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A Avaliação do Testemunho e sua Credibilidade

CAPÍTULO I – REVISÃO DA LITERATURA

9. Psicologia do Testemunho

9.1. A Avaliação do Testemunho e sua Credibilidade

Assim, a discordância entre as versões da presumível vítima e do alegado agressor fazem com que muitas vezes se tenha que avaliar a credibilidade das declarações para se tomarem decisões judiciais (McGuire, 1998, citado in Matos, 2005), pois ao juiz interessa, antes de mais, que as declarações e confissões sejam sinceras e verdadeiras, já que não pode haver justiça sem a certeza dos factos que se julgam (Calabuig G., 2005). No entanto, a avaliação da veracidade das declarações é um processo complexo, ponderado e assente em determinadas estratégias, técnicas e critérios do domínio estrito da Psicologia, pelo que deverá sempre ser efectuado por Psicólogos de formação (preferencialmente do domínio clínico/forense) e, apesar de não corresponder à aplicação de qualquer um logaritmo infalível que determine uma verdade insofismável, é amplamente fundamentado pela literatura científica da especialidade (com estudos sobre os processos de memória, atenção, percepção, pensamento, linguagem e aprendizagem) e em mais de meio século de experiência e sucesso comprovados (Machado e Antunes, 2005; Mezquita, 2005; Vrij, 2008).

De acordo com o artigo 151.º do C.P.P., torna-se necessária a realização de provas periciais quando a percepção ou a apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos. Ora, na avaliação da credibilidade do testemunho, especialmente em determinados casos concretos (como seja o abuso sexual, a violência conjugal, entre outros), a livre apreciação do julgador é muitas vezes insuficiente para a avaliação fundamentada da veracidade das alegações, tornando-se necessária a intervenção criteriosa da Psicologia Forense (Carmo, 2005). A avaliação da credibilidade do testemunho tem por base o conhecimento das características psicológicas e da personalidade de quem o presta, contribuindo assim para a melhor apreciação do testemunho em si e dos factores que o podem influenciar (Carmo, 2005). Neste contexto, a Avaliação da Validade das Declarações (Statement Validity Assessment – SVA) já referida, é o processo mais amplamente estudado e utilizado, especialmente em determinados países desenvolvidos do continente Americano e Europeu (Mezquita, 2005; Vrij, 2008). Inicialmente os propósitos da SVA

tinham por base a avaliação da veracidade das declarações de menores alegadamente vítimas de abuso sexual, no entanto, actualmente este procedimento é utilizado noutros contextos forenses, nomeadamente com adultos (Mezquita, 2005, Vrij, 2008). É óbvio que não existem métodos infalíveis ou perfeitos e, apesar deste método ser o mais estudado, o de maior sucesso e o mais utilizado, existem sempre críticas.

A SVA é composta por quatro fases: análise dos documentos do processo (dados sócio-demográficos, natureza do evento em questão, entre outros); entrevista semi- estruturada ao sujeito; aplicação dos critérios de validade - Criteria-Based Content Analysis (Análise de Conteúdo Baseada em Critérios – CBCA) e avaliação do CBCA através de uma lista de controlo da validade dos critérios apurados - Validity check-list. (Mezquita, 2005; VRIJ, 2008).

Relativamente à segunda fase (realização da entrevista semi-estruturada), o método de maior concordância e resultados é a técnica de entrevista cognitiva de Geiselman e Fisher, que estimula a livre narração e incrementa a quantidade e a qualidade de informação que se obtém, facilitando ainda a invocação de achados mnésicos importantes na valoração testemunhal (Mezquita, 2005; VRIJ, 2008). De salientar que, na parte inicial da entrevista, deve optar-se pela formulação de questões abertas e, posteriormente, passar a clarificar, mediante questões também o mais abertas possível, os aspectos que se considere importantes serem elucidados. As questões fechadas só devem ser utilizadas para o esclarecimento de detalhes muito concretos (por exemplo, o nome do alegado agressor, idade, datas) e nunca, em momento algum, devem ser colocadas perguntas com um carácter marcadamente sugestivo ou que traduzam a interpretação do entrevistador (Mezquita, 2005; Vrij, 2008).

A entrevista deverá ser presenciada por dois entrevistadores (Psicólogos) e ser gravada em formato áudio (idealmente em formato áudio e vídeo), para que possa ser integralmente transcrita a fim de se aplicarem os 19 critérios do CBCA (Criteria-Based Content Analysis - que avaliam de forma sistemática o conteúdo e a qualidade dos dados obtidos na declaração. Quantos mais critérios se verificarem (numa cotação entre 0 e 2 pontos), mais verídica se pode considerar a declaração. No entanto, o facto de não se verificarem os critérios de credibilidade não implica de forma inequívoca que os acontecimentos relatados não tenham ocorrido. Contudo, se o relato for verdadeiro, de modo geral e de acordo com a hipótese de Undeustch (que realça que as declarações baseadas em acontecimentos reais diferem daquelas que são fruto da

125 imaginação), a descrição dos factos afastar-se-á de um esquema estereotipado (narrativa linear, ordenada, desprovida de detalhes) e tende a apresentar elementos idiossincráticos, com descrições pormenorizadas e particularidades singulares ao nível do conteúdo do discurso (Mezquita, 2005; Vrij, 2008). Após este procedimento dá-se início à quarta e última fase, de aplicação da lista de controlo de validade dos critérios do CBCA (Anexo 2), que, tal como o nome indica, valida os critérios apurados de acordo com as características psicológicas do entrevistado, a sua própria motivação, as características intrínsecas da entrevista e ainda determinadas incoerências relativas ao processo no seu todo.

No entanto, apesar da entrevista ser a principal ferramenta de avaliação, muitos autores defendem que é fundamental a administração de testes de psicodiagnóstico para a avaliação da sinceridade com que uma pessoa se manifesta perante um perito e/ou um juiz, pois estes auxiliam na tradução da situação psicológica do interrogatório (Calabuig G., 2005; Magalhães et al., 2010). Através da utilização complementar de testes psicológicos (por exemplo, de inteligência, personalidade, conduta e de malingering – fingimento intencional de doença ou sintomas a nível físico ou psicológico, com o objectivo de conseguir algo em troca) pode-se deduzir o estado mental, afectivo, volitivo e intelectual do depoente, o que nos coloca na pista da veracidade das suas declarações e confissões (Calabuig G., 2005; Magalhães et al., 2010). Além deste aspecto, a utilização inteligente de testes psicológicos permite descobrir de modo fácil, rápido e fiável os rasgos de personalidade do indivíduo, assim como alguns sintomas psicopatológicos que possam estar presentes; ajuda ainda a completar a entrevista

clínico-forense, proporcionando um maior nível de objectividade na produção de um parecer verdadeiramente fundamentado (Calabuig G., 2005; Magalhães et al., 2010). Com crianças (especialmente as mais novas) os psicólogos podem e devem ainda recorrer a técnicas específicas de suporte à expressão verbal, como estratégias lúdicas ou desenhos (Machado e Antunes, 2005; Magalhães et al., 2010).

Além do exposto, e especialmente em casos de menores presumivelmente vítimas de abuso sexual, é ainda elementar recolher informação junto do maior número possível de sujeitos que possam ter estado em contacto com a alegada vítima, nomeadamente pais e outros familiares, bem como Professores, Técnicos de Saúde, amigos, entre outros. Estes indivíduos podem ter um papel preponderante na alegação de sintomatologia e sua evolução (através de entrevistas e questionários, como o CBCL -

Child Behavior Checklist e o TRF - Teacher´s Report Form), como sejam as repercussões em termos de rendimento escolar e o surgimento insidioso ou abrupto de determinados comportamentos que no momento possam ter sido desvalorizados (Machado e Antunes, 2005). Podem ainda ser utilizados outro tipo de protocolos que valorizem um ou mais domínios ao nível do desenvolvimento cognitivo, linguístico e narrativo, mnésico, sócio-moral, emocional e afectivo, relacional, comportamental, do apoio familiar, do risco de revitimização, dos indicadores de trauma psicológico e outro tipo de indicadores clínicos de relevância (Magalhães et al., 2010).

Sintetizando, na valoração testemunhal todos os pormenores são importantes, pois a minúcia da análise técnico-científica (conduzida por peritos devidamente qualificados do domínio da Psicologia) é fundamental, quer para a própria avaliação da credibilidade do testemunho, quer para o evitamento de uma situação indesejada de vitimização secundária - para as reais vítimas ou para os arguidos injustamente acusados (Mezquita, 2005; Vrij, 2008). Deste modo, a avaliação da credibilidade do testemunho constitui-se como uma ferramenta indispensável em determinados contextos jurídico-legais, que suplanta as limitações de uma mera apreciação, pelo seu reconhecimento empírico e ainda pela visão holística e fundamentada de todo o cenário processual (Mezquita, 2005; Vrij, 2008).

Assim não bastará um testemunho reportar, isoladamente, um pormenor ou corrigir espontaneamente determinado detalhe para merecer credibilidade, pois o seu depoimento deve ser analisado como um todo. Uma pontuação alta num só critério ou outro não nos dará certezas de nada. Para além disto tem de ser analisada e validada pela check-list.