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A conduta de risco e as fronteiras existenciais do self-harm

4. A ESCALADA DA AUTOLESÃO ADOLESCENTE

4.2. A conduta de risco e as fronteiras existenciais do self-harm

É comum, nos pontos de encontro de jovens undergrounds, o consumo de bebidas alcoólicas, cigarro ou mesmo de drogas. Estes encontros ocorrem nos fins de semana – não apenas nos locais escolhidos para esta pesquisa, mas também em

pracinhas de bairros periféricos de Fortaleza – em lugares públicos de grande circulação: a Praça Verde do Centro Cultural Dragão do Mar, a Praça Portugal e o entorno do Fafi Bar, todos, como vimos, com certa proximidade geográfica entre si. Estes três espaços, ao serem eleitos e apropriados por este segmento de jovens para suas atividades – um processo criativo, de fato – constitui o cenário underground, sem os quais estas mesmas atividades não seriam possíveis do modo como foi observado. “A apropriação é uma maneira de materializar uma parte do seu universo mental no espaço físico ambiente, para o fazer nosso” (FISCHER, 1994, p. 82). O ambiente assim recriado e rotinizado, a exemplo do gramado do Fafi, torna-se um rico campo empírico, por aglutinar uma diversidade de “tribos”, tanto os “extremos”, os moderados, os simpatizantes ou aqueles tachados de posers, quando vistos como alguém que copia elementos de uma determinada subcultura apenas para tornarem- se populares entre os grupos, mas que não são autênticos apreciadores de música de hardcore.

Nas reuniões informais são formadas diversas possibilidades de encontros, em meios aos quais os atores decidem e definem o que será feito e o que será utilizado para consumir, uma vez que consumir é um importante aspecto para a socialização e a identificação (SLATER, 2001). Isso dependerá do estilo dos participantes dessas reuniões e da sinergia resultante de suas interações. O que é feito e utilizado varia desde o simples papear até (às vezes nos encontros menos expostos publicamente), troca de carícias íntimas entre mais de duas pessoas, namoro homossexual, consumo de drogas, embriaguez decorrente do abuso de álcool e, mais raramente, automutilação em grupo. Para os de fora, muitos desses elementos que compõem as interações pareceriam inapropriados ou repulsivos. Desde a simples aparência até o comportamento (os modos, como dirá um interlocutor do campo), muitos destes jovens destoam dos padrões que a sociedade normativa tende a recompensar.

Mas não são todas as condutas presentes em reuniões que constituirão o que chamo de tendência autodestrutiva – termo este que, além do que foi tratado no Capítulo 2, merece uma problematização, como veremos no decorrer da análise nesta seção. Não basta simplesmente utilizar bebidas, drogas, cigarros e outros “elementos de risco”, sendo o vício o mais óbvio em termos de consequência. Os encontros dizem respeito antes a interesses ou motivos de reunir-se com indivíduos que partilham anseios e gostos em comum. Da mesma forma, adentrar em cenários desta espécie não é uma garantia de provar da automutilação.

Figura 25. Rede social de adolescente da pesquisa de campo100

Fonte: Captura de tela de rede social.

Por esta razão, embora ao final do encontro, após as atividades realizadas na reunião, alguns adolescentes terminem desacordados em calçadas, muito do que se observa pode não passar de experimentação episódica, atitudes mais ousadas que, na realidade, não são incomuns entre os 15 e 18 anos de idade, ainda mais quando se trata de sujeitos que se empenham em ser e agir de modo a fugir de enquadramentos “normais” (alguns interlocutores do campo “off-line” ou do meio virtual falam em “povo comum”, “sociedade hipócrita” ou, como no exemplo da imagem acima, “regras de merda”).

Nesta linha de raciocínio, mesmo a automutilação, especialmente quando é feita em grupo, deve ser interpretada com cautela. Nem toda automutilação pode ser definida nos moldes daquilo que, ao menos preliminarmente, se entende como resposta a um drama existencial crônico, originado por diversos fatores, como

100 Na imagem recortada, a garota expressa opiniões que são comuns entre os frequentadores da cena, como também o gosto pela banda de deathcore Suicide Silence.

problemas familiares, situações econômicas ou emocionais caóticas (ALFONSO; KAUR, 2012). Acaba sendo não muito diferente das aventuras com álcool e drogas, como requisitos de sociabilização e integração a um grupo, da mesma forma como a escolha de vestimenta (duplo piercing nos lábios inferiores, tênis All Star, meias rasgadas, camisas de bandas de rock...) é selecionada quando o sujeito dar provas de seu interesse e envolvimento (CHOLACHATPINYO et al., 2002).

O uso experimental de drogas, álcool e, mais raramente, o ato de fazer cortes nos braços em público são exemplos do que se pode chamar de condutas de risco. Para Le Breton (2012):

Las razones de poner en peligro su vida para poder existir son numerosas y conflictivas, sólo lahistoria personal del joven es susceptible de esclarecer el sentido de su pasaje al acto, mientras que otro, viviendo una situación cercana, parece estar satisfecho o toma conductas diferentes. Las conductas de riesgo tienen su origen en el abandono, la indiferencia familiar, pero también, a la inversa, en la sobreprotección, especialmente maternal. Muchas veces está presente la descalificación de la autoridad paternal (p. 2).

Empenhar-se, nestas condutas, pode fornecer um vínculo para que os adolescentes sustentem um conjunto mais ou menos comum de interesses, a partir dos quais determinadas práticas, por algum motivo, vão parecendo ser excitantes para eles, acabando por serem cultivadas numa rotina de experimentação e risco (ver Figura 26). Este quadro de experiência pode relativizar o impacto dos efeitos negativos de atitudes que, à primeira vista, parecem equivocadas, especialmente para os de fora. Ou seja, ao exagerar com drogas ou bebidas e perder a consciência em um dado momento, o adolescente não deixa de retornar ao cenário onde sofreu o incidente, mantendo sua trilha de interesse e escolha, talvez por que seja aquilo que ele dispõe, de fato, ou ao menos por que uma parte importante dos seus anseios por sociabilidade esteja direcionada para estes cenários alternativos. Daí porque a insistente reprovação dos outsiders – por exemplo, os pais que proíbem as idas à PP – não surtir qualquer efeito para impedir que o jovem mantenha sua rotina. Do ponto de vista do sujeito, o ambiente e aquilo que nele é realizado não é apenas uma forma de fugir dos problemas pessoais, mas uma maneira de construir sua identidade ao passo que lida com suas emoções.

Figura 26. Reunião under no Centro Dragão do Mar101

Fonte: Próprio autor, novembro de 2011 (captura de tela de vídeo).

Adolescentes, nestas condições, como na imagem acima, é algo bastante comum no decurso desses encontros, que duram até o amanhecer (virar a noite, ou simplesmente virar). O enquadramento temporal destas rotinas é o fim de semana. Assim, por exemplo, ao serem questionados sobre a frequência com que fumam ou bebem, os adolescentes afirmam que fazem isso mais durante os fins de semana, quando estão com amigos, embora alguns poucos tenham relatado que gostam de sair para beber todos os dias. Isso leva a crer que o entusiasmo para fumar ou beber está diretamente relacionado à necessidade do encontro.

O ponto crítico é que a fronteira divisória entre a adoção de moda e estilo e a conduta de risco é tênue. Como vimos, muitos jovens em conversas informais declararam que bebem ou fumam exageradamente. Quem se arrisca apenas na adoção de uma moda de rua ao encarar um pouco de excitação casual com excesso de bebidas ou misturas com drogas, pode atravessar a linha que divide a sociabilidade

101 Garota de aproximadamente 15 anos em um dos pontos de encontro da “galera underground”, DM, apresentando estado de total descontrole (rasgando a pele e arrancando os cabelos) após ingerir álcool misturado a algum tipo de droga.

e livre expressão de uma individualidade de um lado, e o submundo autodestrutivo do outro.

A este respeito, podemos considerar que, enquanto a automutilação é um aspecto particular – sua popularização é também recente – a conduta autodestrutiva, por sua vez, é mais abrangente. Tem sido uma constante na história dos movimentos contraculturais na cultura jovem. Muito do que foi registrado na obra Mate-me por

favor, uma espécie de “bíblia” do punk, compilação de diversos depoimentos daqueles

que viveram a época de ouro do movimento, ajuda a refletir sobre este aspecto. Vejamos um breve relato sobre Nico102, uma das mulheres mais bonitas daquele

cenário. Ela foi modelo e vocalista do Velvet Underground, banda avô do punk:

Nico parecia uma criança, era uma pessoa infantil, muito doce, mas as drogas deixaram-na medonha. Nos anos cinquenta, tinha sido uma modelo famosa por causa daquele visual loiro alemão. Mas com todo aquele veneno em seu organismo, ela quis ficar feia, porque, se você quisesse ser aceito no mundo da droga, devia ser repulsivo e fazer sons feios. Por isso ela se esforçou pra parecer feia e fazer sons feios, mas era apenas uma trilha autodestrutiva na qual ela entrou quando se ligou em heroína [...]. Ela levou bastante tempo para morrer. Ela usava aquelas detestáveis roupas hippies de lã para disfarçar sua aparência, que tinha se deteriorado com o vício (MCNEIL; MCCAIN, 2004, p. 225).

É preciso separar o consumo episódico de álcool do consumo como manifestação de um comportamento de risco, mais profundo em termos psicológicos e de história de vida do sujeito. A mesma coisa se aplica ao corte, que pode ser algo acidental e muito cedo descartado pelo sujeito, como pode ser uma prática difícil de ser abandonada. Especialmente no âmbito da juventude, o comportamento autodestrutivo, como uma tendência antissocial, apresenta inclusive conexões culturais mais amplas. É o caso da geração punk dos finais dos anos de 1970, que demonstrou um forte arsenal destrutivo existencial, a exemplo da citação anterior, do cineasta Paul Morrissey sobre Nico103.

102 Um site dedicado à Nico (Christa Päffgen) compila várias de suas atuações no mundo artísticos, desde a música à moda. http://smironne.free.fr/NICO/, acesso 07 jan. 2012.

103 Certamente há um abismo entre a “cultura da droga” da década de 1970 (Timothy Leary era considerado o “guru das drogas”), uma espécie de busca transcendente como alternativa ao mundo materialista e suas convenções, retratado poderosamente no livro Junky, de William Burroughts, e a droga da cultura hiperindividualista contemporânea, talvez resultado mais de um reino do vazio nas relações do que de uma imersão em ideologias. Algumas destas questões serão melhor abordadas no Capítulo 5.

Em meio a um cenário complexo, multifacetado, transitório e flexível é possível atravessar as primeiras camadas de condutas de risco, passando por comportamentos que podem ser interpretados por outsiders à cena como sendo autodestrutivos, chegando ao cutting ou automutilação.

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