilhas preservadas, onde somente seria possível a presença humana para contemplar, admirar, reverenciar a vida selvagem, celebrar e observar a beleza cênica do local, pois a ideia do socioambientalismo busca integrar as políticas públicas, seus anseios e reivindicações, e os sujeitos inseridos no processo socioambiental (SANTILLI, 2005, p. 41), então logo, o socioambientalismo exalta a necessidade de interação do ser humano com a natureza e não os dissociando, mas tendo como fim a convivência sustentável entre ser humano e meio ambiente, produzindo uma forma de viver baseada no desenvolvimento sustentável.

55 DOCUMENTÁRIO MULHERES DO BABAÇU. Realização: Ministério do Meio Ambiente – MMA; Secretaria de Coordenação da Amazônia – SCA; Coordenadoria de Agroextrativismo – CEX. Produção: Viodeografia. Setembro, 2001. Duração: 21 min. e 29 seg., son., color. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=jrfWwNXNrG0&NR=1. Acesso em: 25 mai. 2011.