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3. A “PRAÇA DOS EMOS”

3.4. Entre o Dragão e o Fafi: apropriações espaciais e “narrativas do corte”

3.4.2. O nascimento do Fafi da galera under

A Rua Norvinda Pires, localizada na Aldeota, um dos bairros mais desenvolvidos de Fortaleza, a partir de 2003 seria palco para uma cena musical da cidade. Com a inauguração do Fafi Bar (marcação “A” da Figura 18), a rua passaria a ser conhecida como rua do fafi entre jovens de classe média, a maioria estudantes universitários, muitos com um perfil que se tem chamado de descolados ou mesmo

85 Trajeto de ônibus, que leva em torno de 15 minutos ou mais, completando o caminho a pé.

DM

FAFI pp

alternativos. Um dos tipos de música propagados por lá, o indie rock, é um subgênero que um adolescente underground (não que necessariamente se reconheça como tal), do metalcore, screamo ou emo-violence, veria como algo normal, lento, sem os gritos e guitarras agressivas com as letras de temas adolescentes características.

Figura 18. Vista aérea das proximidades do Fafi Bar86

Fonte: Google Maps.

Ocorre que algo mudou dentro de poucos meses ao longo de 2012. O pequeno bloco de ruas como representado pela Figura 18, com exceção da rua do fafi (A), começou a ser “povoado”. Espaços vazios nas noites de sábado começaram a ser preenchidos pela legião de “adolescentes de preto” que vinha do Dragão do Mar. A rua que antes era completamente deserta (B), tornou-se ponto de venda e consumo de drogas ilícitas, como a cocaína, após pouco a pouco algumas figuras se estabelecerem por lá, (um nicho de encontro atrai outro). Tornou-se também um ponto de “pegação” para gays e heterossexuais, na penumbra das fachadas recuadas das várias lojas do local. Com o passar do tempo, após já tendo se estabelecido uma série

86 Fafi Bar, localizado no centro da Rua Norvinda Pires (Marcação A): Bloco de ruas que passaram a ser palco de encontros da “galera under”, fato ocorrido durante a pesquisa de campo.

B

A

de práticas, chega à vez da avenida perpendicular ao Fafi Bar, a Desembargador Leite Albuquerque, a qual teve aquela pequena marcação “D” tomada por adolescentes (ver Figura 20). Não demora muito e o círculo “C”, um gramado antes vazio nas noites de sábado, torna-se um locus de sociabilidade intensa destes adolescentes, abrigando experiências mais específicas, mais restritas a indivíduos com visual mais under (em oposição a moderado), uma espécie de “DM em miniatura”.

Como resultado, a população do Fafi aos sábados explodiu. O que antes era a rua do fafi para os jovens universitários, transforma-se simplesmente no Fafi dos adolescentes que compõem os metaleiros, emos, punks e aqueles moderados que os orbitam, algo que compreende o bloco de ruas da Figura 18. Ir ao Fafi, neste sentido, é encontrar pessoas e circular por entre aqueles pontos.

Este processo de criação de espaços de sociabilidade foi antes uma bifurcação das experiências de rua daqueles envolvidos nesta cena (cena mais under contornando a cena indie do ponto “A”), assim também um incremento espacial a ela, e não um abandono do DM e da Praia de Iracema, os quais continuavam povoados, dividindo as noites de sábado com o Fafi. O virar (“ei, tu vai virar hoje?”) é uma prática daqueles que não voltam para casa antes das 23 horas e se dirigem, ao amanhecer, para o local onde fica a estátua de Iracema na praia.

Estariam pondo em operação a lógica do squatter punk (ver Figuras 19 e 20), uma ligação histórica com a ação de ocupar espaços para morar e como meio de vida e de autoafirmação, comum ao movimento punk em seus primórdios, mas ainda hoje representada por squats (habitações) importantes87. Isso representa uma tomada

do espaço público a partir da política do estilo, e traz em seu bojo uma maior vivência das experiências de rua.

Com o passar do tempo, em questões de poucos meses, a rua concentrou, na penumbra das fachadas das lojas nas noites de sábado, microrreuniões permeadas por preservativos, bebidas e indícios de uso de drogas. A cena poderia ser descrita como uma reedição do punk na era da Internet, uma tomada da rua antes irrelevante e vazia em relação à sua irmã paralela, a rua do fafi. Nas palavras de quem está observando achados de reuniões undergrounds, como aquelas do famoso Chelsea Hotel de Nova York ou o abandoned building fotografado por Jonathan Castellino em Toronto:

87 Ver, por exemplo, o Koepi 137. Disponível em: <http://www.liveunsigned.com/blog/2011/01/squats- with-live-music-in-berlin-koepi-137/>. Acesso em: 13 dez. 2014.

As expected, squatters run amok, including walls being torn down to make easier entries/exits between the two mysterious buildings. The typical squatter trash was found, including “mattresses, beer bottles, punk posters, aerosol cans, cigarette butts, condom wrappers”88.

A lógica é muito parecida. “Paredes sendo quebradas para facilitar entradas e saídas entre os dois prédios misteriosos”. Estes adolescentes, punks da era digital, que compõem seus looks a partir do conhecimento adquirido na Internet, baseado em seus anseios mais íntimos de autoafirmação, abrem espaços urbanos, entradas e saídas para o fluxo da existência.

Figura 19. Imagem de uma típica reunião em uma squat (no caso, residência) punk

Fonte: Caty R, 2010.89

88 Jonathan Castellino, Toronto Behind the Boarding: Queen and Beverly, 12 nov. 2008. Disponível em: <http://www.blogto.com/city/2008/11/toronto_behind_the_boarding_queen_and_beverly/>. Acesso em: 2 dez. 2014.

89 CATY R. Flickr. Tirada 21 de abril de 2010. Disponível em: <www.flickr.com/photos/caitlin_reeve/4540936214/in/photostream/lightbox/>. Acesso em: 10 nov. 2014.

Figura 20. Galera under nas proximidades do Fafi Bar (D)90

Fonte: Próprio autor, junho de 2012.

A apropriação do gramado (C) foi uma alternativa ao espaço do Fafi Bar já ocupado. O Fafi foi forçado a criar medidas para impedir a entrada de menores, que começou a trazer transtornos para os proprietários junto aos órgãos de fiscalização. Consolidada a ocupação do gramado, pertencente a uma pequena área externa do prédio da Associação Cearense de Avicultura, o local torna-se uma rotina de encontros aos sábados (ver Figura 21). Não de encontros quaisquer, mas encontros dos unders, como tenho procurado retratar, desde as primeiras visitas à PP. Podem ser definidos como uma cena particular de adolescentes, grande parte com menos de 18 anos de idade, apreciadores de música de hardcore punk e com visual alternativo, de camisas de bandas a duplos piercings nos lábios. Adolescentes mais moderados reúnem-se aos de visual mais engajados com subculturas, embora, do ponto de vista das atitudes, uns e outros parecem gozar do mesmo status ou condição.

Aqueles indivíduos, em particular, não apenas se conhecem, mas se reconhecem. A ocupação nunca é um ato gratuito. É uma reunião com interesses, é um desejo, uma experiência partilhada, em torno da qual resolveram a equação do ambiente do Fafi, criando uma alternativa para estabelecerem foco de interações, as

90 Ocupação de calçada (região de pouca iluminação) próximo ao Fafi Bar, pelo que se tornou uma “microregião” de encontro das noites de sábado.

quais quase sempre não são possíveis de ser fixadas no ambiente do bairro, da escola e muito menos do lar91. Isso pode ser resumido da seguinte forma, nas palavras de

Fischer (1994), em sua obra de psicologia social do ambiente:

Considerada como processo de transformação de um espaço, a apropriação constitui uma modalidade de mudança caracterizada ao mesmo tempo como processo conflitivo, na medida em que é de uma forma ou de outra confrontada com sistemas de imposições, e como processo mais de ordem microssocial que macrossocial, na medida em que ela manifesta não uma orientação das mudanças individuais para atingir uma mudança social, mas uma capacidade do indivíduo de produzir diversidade ao investir o espaço de intenções e atos que permitem ao indivíduo sobreviver à banalidade do quotidiano e dar-se a si mesmo uma identidade, ou seja, criar situações em que o espaço constitui para ele um refúgio (p. 83).

Frequentar o Fafi nestas condições era ouvir relatos incomuns, se comparados a outros encontros convencionais. Falava-se sobre jovens obscuros, que gostavam de sangue, de cortar-se; contava-se a respeito de uma jovem que, inclusive, tinha fotos no cemitério; de pessoas que, na verdade, tinham uma revolta devido a problemas com os pais; e de jovens que tinham tentado suicídio e que alegavam que ninguém iria sentir falta deles.

Figura 21. Contexto de reuniões informais para encontros na área apropriada do gramado (C)

Fonte: Próprio autor, setembro de 2012 (captura de tela de vídeo).

91 Vale ressaltar que o ciberespaço tem importante dimensão, ao burlar barreiras geográficas, ele permite que o indivíduo tenha uma experiência comunal e de possibilidades de interação a partir de interesses e gostos.

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