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A “batalha identitária” e a ausência de outras palavras

TRABALHADORES FILHOS DO ÊXODO E DA FAVELIZAÇÃO

6. DINÂMICA DO RECONHECIMENTO E DA IDENTIDADE PELO TRABALHO

6.3 Nomear é parte da “batalha identitária”

6.3.2 A “batalha identitária” e a ausência de outras palavras

Esta seção dedica-se à reflexão em torno dos argumentos relacionados à questão formulada na problematização desta tese, referida como: O operário passou a ser designado como trabalhador; mas deixou de ser operário?

Se por um lado os termos peão e colaborador geraram um conjunto de debates e reflexões pertinentes ao desafio colocado diante de um leque de contradições ao redor da construção, (re)construção de uma identidade de trabalhador, por outro é notável a ausência nas narrativas de vida profissional dos termos clássicos de operário e proletariado. Mesmo entre aqueles metalúrgicos com atividade sindical, entre os mais velhos e com experiências de eleições para CIPA, este léxico não esteve presente.

A “batalha identitária” é uma batalha de caráter ideológico, que faz os indivíduos parecerem livres para estarem onde estão; parece que cada um é o dono de sua consciência, é consciente de seu agir, por pura escolha própria. As restrições desde as oportunidades

profissionais herdadas de família, dos papéis, dos lugares, das interações sociais amalgamadas na relação explorador-explorado, dominador-dominado, opressor-oprimido ficam embaçadas pela força da ideologia.

Ideologias com sentido negativo, como explana Guareschi (2010), concebidas e situadas em um contexto histórico, em que um conjunto de ideias, valores, símbolos e linguagens escondem ou distorcem uma realidade e ao mesmo tempo assumem uma dimensão prática, por operar o desenvolvimento da estratégia da classe dominante. Nesse sentido o campo das formas identitárias divididas e fracionadas é um reflexo das alterações na estrutura da socialização das relações de trabalho operadas pela estratégia neoliberal do capital.

Por outro lado, a divisão entre a identidade de peões e colaboradores expressa o quanto nenhuma delas é hegemônica e nenhuma está bem; nisso parece oportuna a problematização sobre a questão da crise em Dubar (2009 e 2011). Crise das identidades ocorre quando as pessoas rejeitam formas de serem definidas e classificadas. No caso, temos a rejeição dos metalúrgicos mais jovens em serem identificados como peões e dos mais velhos em serem identificados como colaboradores. Também é crise quando aquela designação e qualificação desejada é rejeitada; é o caso de os peões terem de aguentar essa rejeição.

A crise de identidade dos trabalhadores, para o autor, é parte da dissolução de um tipo de vínculo social, de um tipo de relação com o outro. Em meio a essa crise, antigas identidades estão em franco processo de desvalorização, descaracterização e, portanto, de invalidação social, mas a nova ou a futura identidade ainda não se instalou. O cenário é de opacidades, dúvidas e ameaças, mas também de possibilidades e oportunidades de reinvenções e recriações.

Sob a crise estrutural e original do capital, decorre a crise de seu próprio sistema de dominação, cujas contradições estão expostas em todas as relações e instituições. Disso aumenta suas ações ideológicas e práticas, como as acelerações da vida produtiva e social, das não interrupções de tempos, entremeios e das não pausas necessárias para o ser social fazer a pergunta: por quê? Sem tempo, sem espaços e sem ambientes de socialização, não há como fazer-se essa pergunta, necessária para elaborar o percurso do conflito social no trabalho, localizar-se e reconhecer-se a si mesmo e ao outro no interior desse conflito. Segundo Freire (p.75, 2002), “nenhuma ordem” opressora suportaria que os oprimidos todos

passassem a dizer: Por quê?

Quanto ao porquê da ausência das palavras operário e proletariado, termos clássicos do campo teórico, da militância política e da sociologia do trabalho, pode-se inferir a conveniência da elaboração de Braga (2012) do conceito de classismo em estado prático no Brasil. Ele se refere a uma luta de classes, desenvolvida basicamente no campo material, das necessidades da sobrevivência, permeada por carências de recursos organizativos, formativos e políticos.

A carência destes recursos na categoria metalúrgica deve-se em grande medida pela ausência de uma memória organizada de sua história, capaz de trabalhar pedagogicamente com significações e sentidos comuns, desde a história dos conflitos, das lutas, das derrotas e conquistas, em nível nacional e estadual. Tanto a história como a sociologia do trabalho são ciências muito importantes para que os trabalhadores brasileiros possam superar os limites do classismo em estado prático.

Por outro lado, toda crise tem perigos e possibilidades, há muitas perguntas no campo empírico, sobre como enfrentar tantos bloqueios para (re)tomar espaços de encontro, de trocas de experiências, de reflexividades, mas ao mesmo tempo há apontamentos. Para Antunes (2018) existem “coágulos de relações sociais” no trabalho vivo, ou seja, ainda que sejam modestos os laços de solidariedade, eles guardam uma importante potencialidade.

Segundo Freire (2006), é no processo de discernimento de conscientização de si e da realidade que o sujeito está sendo, sempre em um jogo entre permanência e mudança, no qual os seres humanos agem e transformam para um lado ou para outro. Rosa (2016) aposta na recriação de conexões, desmercantilizando-as, tornando-as ricas em experiências, encontros, diálogos de ressonância, no sentido de uma vida que vibra entre sujeitos, no trabalho, no mundo social e com a natureza.

Para Fanon (1968), é fundamental recuperar o sentido de humanidade a partir das próprias experiências desumanizadoras originárias da dominação colonial, que apregoa que descolonizar é criar novos homens e mulheres. Para Harvey (2018), é retomar o humanismo revolucionário secular, sabendo que a felicidade da maioria custará a frustração de poucos. De acordo com Dubar (2009), o caminho passa pelo acesso ao conhecimento, através da troca das experiências práticas com os outros, em espaços comuns de reflexividade. Uma identidade reflexiva permite dar sentido a uma determinada prática, um sentido capaz de mobilizar uma “paixão”, um projeto de vida, ou seja, dar sentido aos coágulos relacionais

preocupados com a coletividade como relata Adir.

Continua os grupos sim, mas segmentados, tem aqueles que pensam no bem comum daquele grupo, que vai também favorecer os outros, mas vai ter aqueles que pensam outros interesses que não é a fábrica, os interesses de melhorias ali, tem os grupos que pensam em festas de fim de semana e eles agregam aqueles da balada. Tem aqueles que se aproximam ideologicamente os que seguem pensamentos de Bolsonaro, pensamentos militares é mais comum do que a gente pensa, dentro das metalurgias o pensamento da ideologia militarista de Bolsonaro (Adir, 42 anos, sindicalista).

Observa-se o movimento das ideias e dos grupos conservadores formando suas bases sociais, mas também há espaços para outras ideias, pelo campo dos trabalhadores, como refere Líbio, que acredita ser necessário um caminho organizativo diferente para os trabalhadores. Um caminho mais aberto e mais qualificado em conteúdo e método, na forma de movimento, agregando a aprendizagem pela experiência prática. Silva sinaliza com uma perspectiva de trabalho de (re)construção, observando as posturas dos indivíduos e, pelo exemplo pedagógico, desenvolver uma construção de confiança, forjando o grupo, pela prática do trabalho “ombro a ombro”.

Eu acho que tem saída, se tiver um movimento as pessoas voltam, faltam motivos para retornarem. Eu observo que espaço tem, mas nosso povo não vai. A T. tem um espaço de convivência, tá sempre cheio de gente. O patrão trabalhou muito, individualismo, competição, mas ainda tem um espaço, mas nosso dirigente não sabe explorar. O nível intelectual dos trabalhadores está diferenciado, hoje tu fala na porta da fábrica eles ficam prestando atenção, observando se aquilo tem fundamento, isso é um cuidado, antigamente se gritava qualquer coisa, hoje não eles te questionam (Líbio, 55 anos, sindicalista).

Eu não consigo ver efeito geral ou manada, é personificado, tem pessoas que têm por valor ensinar da melhor forma possível, acolhe pensando “esse guri é da idade do meu filho”, tem um ensinamento e uma forma de relação estreita, mas isso é de pessoa, não consigo ver isso de grupo. Tem alguns que não acolhem, de modo geral eu vejo uma relação boa, mas de mão dupla, se o cara chega na malandragem em não fazer as coisas, mas se o cara entrou e pega junto, bota a mão, de forma neutra, não pelego do chefe, esse cara é dos nossos, ele está na média do grupo. Mas se ele sai da média, não gosta muito de trabalhar, é aqui com os chefes, nas reuniões elogia o chefe, o grupo deixa ele de lado, ele tem que fazer alguma coisa para retornar (Silva, 28 anos, CIPA).

Os coágulos de relações sociais podem provocar a abertura de uma brecha para o exercício de reconhecer-se pertencente a uma identidade de trabalhadores, mas sob outra ressonância socializadora. Líbio apresenta uma perspectiva de caminho por uma nova coletividade, desde de que seja capaz de formular novas qualidades relacionais. Silva aponta também a dimensão da postura dos sujeitos, da expressão de valores, de cumplicidade e lealdade entre os trabalhadores.

possível perguntar sobre as dificuldades em sua operacionalidade e por onde começar a formulação de uma nova coletividade? É razoável pensar em encontrar outros espaços e tempos para além dos locais de produção, uma vez que estes são necessários e fundamentais ao processo de interação social. Estes estando tomados pelo método de gestão das empresas, tenha-se que pensar em formar espaços de socialização dos trabalhadores, em seus territórios de moradia, por exemplo.

Um passo dessa natureza requer pessoas preparadas para tal, isso exigiria pensar em um programa de formação de um coletivo de trabalhadores, de caráter político e pedagógico, sindicalizados ou não, preferencialmente ligados a algum formato de organização pelo local de trabalho. Um programa de formação voltado para um trabalho de estudar e explicitar os mecanismos de dominação e permanência dos regimes de produção do capitalismo, assim como os desafios da mudança social, como provoca Burawoy (2010). A seção seguinte dedica-se um pouco mais ao desenvolvimento destas provocações, analisando a possibilidade de explorar as dimensões da categoria socialização.

6.4 A importância de uma outra socialização para a (re)construção da identidade