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As marcas da identidade desde a dimensão da prática de valores

TRABALHADORES FILHOS DO ÊXODO E DA FAVELIZAÇÃO

4. AS DIMENSÕES IDENTITÁRIAS DOS METALÚRGICOS NOS ANOS DE 1970 E

4.4 As marcas da identidade desde a dimensão da prática de valores

Sistematizar a dimensão da configuração identitária relacionada a produção de atitudes, posturas e lógicas de ação mais recorrentes na geração de trabalhadores dos anos de 1970 e 1980 é um exercício de localizar a lógica existente nestas experiências de trajetórias profissionais. Uma lógica capaz de fornecer elementos para a análise do processo de formação da identidade de sujeitos desde sua vida laboral.

Para tanto, a seção está organizada em dois momentos. Primeiro, a discussão sobre as perspectivas de atitudes e posturas, compreendidas como uma prática de valores, expressos em palavras como sacrifícios e solidariedade. Para o segundo momento, uma discussão sobre as lógicas orientadoras das ações envolve três aspectos, frutos da relação entre os valores e a realidade: a fragmentação dos trabalhadores, da memória coletiva e da alienação.

Na seção anterior, ao ser destacada as difíceis condições de trabalho encontradas pelos jovens oriundos do campo, emergiu nas narrativas os diferentes lugares e espaços de tempos em que esses sujeitos puderam vivenciar suas experiências de socialização secundária. Em meio a estas experiências, segundo suas histórias de vida profissional, é possível perceber o destaque de elementos valorativos, fruto do aprendizado lento e descontínuo das regras comuns ao grupo e de suas normas visíveis nas atitudes, aqui reunidos na expressão de “prática de valores”.

Inicialmente, a descrição das condições de trabalho destacou a palavra sacrifícios como uma experiência comum e, ao mesmo tempo, produtora de cicatrizes nos corpos de homens e mulheres machucados e “brutalizados” por este meio, mas capazes de aguentar, afinal estes eram bons empregos. A dimensão de sacrifícios, embora vivida fisicamente e individualmente, era também percebida coletivamente, a ponto de produzir o elemento da inquietação social operária, nesse caso exemplificado no processo de ressignificação do papel das CIPAs.

A inquietação operária no sentido atribuído por Braga (2013), na forma de uma espécie de reunião das experiências da descriminação de origem social, com as precárias condições de existência nos bairros de moradia, mais o despotismo fabril, no sentido atribuído por Burawoy, (p. 101, 2017) de “uma extração do esforço através da coerção e do medo”. A reunião desses fatores conformou um estado permanente de reações e de enfrentamentos por parte dos trabalhadores.

Por outro lado, para as reações se efetivarem uma segunda palavra ganha relevância e importância: solidariedade. A solidariedade como orientadora da ação coletiva voltada para alcançar tanto os objetivos individuais como os coletivos. Os níveis de sacrifícios, reconhecidos por serem compartilhados de modo comum, produziram atitudes e posturas de solidariedade na geração dos trabalhadores mais velhos, em grande medida por estes estarem inseridos em uma ampla rede de socialização, que dentro dela também forjaram importantes laços de confiança.

Pode-se inferir às práticas de solidariedade como um aspecto do conceito de ativismo prático de Braga (2013), exercido por sujeitos que mesmo carentes de recursos organizativos e ideológicos conseguiram reagir ao despotismo fabril. Sujeitos envolvidos por uma rede de relações e interações sociais necessária para aprender e para elaborar em comum o significado de valores, atitudes e posturas necessárias para a ação coletiva.

Quanto ao segundo momento, em torno da reflexão sobre as lógicas orientadoras das ações em comum e produtoras de configuração identitária, destacaram-se os aspectos da fragmentação dos trabalhadores, da memória coletiva e da alienação. Quanto ao tema da fragmentação dos trabalhadores, não é deslocado discuti-lo em um capítulo voltado para analisar a formação da identidade de trabalhadores metalúrgicos nos anos de 1970 e 1980.

A fragmentação da força de trabalho enquanto categoria já se fazia presente desde esse período, ainda que fosse usual que uma empresa metalúrgica abrigasse sob a mesma planta industrial 10 mil trabalhadores. Uma antiga divisão se estabelecia nas fábricas, entre os trabalhadores do chão de fábrica e aqueles inseridos em setores de gestão e administração. Aparecia, inclusive, na forma de uma diferença visual, pois o pessoal do chão de fábrica trabalhava uniformizado, de macacão e botinas, mesmo sob temperaturas elevadas, enquanto “os gravatinhas” dos escritórios protegidos das altas temperaturas, poeiras e barulhos extremos.

Esse panorama das relações entre trabalhadores informa que a discussão em torno da identidade metalúrgica diz respeito, de forma mais direta, a um grupo específico da categoria, aquela inserida diretamente nas atividades de produção. Os trabalhadores dos setores ligados com a concepção e com a gestão produtiva como um todo, embora oficialmente façam parte da categoria, sobretudo em termos de acordos e negociações salariais, na prática cotidiana não se reconhecem na identidade metalúrgica, como refere Marcos.

O chão de fábrica reage como trabalhadores, (...) eles (o administrativo) é que se separam, eles é que não querem sentar com a gente no almoço, no café, eles é que não jogam bola com a gente, eles fazem o grupinho deles e a gente faz os da gente (Marcos, 53 anos, base).

Nos capítulos seguintes o tema da fragmentação retornará contemplando elementos hodiernos, porém este destaque referente ao período anterior é para registrar que o desafio da fragmentação da categoria não é exatamente uma questão nova, embora na atualidade esteja mais complexa. Dito isto, como corolário, a lógica orientadora das ações coletivas e, portanto, produtoras de identidade baseadas nas experiências de socialização profissional encontram o espaço da atividade produtiva como locus permeado de significados importantes para a produção de vínculos e laços sociais partilhados em comum.

Outro aspecto de síntese das lógicas de ação em comum da geração mais velha aparece na forma de falas em tom de mágoas, no sentido de que os mais jovens não reconhecem os sacrifícios vividos pelos mais velhos e que as atuais e melhores condições de trabalho são fruto de muitas ações de reivindicações coletivas feitas no passado. O dilema dessas falas pode ser sistematizado na ausência de um campo de ações voltado para organizar e manter viva a memória da história da categoria.

A geração de trabalhadores mais velhos não produziu mecanismos e ferramentas de transmissão de suas histórias individuais e coletivas para as novas gerações, como por exemplo acervos, memoriais, museus e bibliotecas. Não há espaços concretos ou mesmo simbólicos para ancorar e transmitir às gerações seguintes a memória das lutas, das conquistas, assim como das derrotas. Não há também os registros dos métodos desenvolvidos de organização interna aos trabalhadores, de suas formas de ação coletiva. O que existe, em grande medida, é uma memória oral e dispersa.

Essas ações do passado não estando organizadas, sistematizadas e documentadas coletivamente comprometem a transmissão dessas experiências para as novas gerações. Há perdas da ideia de processualidade, da história movida pelas contradições entre os interesses patronais e dos trabalhadores. Sem memória coletiva abre-se espaços para as conjunturas parecerem episódicas, para as descontinuidades relacionais, para as incompreensões da origem e dos fundamentos de determinadas posturas e atitudes, compondo com isso o aspecto da alienação.

Para Konder (2009), o trabalho alienado ao cindir o trabalhador e o produto os desvaloriza e os descarta, transformando-os em mercadoria, impondo seus valores e sua

potência aos produtos e não aos produtores. Nesse sentido, os mecanismos de produção da alienação econômica, social, política, científica, cultural alicerça a relação exploração- explorado, opressor-oprimido em suas múltiplas faces. Ela pode ser gotejada nas falas de homens e mulheres, nesse momento entre os mais velhos, magoados e esgotados de tanto trabalhar

Para Basbaum (p. 17, 1977), a alienação é “uma forma de relação entre os homens e, ao mesmo tempo, entre os homens e determinados objetos ou coisas que lhes são exteriores”. Para Mészáros (2006), alienação em Marx tem quatro aspectos principais;

a) o homem está alienado da natureza; b) está alienado de si mesmo (de sua própria atividade); c) de seu “ser genérico” (de seu ser como membro da espécie humana); d) o homem está alienado do homem (dos outros homens) (…). Assim o conceito de alienação de Marx compreende as manifestações de “estranhamento do homem em relação à natureza e a si mesmo”, de um lado, e as expressões desse processo na relação ente homem-humanidade e homem e homem de outro (MÉSZÁROS, 2006, p. 20 e 21).

Reconhecer-se parte de uma identidade comum é necessariamente enfrentar aspectos da alienação, de suas formas de estranhamento, seja nas atividades do trabalho diretamente, seja das relações derivadas dele. Observa-se na geração de metalúrgicos mais velhos o quanto as suas condições objetivas e subjetivas de socialização na esfera da vida profissional lhes proporcionaram melhores condições de enfrentar pelo menos alguns elementos da alienação diante dos outros homens.

O “outro” nesse grupo geracional, sobretudo nos anos de 1970 e 1980, era um “outro” visível nos espaços de trabalho, que são lugares fundamentais para as práticas dos aprendizados das representações, das condutas, das atribuições de sentidos e de pertença a um coletivo, fundamentais para enfrentar a alienação como um todo. Mas essa geração envelheceu, e no meio de sua trajetória profissional o mundo do trabalho se transformou. Esse sujeito agora olha o “outro” do presente e sente mais estranhamentos e distanciamentos, sobretudo com os jovens, do que identificação e empatia pelo fato de serem membros da mesma categoria. Esse estranhamento produz um embate geracional mediado por intensas transformações nas formas de produzir, se relacionar, se socializar no trabalho, e sem dúvida esse embate compõe um grande desafio para o tema do fortalecimento de uma identidade de trabalhadores metalúrgicos.

No capítulo seguinte, voltado para colocar em relevo as dimensões da formação identitária produzidos desde década de 1990, estes pontos de síntese devem se somar a outras dimensões observadas considerando os impactos da reestruturação produtiva com seus novos

aparatos tecnológicos e políticos sobre os trabalhadores. As reações destes diante da atual estrutura de poder econômico e simbólico das empresas e das ameaças constantes de desemprego e exclusão geram a necessidade de reorganizar a estratégia coletiva de defesa do campo do trabalho.

5. OS CAMINHOS DA IDENTIDADE DOS TRABALHADORES