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2.5 A MUDANÇA DE PARADIGMAS SOBRE A QUESTÃO AMBIENTAL

2.5.3 O SOCIOAMBIENTALISMO NO BRASIL

Em nível nacional, o clamor por uma legislação pertinente a regular a proteção do meio ambiente somente veio a ganhar força com a redemocratização do país em 1984. A Constituição de 1988 trouxe em seu bojo a preocupação com o meio ambiente expressa no artigo 22556, consagrando-o como um direito fundamental, que depende da atuação efetiva do Poder Público e da sociedade para protegê-lo e preservá-lo, não pensando somente nas gerações que vivem hoje no planeta, mas também nas futuras gerações que o habitarão.

O problema da tutela jurídica do meio ambiente manifesta-se a partir do momento em que sua degradação passa a ameaçar não só o bem estar, mas a qualidade da vida humana, se não a própria sobrevivência do ser humano (SILVA, 2009, p. 28). Com o fim do regime militar, a sociedade brasileira busca por soluções para os problemas ambientais, ou seja, inicia-se um processo gradual de proteção do meio ambiente, almejando romper com os velhos conceitos conservadores e tradicionais de preservação da natureza intocada e separada do ser humano. A mudança de paradigma ético-jurídico em relação a questão ambiental teve seu início em 1981 com a edição da Lei 6.938, que instituiu a Política Nacional de Meio Ambiente, e com sua promulgação, essa lei decorreu de “um amadurecimento forçado do ser humano” (RODRIGUES, 2010, p. 23), pois adotou uma visão holística do meio ambiente, proporcionando que o ser humano fosse visto como parte integrante da natureza e não um ser dissociado dela.

Com a redemocratização brasileira nos anos 80, nasceu o socioambientalismo, e as articulações políticas entre os movimentos sociais e ambientalistas na segunda metade da década de 80 abriram caminho para que ideias inovadoras ganhassem espaço no cenário nacional (SANTILLI, 2005, p. 31; VIANNA, 2008, 214), definindo conceitos, valores e paradigmas que se estenderam sobre o ordenamento jurídico, o que nesse contexto, os povos tradicionais não se mostraram alheios ao processo, se incorporando às ideias socioambientais, fato que transformou sensivelmente suas lutas por territórios (LITTLE, 2002, p. 23). Na Constituição Brasileira estão presentes as ideias socioambientalistas que privilegiam e valorizam “as dimensões materiais e imateriais dos bens e direitos socioambientais, a transversalidade das políticas públicas socioambientais e a consolidação de processos

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Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.

democráticos de participação social na gestão ambiental” (SANTILLI, 2005, p. 21), e assim como na legislação infraconstitucional há uma palpável influência do socioambientalismo, dando azo à interface entre a biodiversidade57 e a sociodiversidade58, consequência direta do multiculturalismo e da plurietnicidade da sociedade brasileira, peculiaridades reconhecidas pela Carta de 1988.

Até o começo da década de 80, o movimento ambientalista não tinha preocupação com as causas sociais e nem mantinha diálogo com essa faixa da população brasileira, que o julgava elitista. Somente no final dos anos 80 que ONGs ambientalistas buscaram o diálogo com as ONGs sociais, passando, então, a serem parceiras em busca da proteção ambiental aliada as questões sociais (VIANNA, 2008, p. 223).

No Brasil, podemos apontar a aliança entre o movimento dos seringueiros da Amazônia e o movimento ambientalista, inspirada no movimento indigenista de defesa de seus territórios, como marco histórico dessa mudança de perspectiva (VIANNA, 2008, p. 223).

A promulgação da nova Constituição proporcionou a visão de que o Brasil é um país pluriétnico, e deu margem à redemocratização, possibilitando à sociedade civil ganhar espaços de mobilização e articulação, levando a alianças políticas que foram estratégicas entre os movimentos sociais e o movimento ambientalista (SANTILLI, 2005, p. 42). De acordo com Boaventura de Sousa Santos (2001, p. 280), hoje ocorre a autodefinição e valorização coletiva das identidades, antes submetidas à obscuridade, graças à consciência do perigo de uma catástrofe ecológica, passando o gênero humano a ser visto como parte da natureza e não mais como agente que irá domesticá-la, ao passo que a natureza começa a ser percebida não mais como um objeto passivo de um poder arbitrário, ética e politicamente neutro, mas como parte integrante e participante da vida humana. Para reafirmar a sintonia entre o ser humano e a natureza:

[...] um hecho bien conocido por los ecólogos tropicales es que gran parte de la vegetación primaria de muchas zonas reconecidas como virgenes presentan vestígios de perturbación humana y cada dia se hace más dificil encontrar zonas totalmente “virgenes” (GOMEZ-POMPA apud VIEIRA et all, 1993, p. 240)59.

57 Variedade de formas de vida que podem ser encontradas no planeta.

58 É a relação entre bens e serviços gerados a partir de recursos naturais, voltados à formação de cadeias produtivas de interesse de povos e comunidades tradicionais e de agricultores familiares. Disponível em: http://www.mda.gov.br/portal/saf/programas/Sociobiodiversidade/2291225. Acesso em: 02 mar. 2012.

59 Um fato bem conhecido pelos ecólogos tropicais é que grande parte da vegetação primária de muitas zonas reconhecidas como virgens apresentam vestígios de presença humana e a cada dia se mostra mais difícil encontrar zonas totalmente “virgens”. (Tradução livre da autora).

A ideia do socioambientalismo lançou novos paradigmas, conceitos e valores no contexto da redemocratização e influenciou de sobremaneira o ordenamento jurídico brasileiro. A sua influência foi de tão grande, monta que a nova Constituição estabelece bases sólidas para que os direitos referentes ao meio ambiente sejam permeados de novos valores, garantindo que haja a materialização do socioambientalismo, possibilitando uma interpretação sistêmica dos direitos ambientais, sociais e culturais, isto no que tange a legislação infraconstitucional60, o socioambientalismo também se faz presente lançando bases para que haja maior eficácia e concretização desses direitos.

Não podemos dissociar o ser humano da natureza, onde as normas ambientais deverão estar voltadas às relações sociais e não a uma assistência à natureza. Logo, fazer uma análise sobre as relações entre processos econômicos, ambientais, sociais, políticos e jurídicos, deverá pautar-se em situações concretas, pois se determinada sociedade entra em conflito com o seu contexto atual, produzirá leis com o objetivo de regular essas novas relações, o que assim acontece com a legislação ambiental, cuja organização social atual está em constante embate, já que de um lado têm-se os benefícios da industrialização e do progresso, e de outro se têm a miséria, as doenças, o desconforto e a ameaça à proteção da biosfera e ao modo diferenciado de organização de comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas.

A orientação socioambiental presente na Constituição de 1988 deve ser interpretada de maneira sistêmica, ou seja, a cultura, o meio ambiente, os povos indígenas, os quilombolas, as diversas populações tradicionais e a função socioambiental da propriedade devem estar integrados ao todo, já que não podemos dissociar cada um desses dispositivos, pois fazem parte de uma unidade axiológica normativa inserida na Carta Magna (SANTILLI, 2005, p. 91- 92). A partir da década de 90 é intensificada a edição de leis ambientais com cunho socioambientalista. Podemos citar a Lei nº 9.433/97 (instituiu o Sistema Nacional de Recursos

60 Lei nº 9.985/00: [...]

Art. 14. Constituem o Grupo das Unidades de Uso Sustentável as seguintes categorias de unidade de conservação:

I - Área de Proteção Ambiental;

II - Área de Relevante Interesse Ecológico; III - Floresta Nacional;

IV - Reserva Extrativista; V - Reserva de Fauna;

VI – Reserva de Desenvolvimento Sustentável; e VII - Reserva Particular do Patrimônio Natural.

Art. 15. A Área de Proteção Ambiental é uma área em geral extensa, com um certo grau de ocupação humana, dotada de atributos abióticos, bióticos, estéticos ou culturais especialmente importantes para a qualidade de vida e o bem-estar das populações humanas, e tem como objetivos básicos proteger a diversidade biológica, disciplinar o processo de ocupação e assegurar a sustentabilidade do uso dos recursos naturais.

Hídricos) e a Lei nº 9.985/2000 (instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza – SNUC), apesar de existirem dispositivos nessas leis que ainda trazem o ranço das ideias preservacionistas. A edição dessas normas demonstra o avanço das ideias que integram o ser humano a natureza, pois a elaboração das normas legais será determinada em menor ou maior grau pela influência sofrida pelo legislador de valores que estão em vigor naquele contexto histórico, assim, “o espírito das leis espelha o espírito sociocultural vigente à época de sua elaboração” (BENATTI, 2003, p. 132).

O reconhecimento de que as populações tradicionais têm papel fundamental na proteção da biosfera é elemento presente nesse novo paradigma de proteção ambiental, aliado a necessidade de valorização dessas populações que se organizam de forma diferenciada do restante da sociedade brasileira. Diversos trabalhos científicos têm demonstrado que a biodiversidade presente no mundo atual é oriunda das manipulações realizadas pelas populações tradicionais, devendo a preservação e a conservação da diversidade biológica, cultural e social caminhar de mãos dadas, pois ao retirar o ser humano do seu ambiente onde vive há gerações a consequência será a eliminação da sua cultura, e do seu conhecimento acumulado durante muito tempo sobre plantas, animais e técnicas de manejo (BENATTI, 2003, p. 133).