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3. A “PRAÇA DOS EMOS”

3.3. Jovens da cena, vodka, rupinol

3.3.1. Algumas lições dos encontros undergrounds

Estamos agora no Círculo, após enfrentar os veículos em fluxo incessante, em uma roda de conversa na qual estou inserido em um dentre outros encontros da reunião vasta que é a PP. Passo a ficar atento aos assuntos. Estou lá, atento ao desenrolar da situação:

“a menina morreu oh! tomou rupinol” [Uma garota do grupo aponta para outra bastante jovem desmaiada na grama, de outro grupo, com outros amigos. Logo em seguida, outra inicia um relato]. Uma vez eu tomei oito comprimidos de rupinol numa cerveja só, junto com cachaça, ainda. Tu é louco véi, todo mundo dormiu, eu ainda fui a única que agitava gritando naquele Dragão do

Mar. Flavis, manda teu amiguinho parar com amizade com aquele carinha ali,

sabe por que? Aquilo ali tudinho tem cafetão, é prostituto. Eu já te disse ne,

73 Como exemplo, em um dos tumblrs depressivos, com hashtags #suicidio #solidao #cortes, um jovem publica a seguinte reflexão: “Você tem duas opções: Ou destrói os seus medos. Ou os seus medos destroem os seus sonhos”. Trazendo para a dimensão aqui discutida, o medo seria um fator inibidor para o sujeito revelar-se, consequentemente, inibindo também o deslocamento (ETERNA..., 2014).

Douglas?! [“Ah... eu só sou amigo dele, eu falo com ele...”] E tu já percebeu que o Douglas antigamente nem bebia assim, e agora todo fim de semana ele só vive bêbo junto com eles? Tipo assim, nada contra, eu tenho amigos assim. Todos eles se vendem tipo prostituto sabe? E todos eles usam droga e fazem o diabo a quatro, e tem cafetão ai, quando um não quer fazer... Pois uma vez os viados só faltaram matar ele [o Douglas] duma pisa. A única coisa que eu vejo é só eles se embebedando. Colocam LSD na bebida... Cara, num faz mais isso não! Tu sabe do meu passado, ne, Douglas?

Tanto a garota quanto seu amigo que recebe a reprimenda, apesar de terem apenas 14 anos, já detinham certo acúmulo de experimentações com drogas ilícitas, álcool e sexo. O garoto, que mora na periferia de Fortaleza com irmãos, mãe e padrasto, na realidade, seria mais tarde o informante n° 2, abrindo ainda mais espaços de interação para que eu pudesse “conviver” com os grupos, no desenrolar de suas experiências. “Olha, eu tenho já muita experiência sabe, até mais que muita gente de 30 anos que tem por aí”, referindo-se à sua vida sexual. Douglas me falou sobre o começo da PP. Segundo ele, em 2009, havia rodas de emos para saber quem ia se cortar, corroborando com as declarações da Flavis. Os outros grupos, geralmente os jovens mais velhos de outras tribos, “achavam tudo uma bobagem. Com o tempo, vem mais maturidade e as pessoas vão deixando de fazer essas coisas”. Certa vez, aponto para uma “bicha excêntrica” que passa por nós, e ele explica que é preciso conhecer todo tipo de gente para poder não correr riscos. “Essas aí são as lady gagas haha”. Cita o caso das rabissacas (gesto de desprezo ao olhar e virar o rosto para alguém, saindo da sua linha de visão), algo que não se deve fazer para alguns gays por ali, pois isso poderia gerar uma grande confusão, pois elas não toleram este ato.

Em uma das ocasiões, quando aparece com uma de suas colegas, ela volta ao tema dos emos: “O Dragão fecha e desce todo mundo pra estátua de Iracema. A gente vira e desce todo mundo pra lá. Eu pensei que nunca ia ver isso que eu vi ontem [O que você viu ontem?]. Os emos, cortando os pulsos. Eu olhei assim... vixe!”.

O retrato que faço aqui destes tipos de interações, através das quais vou conhecendo detalhes de vidas e de experiências pessoais, antes de despertar um senso de reprovação ética, baseado em pressupostos estes mesmos socialmente sancionados74, ou invocar o “protocolo de classificações” de sintomas de certa

74 O exemplo da tentativa de evangelização da qual fui o alvo é ilustrativo a este respeito. Basicamente, o pressuposto é que, se eu estaria passeando por ali, é por que eu deveria ter algum tipo de problema – “aqui rola de tudo”. O que, de fato, poderá ser visto como um problema são questão não tanto de moralismo e de comportamento inapropriado, mas de uma maneira complexa e por vezes difusa,

vertente da psiquiatria75, remete à moratória referida por Erickson (1976). Esta é

institucionalizada em cada sociedade para lidar com a adolescência, “um período para roubar cavalos ou para devaneios da imaginação [...], um período para ‘mocidade perdida’ ou vida acadêmica, um período para abnegação ou extravagâncias – e, hoje, frequentemente, um período para patologias ou delinquências” (p. 157).

Sendo assim, diante da condição através da qual os encontros proporcionam um aprendizado para o pesquisador, poderíamos pensar em termos da noção de elasticidade. Particularmente, em relação a este cenário alternativo, um

insider poderia questionar: até onde posso ir de um modo que eu consiga retornar

mantendo minha integridade? Isto remete a uma propriedade da vivência destes contextos, que são, sobretudo, espaços de autonomia76. Esta propriedade é o

conhecimento tácito adquirido pelos jovens acerca dos limites de ações e de ingresso em certas atividades77, como sugere, por exemplo, o alerta que a garota faz para o

amigo no diálogo acima, sobre ele estar sempre embriagado nos finais de semana ou sobre o tipo de pessoas que ele estaria se envolvendo (“prostitutos, cafetão”). Enquanto alguns adolescentes caem e desmaiam em calçadas e gramas durante estas reuniões (e outros até dirão que “um povo doido anda se cortando por aí em grupo”), outros parecem ter mais domínio sobre suas próprias condutas, e até conseguem ir longe, ao passo que separam e selecionam indivíduos e subespaços de práticas ou interações durante o seu deslocamento ou seu o exercício de autonomia.

questões afetivas, algo muito similar ao fenômeno micro tratado por Rolnik (1989), “um buraco negro, efeito do corpo vibrátil amortecido de uma subjetividade que ficou reduzida ao ego” (p. 41). Estes aspectos, relacionados também com uma discussão acerca da autodestruição e da autolesão, a um nível mais abstrato, será discutido oportunamente no próximo capítulo.

75 Ver, por exemplo, Barreto (2012). Muitos estudos sobre automutilação e autolesão, mesmo que ofereçam dados estatísticos valiosos, particularmente sobre self-harm entre adolescentes, seguem a perspectiva da classificação internacional, como ressalta o autor: “Pela primeira vez na história, temos uma classificação internacional de transtornos mentais e de comportamento. Nas pesquisas, tornou- se exigência metodológica a quantificação mediante validação estatística. Nos ensaios clínicos, generalizou-se, para a referida quantificação, o emprego das escalas de avaliação, da randomização, do duplo cego, dos grupos de controle” (p. 4).

76 Esta categoria tem uma profunda relação com o fenômeno das mídias eletrônicas, por onde se disseminam muitas modas jovens contemporâneas. Para se ter uma ideia, por exemplo, estes espaços de autonomia entram mais frontalmente em choque com os valores e normas de uma sociedade, como é o caso da tensão decorrente das “tribos ocidentais” no Oriente Médio. Discussões em torno das modas jovens e da abertura de valores e comportamentos serão melhor tratadas no Capítulo 6.

77 Efetuar um ato ou abdicar de fazê-lo é ter consciência de prováveis consequências. Assim, é interessante colocar que a "abstenção pressupõe a consciência cognitiva de cursos de ação possíveis: não será o mesmo que simplesmente 'não fazer' coisas que poderiam ter sido feitas" (GIDDENS, 1996b, p. 92).

Pensando com Erikson (1976), a partir destes e de outros contatos face a face que tomam de assalto minha reflexão, sem desconsiderar outras fontes menos “vivas” de dados, acredito que:

As autobiografias de indivíduos extraordinários (e extraordinariamente dotados de autopercepção) constituem uma fonte de compreensão do desenvolvimento da identidade. Para se descrever a genética universal da identidade, desejaríamos estar aptos a traçar o seu desenvolvimento nas biografias de indivíduos “comuns”. Neste ponto, tenho de basear-me em impressões gerais colhidas na vida cotidiana, no trabalho de orientação com jovens moderadamente perturbados e na minha participação em um dos raros estudos “longitudinais” – uma fonte que exclui a publicação detalhada de dados biográficos (p. 155).

A garota que aparece na fala acima reproduzida, preocupada com seu amigo perigosamente próximo ao cafetão, e já detentora de algo que se possa chamar de “passado” (como quem já havia cometido falhas, “extravagâncias” que deveriam ficar para trás, ao equipará-las com os erros do amigo – “cara, num faz mais isso não! Tu sabe do meu passado, né?”), estava sempre vestida com um estilo meio

underground, às vezes com meias longas perfuradas e rasgadas que lembram as groupies da época do punk, a exemplo de Nancy Spungen78. Não simplesmente pelas

meias, mas lembra Nancy Spungen pelo modo de vida que vinha conduzindo. De classe média, morava apenas com a mãe e irmã em um dos bairros caros da cidade. Certa vez, em outro lugar que não a PP, demonstrou o rancor que tinha pelo namorado da sua mãe a uma amiga. “O bicho é tão idiota, mulher, que ele atropelou um gato de propósito, acredita? Eu gritei ‘seu ridículo’”.

Ela já havia sumido algumas vezes, como na vez que passou uns quatro dias “com um cara, na casa dele, em um daqueles ‘bairros perigosos’”. “Olha, eu realmente não sei com quem ela saiu”, uma informante próxima responde a uma das ligações da mãe da garota. Como muitos na PP, ela é uma daquelas que circula bem entre álcool e cigarros, fazendo uso de um estilo de vestir rocker a seu próprio modo. Algumas vezes, as interações explodiam em vários assuntos, com muitos aspectos distintos (sexo, família, namoro, bebidas, sentimentos, vício, música...), tornando o andamento da pesquisa mais complexo; as coisas surgem e “saem pelo ar”, tornando-se de difícil acompanhamento, de focalização. Quanto mais o

78 Nancy Spungen foi uma groupie que ganhou fama quase 10 anos após sua morte prematura, com apenas 20 anos, após o lançamento do filme Sid and Nancy. Foi namorada de Sid Vicious, baixista da banda britânica de punk rock Sex Pistols, morto de overdose com 21 anos.

pesquisador se posiciona para poder participar efetivamente de uma interação, ele sai de um modo observador, para um modo de monitoramento mútuo; ele vai correspondendo, recebendo os feedbacks gestuais e demonstrando que está atento a eles, respondendo e fazendo perguntas nesse tipo de contexto. É um grau mais acentuado do que aquele que se observa de fora, que se pode estar desatento, que anota, mas não participa79.

Ao mesmo tempo em que se interage de modo mais ativo, observa também o entorno. Enquanto este é um cenário comum para os informantes, para mim, como pesquisador, é invasivo, na medida em que há um interesse particular no que ocorre também fora da interação, o que a orbita e, de fato, estão todos lá pelo que o contexto representa e possibilita. É um lugar particularmente especial para o estilo de vida que o indivíduo sustenta e para os relacionamentos – tanto a “camaradagem da identidade partilhada” ou o amor e o namoro.

3.3.2. A autolesão adolescente: o fuck you =) irrompe o espaço da interação

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