• Nenhum resultado encontrado

2.5 A MUDANÇA DE PARADIGMAS SOBRE A QUESTÃO AMBIENTAL

2.5.4 AS POPULAÇÕES TRADICIONAIS E O SOCIOAMBIENTALISMO

Até bem pouco tempo as populações tradicionais eram vistas como “casos de polícia” (DIEGUES, 2008, p. 127), pois a ideia arraigada era de que essas populações deveriam ser expulsas do meio em que sempre viveram para ceder lugar às reservas e parques, pois estes não comportavam seres humanos em seu interior. Nesse contexto, as ideais preservacionistas prevaleciam e opunham-se à concepção de unidades de conservação integradas à sociedade, refletindo a história do conservacionismo no Brasil, pois o ideário preservacionista prevalecia nas instituições privadas de conservação da natureza: Sociedade de Amigos das Árvores, criada em 1931 e Sociedade para Defesa da Flora e Fauna, de 1927, em São Paulo (DIEGUES, 2008, p. 127), são alguns exemplos.

Até o início da década de 80, o movimento ambientalista era, predominantemente, formado por intelectuais, militantes de partidos políticos, setores profissionais e ativistas sociais visando, prioritariamente, o combate à poluição e a proteção dos ecossistemas naturais por meio de denúncias, portanto, nesse contexto histórico, a preocupação com as questões sociais eram desprezadas e o diálogo com as populações menos favorecidas não surtiam efeito

(VIANNA, 2008, p. 223). Somente na segunda metade da década de 80 começa a surgir um ambientalismo mais voltado às questões sociais, graças à redemocratização, criticando o modelo vigente de desenvolvimento econômico, imposto pela ditadura militar, concentrador de renda e depredador da natureza.

O marco internacional para essa mudança de paradigmas do movimento ambientalista foi o Relatório Brundland, publicado pela Comissão Mundial para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, onde surge, em primeira mão, a ideia de desenvolvimento sustentável, ao passo que no Brasil o marco foi a aliança entre o movimento dos seringueiros da Amazônia e o movimento ambientalista (VIANNA, 2008, p. 223). A destruição crescente da Amazônia, com a degradação dos seringais ou com a construção de barragens, originou o ecologismo social ou ambientalismo camponês, que tinha como bandeira de luta a manutenção ao acesso aos recursos naturais do território, valorizando o extrativismo e as tecnologias alternativas, ao que esse ambientalismo foi representado pelo Conselho Nacional dos Seringueiros, pelo Movimento dos Atingidos por Barragens, pelo Movimento dos Pescadores Artesanais, pelos Movimentos Indígenas e outros (DIEGUES, 2008).

Todos esses movimentos tinham cunho social e ambientalista e pregavam a necessidade de repensar a função dos parques nacionais e reservas, inclusive as populações tradicionais que neles habitavam. No cenário da redemocratização, as populações locais se colocam contra a expulsão de suas terras ancestrais, em virtude de grande número de movimentos sociais organizados, do renascimento do sindicalismo rural ativo, de ONGs e várias alianças trazendo em seu bojo parte do movimento ecológico internacional e nacional, e assim, durante a década de 90, e que perdura no século XXI, é nítida a evolução das ideias ambientalistas buscando aliar a sustentabilidade dos ecossistemas com o respeito à sobrevivência digna das populações que neles residem, explicitando, dessa forma, a ideia socioambientalista (FURRIELA, 2004, p. 64-65), isto quanto ao avanço no reconhecimento de direitos das populações tradicionais é recente na história ambiental brasileira, passando, ainda, por uma fase de consolidação (MOREIRA, 2006, p. 78).

Um dos traços mais marcantes deste momento histórico de emergência de identidades coletivas, objetivadas em movimentos sociais, é que, juntamente com novas formas de mobilização, de luta e de solidariedade, constata-se a afirmação de práticas jurídicas intrínsecas a povos e/ou comunidades tradicionais, enquanto instrumento de interlocução com o poder público. O livre acesso aos recursos naturais, a garantia de que os recursos básicos permaneçam abertos e os reconhecimentos das diferentes modalidades de apropriação, manejo e uso passaram a compor as pautas reivindicatórias de diferentes movimentos sociais (ALMEIDA, 2006b, p. 7).

A articulação entre os povos indígenas, as populações tradicionais, conservação ambiental e a mudança de paradigmas beneficiando essas comunidades no sentido de serem consultadas e envolvidas em políticas públicas, ganha corpo, principalmente, a partir da segunda metade dos anos 80 com a Aliança dos Povos da Floresta, onde se reuniam indígenas, seringueiros, castanheiros e outras comunidades tradicionais da Amazônia, que tinham seu modo de vida ameaçado pela exploração desenfreada e predatória dos recursos naturais, especialmente ocasionado pela abertura de estradas e pastagens destinadas às fazendas de agropecuária (SANTILLI, 2004, p. 31-33; VIANNA, 2008, p. 224).

No que tange a legislação infraconstitucional brasileira, a Lei do SNUC reconhece, em alguns de seus dispositivos, que essas populações desempenham um papel importante para a proteção do meio ambiente, contribuindo para a conservação e o uso sustentável da biodiversidade.

Em virtude dessa relação íntima existente entre a natureza e as populações tradicionais é que podemos destacar o papel importante que essas populações têm na conservação da biodiversidade na floresta tropical brasileira. Não foram somente os pesquisadores que concluíram sobre a importância das populações tradicionais nas áreas de conservação, registra-se também a Conferência da União Internacional para a Conservação (UICN) [...]; a publicação conjunta da IUCN/PNUMA (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente) e o Fundo Mundial para a Natureza (WWF) com o título “Cuidar La Tierra”, lançado em 1991 (BENATTI, 2003, p. 133).

Ao reconhecer tal importância, o SNUC criou duas categorias de unidades de conservação de uso sustentável: a reserva extrativista e a reserva de desenvolvimento sustentável, ambas previstas no artigo 14, incisos IV e VI, respectivamente. A criação dessas reservas tem como objetivo abrigar as populações tradicionais, além de proteger seus modos de fazer, criar e viver, e ambos os instrumentos legais têm uma influência intensa do socioambientalismo e direcionam para o reconhecimento de que a biodiversidade não pode ser dissociada da sociodiversidade, e nem da valorização das práticas culturais, sociais e econômicas inerentes às populações tradicionais.

Seguem o raciocínio de preocupar-se em garantir que as populações tradicionais se reproduzam física e culturalmente, com vistas a promover a contínua produção dos conhecimentos, práticas e inovações, objetivando a conservação da biodiversidade, protegendo, assim, “duas faces da mesma moeda: o componente tangível – os recursos biológicos – e o intangível – os conhecimentos associados aos mesmos – a biodiversidade” (SANTILLI, 2004, p. 76). Essa proteção se mostra importante e imprescindível para as

populações tradicionais, pois o conhecimento adquirido e manejado por essas comunidades é cobiçado pelas indústrias de biotecnologia, em especial, farmacêuticas, químicas e agrícolas.

o uso do conhecimento tradicional aumentaria a eficiência de reconhecer as propriedades medicinais de plantas em mais de 400%, e o valor corrente no mercado mundial para as plantas medicinais identificadas graças às pistas dadas pelas comunidades nativas já teria sido estimado em 43 milhões de dólares (SHIVA apud SANTILLI, 2004, p. 76).

Além dessa previsão legal sobre as reservas, as Florestas Nacionais admitem que as populações tradicionais vivam e reproduzam a sua forma de viver no seu interior; são as chamadas populações residentes, apontadas no artigo 17, § 2º61 da Lei do SNUC, aonde fica expresso que as populações tradicionais que já habitavam a região demarcada quando da criação da floresta nacional, poderão permanecer no local, apesar de não ser o objetivo principal das Florestas Nacionais a permissão para que as populações tradicionais permaneçam no seu interior, e sim promover o uso múltiplo sustentável dos recursos da floresta. Essa tendência legislativa alia elementos de justiça social com a finalidade de proteção ambiental, fatores que possibilitam a aproximação entre o movimento ambientalista com outros movimentos favorecidos e fortalecidos pelo recrudescimento da democracia brasileira, com o objetivo de lutar visando o desenvolvimento econômico, ambiental e social mais justo, e o que nesse sentido,

uma das principais heranças deixadas por Chico [Mendes] e o movimento dos seringueiros daquele período foi o exemplo de que as questões social e ambiental caminham juntas, ainda mais quando se trata da realidade brasileira. Nenhum outro movimento social brasileiro expôs com tanta clareza essa interseção (SILVA apud SANTILLI, 2005, p. 35).

Desse diálogo entre os movimentos ambiental e social nasceu o socioambientalismo. Essa nova ideia funda-se no pressuposto de que as políticas públicas ambientais somente ganhariam eficácia social e sustentabilidade política se houvesse a inclusão das comunidades locais, detentoras de conhecimentos específicos acerca dos ecossistemas, sendo o socioambientalismo uma criação tipicamente brasileira, não podendo ser comparado a nenhuma outra ideia lançada no ambientalismo internacional, pois mostra o rumo para realizar

61 Art. 17. A Floresta Nacional é uma área com cobertura florestal de espécies predominantemente nativas e tem como objetivo básico o uso múltiplo sustentável dos recursos florestais e a pesquisa científica, com ênfase em métodos para exploração sustentável de florestas nativas.

[...]

§ 2o Nas Florestas Nacionais é admitida a permanência de populações tradicionais que a habitam quando de sua criação, em conformidade com o disposto em regulamento e no Plano de Manejo da unidade.

a integração de políticas setoriais, suas perspectivas e atores, num projeto que faz com que o Brasil aprecie e valorize suas peculiaridades pluriétnicas para alcançar a sustentabilidade (SANTILLI, 2005).

Foi no decorrer da década de 90 que os movimentos social e ambiental ganharam notoriedade na mídia, principalmente com a Eco-92, quando de sua realização, abriu as portas para que os tratados e convenções internacionais e, posteriormente, a legislação brasileira passassem a trazer em seu bojo a perspectiva social unida à ambiental, que se conformam para alcançar o socioambientalismo (VIANNA, 2008, p. 224). Porém, apesar de toda evolução decorrente dos novos paradigmas surgidos no decorrer da década de 80 e que se aprimorou na década de 90 até os dias atuais, muitas lacunas ainda precisam ser preenchidas na legislação brasileira, o qual pode exemplificar se citando a condição de suposta irregularidade das populações tradicionais que habitam áreas destinadas à implantação de Unidades de Conservação de Proteção Integral.

Pelo disposto na legislação atualmente em relação a essas UC’s, essas populações teriam que ser retiradas, pois a sua presença não está prevista na lei positiva. Assim, é notório que a legislação brasileira ainda carrega em seu interior o conflito entre ideias preservacionistas/conservacionistas e a socioambiental, porém está alargando seus horizontes e admitindo, mesmo que ainda timidamente, a inclusão de dispositivos ao longo do ordenamento jurídico, que protejam e garantam o elo entre o ser humano e a natureza, a que podemos inferir que dentro da legislação pátria, assim como em diversas instituições que compõem o Estado brasileiro, ainda persistem as ideias de que o ser humano deve ser separado da natureza para que a sua preservação seja possível, como em alguns dispositivos da Lei nº 6.938/81 e Lei nº 9.985/00, porém, no corpo dessas Leis também encontramos dispositivos que trazem ideias inovadoras do novo paradigma ambiental, o socioambientalismo.

A par disso, percebemos uma transformação no que tange a essa legislação infraconstitucional, pois a Lei 6.938/81, apesar de editada antes da atual Constituição, “introduziu um novo tratamento normativo para o meio ambiente” (RODRIGUES, 2010, p. 23), elaborando um conceito inovador para esse instituto, quando expõe a importância crucial de todas as formas de vida. No que se refere à Lei 9.985/00, prevê muitas inovações em relação à presença humana nas Unidades de Conservação, apesar de ainda permacerem vários dispositivos que mantêm ideias preservacionistas, mas, comungando do socioambientalismo, traz a participação das populações tradicionais na gestão das unidades de conservação, no

momento em que dispõe sobre as reservas extrativistas e as reservas de desenvolvimento sustentável, sendo geridas por conselhos deliberativos (SANTILLI, 2005).

Nesse sentido, podemos afirmar que enquanto ocorrerem os embates dentro do corpo das leis e dos órgãos estatais responsáveis pela política de meio ambiente, as populações que vivem dentro das unidades de conservação e no seu entorno continuarão a ter desrespeitados seus direitos. A busca de soluções para esses entraves estão o fortalecimento dos movimentos sociais aliados ao movimento ambientalista, para que as políticas públicas sobre o meio ambiente abandonem a velha visão romântica de wilderness e se voltem à compreensão de que a presença de populações, em grande parte das unidades de conservação do Brasil é anterior a sua criação, e que o bem que se almeja preservar é fruto da interação dessas populações e os recursos naturais que ali existem.

3-AS MULHERES QUEBRADEIRAS DE COCO BABAÇU EM FOCO