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A autolesão adolescente: o fuck you =) irrompe o espaço da interação

3. A “PRAÇA DOS EMOS”

3.3. Jovens da cena, vodka, rupinol

3.3.2. A autolesão adolescente: o fuck you =) irrompe o espaço da interação

que não concordava com minha “orientação”, como ele dizia. Por fim, ele abandonou a objetividade analítica e me botou pra fora, me acusando de “degenerado e fora-da-lei”. Eu estava mais satisfeito com os resultados da análise do que ele. [...] Percebendo que eu não ia me dar bem no exército, apelei para minha ficha do hospício. Certa vez, entrei numa de Van Gogh e cortei um pedaço do dedo pra impressionar uma pessoa em quem eu estava interessado na ocasião. Os médicos do hospício nunca tinham ouvido falar em Van Gogh. Me engaiolaram como esquizofrênico, acrescentando um diagnóstico de “tipo paranóide”, para justificar o fato de eu saber onde estava e quem era o presidente da República. (BURROUGHS, 1984, p. 14)80

79 A este respeito, é oportuno fazer um apontamento. A ansiedade gerada por este processo de estar em campo, dado o volume de situações que decorrem no espaço, frequentemente pôde ser reduzida com a produção de vídeos e de imagens deles resultantes (congelamento da tela e prints, onde partes do vídeo que se julgua relevante são fotografadas), pois deste modo se pode retornar às situações, deter-se em alguns detalhes, refletir sobre eles, mesmo após o evento ter ocorrido, algo como se voltasse a um texto para fazer consultas, diminuindo as prováveis perdas. A partir da polissemia existente nas imagens, é que o pesquisador também pode extrair interpretações, inferências através de outros dados (imagens e textos), e selecionar aspectos que parecem ser importantes. Muitas imagens que não estão dispostas no texto, mas que fazem parte do material de análise. Sobre a diferença entre linguagem e imagem, cabe aqui uma nota explicativa básica: “a imagem é sempre polissêmica ou ambígua. É por isso que a maioria das imagens está acompanhada de algum tipo de texto: o texto tira a ambiguidade da imagem – uma relação que Barthes denomina de ancoragem, em contraste com a relação mais recíproca de revezamento, onde ambos, imagens e texto, contribuem para o sentido completo. As imagens diferem da linguagem de outra maneira importante para o semiólogo: tanto na linguagem escrita, como na falada, os signos aparecem sequencialmente. Nas imagens, contudo, os signos estão presentes simultaneamente. Suas relações sintagmáticas são espaciais e não temporais” (PENN, 2002, p. 322).

80 William Burroughs, um dos mais importantes escritores da “geração beat”, era homossexual e viciado em drogas. Este relato autobiográfico parece remeter a um dos primeiros casos de automutilação. A obra de Burroughs, Junky – drogado, que virou um ícone contracultural ainda na década de 1980, iria

A entrada nesta camada de sociabilidade significou uma segunda avalanche de informações. Os temas surgiam na complexidade dos fatos da vida de sujeitos ali presentes, interligados por interesses comuns: família, sexo, drogas, bebedeiras, tristezas, emos, cortes, loucura. Temas estes, às vezes, abordados em curtos espaços de tempo, entre dois ou mais participantes, o que era necessário minha intervenção, inserindo perguntas a respeito do tema para que este não se “perdesse no ar”, o que certas vezes trazia elementos interessantes, como novas pessoas e lugares, fatos, mas também, em várias ocasiões, era um empreendimento sem sucesso81. Continuemos na presente abordagem.

Estamos em uma roda de conversa na PP, ao som alto de uma música eletrônica. Uma das garotas grita para outra que estava mais distante do grupo no qual eu me encontrava: “Cazuza! Vem aqui, sua rapariga!” Ela sai da nossa conversa em direção à sua colega. As duas então se aproximam em um ponto um pouco mais afastado de onde estou. Falam alguma coisa, e aquela que saiu ao encontro parecia mostrar-lhe algo que tinha em um dos braços. Procuro saber do que se tratava. Eram marcas, cicatrizes. Logo eu soube que eram “cortes feitos por amor”, como os de Burroughs. Ela vai ao encontro da garota por quem tinha um interesse para confessar- lhe sentimentos, afirmar suas intenções, mesmo que de um modo nada convencional, com cortes, mostrando, com isso, a veracidade do que ela sentia, uma prova incontestável (penso se ela teria feito isso apenas por uma questão amorosa). Elas já haviam tido um envolvimento e parecia que a Cazuza, três anos mais velha, não queria arriscar novamente.

Com o tempo, em meio a idas e vindas à PP, a aproximação vai se tornando mais “natural”. Tive a oportunidade de estreitar conversas com a Cazuza. Esta garota, que recebera os cortes como “oferenda” – estava sempre com uma boa quantidade de álcool, mais precisamente, vodka. Oferece-me um gole de bebida de uma garrafa sem rótulo. "Toma! É só vodka. Você gosta de Vodka?” [Estou dirigindo, mas eu amo

influenciar diversas bandas de rock, inclusive da era pós-punk, como o Joy Division e mais tarde o Nirvana.

81 Conforme discutido no capítulo anterior, será por meio de conversas de narrativas pessoais que este turbilhão de temas, emoções e fatos, será melhor direcionado, uma vez que a interação entre pesquisador e informante é ainda mais focada. Vale ressaltar que estas entrevistas, em campo não mais que uma dezena (todos os nomes foram substituídos por outros fictícios), não são tanto uma coletânea de depoimentos de alguém que procura contabilizar os cutters da cena under. Além das realizadas via Internet, e do material “congelado” do Tumblr sobre a automutilação, estas entrevistas são tomadas como outro ângulo de analisar os fenômenos aqui investigados, especialmente compreender o que viveram e como vivem pessoas que lançaram mão da automutilação para superar a dor dos sentimentos.

vodka]. “Ama não cara, tu não ama vodka”, interfere um rapaz que estava acompanhando-a; provavelmente percebeu que, de fato, eu não tinha a mesma “vivência” com a bebida como eu quis transparecer. “Não liga, ele está bêbado".

Após intervir neste pequeno desentendimento em torno da vodka, ela me faz algumas revelações, a respeito da garota que lhe mostrara os braços com as marcas de ferimentos:

Ela faz parte de um grupo, o tal de takers. É um grupo de meninas, entendeu? A maioria dessas meninas – e takers significa, eu perguntei a ela – pegadoras. Elas fazem tipo macho sabe? Elas pegam a menina e separa, entendeu? Elas pegam, fazem tudo com a mulher e depois deixam. Mas tipo, ela gosta muuuito de mim, entendeu?! E tem um amigo dela que também está gostando de mim, está louco por mim. [A conversa é interrompida por algumas amigas, que também haviam bebido e aproximam-se bastante exaltadas]. Hei piranguera véia! Vamos pru Dragão sábado? – Vamos, te doido! Sábado tamo lá... virar... [Grifo nosso].

Logo irei descobrir que a própria Cazuza estava “na onda dos cortes”, narrando para mim alguns momentos significativos da sua vida, os quais parecem se relacionar de perto com a questão da autolesão.

Antes das entradas de relatos íntimos – os inputs narrativos que passam a alimentar o processo de pesquisa – encontros deste tipo proporcionam o registro de temas-chave, que são trazidos na ordem da interação. Há a presença de termos “nativos” novos e fatos intrigantes. Aparece: (i) o corte no contexto do relacionamento amoroso, ao menos aparentemente (não se pode precisar que o motivo da automutilação foi mesmo por amor); (ii) o Dragão do Mar como ponto de encontro da galera alternativa durante os sábados, o “DM”; (iii) o termo “virar” (amanhecer o dia na rua após a diversão na Praça Verde do DM); (iv) as takers, que parece ser um modo de comportamento sexual intrigante, pois as garotas usam sexualmente outras reproduzindo comportamento do estereótipo masculino; (v) os anticristos, adolescentes que usam símbolos do demônio, pentagramas e cruz de cabeça para baixo, e que se drogam e “ficam tão loucos que o demônio parece estar dentro deles” (isso não deveria ser confundido com os góticos).

Figura 15. Autolesão com lâmina de barbear82

Fonte: Próprio autor. Outubro, 2011.

Assim, as interações vão sendo atravessadas por indivíduos que chegam bêbados, ou pedindo cigarro. “Cara, eu quero fumar, eu tô precisando de um cigarro cara, eu não posso ficar sem fumar”. Ou apenas com suas vestimentas e adereços de modo a expressar um estilo ou preferência musical. Os indivíduos transitam e adentram nas conversas mais focalizadas, fazendo referência a outros episódios e esferas de ação, quando não reforçando elementos já captados nas “anotações de campo”.

Mais tarde, um dos informantes mais próximos, que já havia bebido um pouco na ocasião, irrompe em uma dessas “entrevistas” informais, revelando seu corte (Figura 15): “Olha só! Eu me cortei. Eu briguei com a minha mãe. Eu estava com muita raiva e escrevi isso”. A segunda crise do garoto seria meses depois, após ele ter dado um tempo da PP, justificando por SMS: “Não vou hoje. Estou deprê. Quando eu tô assim, eu fico no quarto todo escuro. Não gosto de sair”. Nesta nova crise, ele não faz uso dos cortes:

Ela disse que desistiu de me consertar: “A partir de hoje esqueça que eu existo. Desisti de tentar te consertar”. Sabe, “a cabeça da boneca caiu. Vamos tentar CONSERTAR”. Chorei penkas ontem no meio da rua pelos cantos feito doido.... Foi feia a discussão. Eu ia me cortar com tanto desgosto de mim que eu tava tendo naquela hora.

82 “Informante nº 2”, 14 anos, revela seu corte no braço, escrito “Fuck you =) (foda-se, seguido de um smile). Cortes feitos em momento de raiva incontrolável.

A autolesão, como um tema que surge no decorrer das interações, por exemplo, uma bobagem de emos ou um povo doido que só fala nessas coisas, é mencionada como cortar. O ato irrompe o encontro da cena com a inscrição na pele

fuck you, uma ofensa escrita pelo próprio garoto em seu braço de um modo cool, mas

é também, como se pôde depreender, inscrição oriunda de emoções.

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