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Os enfrentamentos às duras condições de trabalho

TRABALHADORES FILHOS DO ÊXODO E DA FAVELIZAÇÃO

4. AS DIMENSÕES IDENTITÁRIAS DOS METALÚRGICOS NOS ANOS DE 1970 E

4.3 Os enfrentamentos às duras condições de trabalho

As condições de penosidade do trabalho, nos anos de 1970 e 1980, foram uma constante nas narrativas das trajetórias profissionais do grupo geracional mais velho em suas diferentes experiências produtivas, independente do porte das fábricas. Joaquim (64 anos, sindicalista) sintetiza esse momento de saída do campo e entrada no trabalho industrial: “a gente que veio da enxada para o esmerilho, dava muito acidente nisso e se aprendia fazendo”. Entre os metalúrgicos mais velhos há uma dramaticidade nas memórias das experiências de trabalho iniciais, as quais remetem a um aprendizado de como ficar vivo em uma espécie de luta contra a morte, em meio ao risco constante de mutilação e de desgastes físicos avassaladores.

O trabalho no fordismo periférico era mecânico, braçal e pesado e com baixos níveis tecnológicos. As áreas de maior risco de acidentes graves eram as forjarias, com fornos alimentados a lenha; usinagem com aços líquidos; polimentos com altos níveis de temperatura, barulho extremo, graxa, poeira; tanques de óleos quentes. Nos termos de Arlindo (61 anos, base) era “um bater marreta” e para Antero (54 anos, sindicalista) “era o homem e o inferno”.

(…) os setores, como o polimento, judiava muito da coluna, tinha um cavalete e o cara ficava sentado em um banquinho baixo, agachado o dia inteiro, uma fábrica de aleijados de coluna e surdos na forjaria (Adelmo, 66 anos, sindicalista). (…) era de 25 a 30 acidentes por mês, em média um acidente por dia, e acidentes graves. Pessoas que caia peso por cima, não voltavam mais a trabalhar, era um horror (Martin, 56 anos, CIPA).

Quando Braga (2013) escreve o termo “condições de trabalho despóticas em um regime de acumulação autoritário” parece forte, mas as narrativas recortadas acima dão conteúdo a esta expressão. As fábricas com as portas abertas aos jovens do mundo agrário sem futuro ofereciam uma passagem para o futuro, mas também poderiam destroçar, queimar, aleijar, ensurdecer, embrutecer os transeuntes dessa penosa travessia. O termo penoso não é conceituado na legislação trabalhista brasileira, embora seja citado como algo

com consequências mais graves do que periculosidade e insalubridade.

Mesmo sob condições penosas de trabalho ocorria um processo produtivo intenso, acelerado pelo mecanismo do “prêmio por produção”. Adelmo (66 anos, sindicalista) recorda o fato de na época não haver um salário fixo determinado e igual para todos. Cada um podia negociar seu salário diretamente com a chefia, a gerência ou o dono da fábrica, mas a regra geral era receber o salário conforme a produção, o que mais tarde se tornou o “bater a meta”. Nesse sentido, os mecanismos de contornos da penosidade e de coação para elevar a produtividade passavam claramente pela recompensa salarial.

A produção era ritmo pesado, a peãozada era judiada, o próprio trabalhador se submetia, mas tinha o prêmio. Exemplo, tem que fazer 50 copos por hora, na época não era meta, era prêmio, mas se tu fez 100, tu ganhava 100% no salário. O cara da produção se rasgava, ele tinha a possibilidade de dobrar ou triplicar o salário dele (…) eles almoçavam em 15 minutos e iam trabalhar, chegavam mais cedo e iam trabalhar, tua ia pra máquina sem cobrança dos chefes, ia para ganhar mais (Adelmo, 66 anos, sindicalista).

Além das precariedades materiais, havia também as brutalidades em grau elevado através dos maus tratos, coações como: a gente ia no departamento pessoal pedir uma informação e saia com advertências, os patrões convidavam a brigada militar para entrar e almoçar no começo dos refeitórios das fábricas com as armas na mesa. Os assédios dos supervisores, com ganchos a quem reclamava destas condições era desprezo e humilhações, era as “mulherzinha” ainda mais se era as pessoas mais simples (Antero, 54 anos, sindicalista).

Dejours (2005) demonstra como os mecanismos de violência contra outrem acionam o sentido da “virilidade”, sobretudo contra os dominados. Na prática, é infligir sofrimento ou humilhação em nome de manutenção da ordem, do poder e da força sobre o outro. A “mulherzinha”, o “veado”, o “fresco”, o “quem não tem nada no meio das pernas” é um fraco, um sujeito covarde, débil e sem virtudes. Para o autor, a virilidade é uma ferramenta usada pelas empresas contra o trabalhador, produtora da banalização do mal, por transformar o sofrimento infligido a outro em virtude, em mérito, em exemplo de referência de coragem. As reações dos trabalhadores diante desta situação de violência são perceptíveis em três direções: aceitar e resignar-se; não aceitar e ir embora, como vários relatos que contam que alguns começavam a trabalhar pela manhã, mas não voltavam após o almoço; e, em terceiro, a resistência com enfrentamentos. Os enfrentamentos foram em pelo menos duas direções, uma forma foi a busca pela efetivação do papel das Comissões Internas de Prevenção a Acidentes, as CIPAs. Elas tornaram-se um espaço de resistência, um lugar formal para documentar denúncias e reivindicar melhorias. Embora, segundo Martin e Antero a CIPA na prática não funcionava, era burocrática e vigiada pelos patrões, ela foi forçada pelos trabalhadores a cumprir seu papel.

Nós tinha que fazer alguma coisa, porque a CIPA se tu não organiza ela, ela fica só no papel, fomos fazendo denúncias, muitas e muitas visitas de fiscal do Ministério do Trabalho, depois as empresas começaram a ser multadas pela quantidade de acidentes. Hoje chega a passar mais de um ano sem ter nenhum acidente (Martin, 56 anos, CIPA).

A empresa começou a ceder quando eu comecei na CIPA e eles criaram uma equipe para dizer que eles mandavam e criou um enfrentamento, eles tentavam fraudar as atas da CIPA, nós fazia tudo por escrito, com as pessoas e isso fazia com que eles tivesse que tomar medidas. Com a CIPA a gente conseguia intervir em chefias, no tratamento, mudar o assédio moral, as palavras que fazem com que os trabalhadores fiquem mal e se acidentem. Isso foi fazendo a empresa mudar, mas a gente levava para o MP e o MT provocando investigações onde se constatou a realidade (Antero, 54 anos, sindicalista).

A forma de enfrentar o problema foi pressão e cobrança do papel de regulação das relações do trabalho pelo Estado, exigindo o funcionamento das instituições, como o Ministério do Trabalho, Ministério Público do Trabalho, INSS e a Justiça do trabalho.

Sob pressão esses órgãos iniciam processos de fiscalização, em grande medida sabotados, pois os próprios órgãos avisavam aos patrões o dia e horário das vistorias, e assim as fábricas eram “maquiadas” para receber os agentes do Estado. O caminho da sabotagem patronal e fiscal do Estado não esmoreceu a mobilização dos trabalhadores. Eles insistiram por anos até conquistar um padrão de fiscalização mais efetivo, com aplicações de multas por excesso de acidentes, vetando ou banindo o uso de determinadas máquinas.

Em uma esteira de tensões, a CIPA tornou-se uma referência de proteção e refúgio dos trabalhadores, observada nas narrativas das três gerações, embora, segundo Antero (54 anos, sindicalista), o patronato mobilizava-se para manter os níveis degradantes de trabalho, roubando, adulterando e fraudando as atas, elevando punições, suspensões e perseguições daqueles que denunciavam as precariedades. Em um período mais recente, esse espaço segue sendo uma alternativa de proteção, como é o caso da experiência de Hélio (40 anos, CIPA), um metalúrgico empenhado em buscar soluções para os problemas do trabalho real, que inscreve-se em um processo de formação acadêmica, voltado para atender as demandas da empresa, mas também para vir a ascender na empresa.

Após uma mudança de chefia, Hélio é trocado de turno e o novo chefe não abre margem de negociação acerca do horário de trabalho, o resultado foi o trancamento da faculdade, a inviabilidade de buscar os filhos na creche e uma crise doméstica. Suas tentativas de reverter o quadro são vistas como reclamações e reclamar é a antessala da demissão. Para permanecer no emprego, a estratégia foi candidatar-se a direção da CIPA e, com isso, ter o direito a estabilidade por três anos. Na avaliação do trabalhador, esse caminho é sem volta,

pois após o mandato da CIPA ele só evitará a demissão se entrar na direção de sindicato. Em outras palavras a participação sindical é também um espaço de proteção social, para aqueles que após envolvidos com espaços de defesa dos interesses dos trabalhadores estarão marcados negativamente pelas empresas.

As pautas das diferentes gerações de trabalhadores do final do século XX não estavam afastadas das pautas do final do século XIX, na transição do trabalho escravo para o trabalho livre, no sentido de impor limites a superexploração do trabalho, de exigir do Estado mecanismos legais de regulação da relação entre capital e trabalho. Pautas longínquas de questionar as relações de classes, a apropriação privada da produção social ou a abolição das relações de produção capitalista. Tratava-se - e ainda se trata - de pautas de reivindicações voltadas a processos de melhorias, de uma humanização das relações de produção, algo que é de interesse coletivo.

Nesse cenário, as CIPAs e a luta sindical estruturaram-se como formas de resistência e enfrentamento às condições penosas e despóticas de trabalho. Sob estas formas de ação ocorria uma identificação coletiva em torno de reivindicações protetivas. Ações respaldadas por necessidades práticas de qualidade de vida no trabalho, demandando instalar ventiladores, ter o direito a reposição de energia física com soro fisiológico para o pessoal nas forjarias, instalar proteções em máquinas perigosas. Este padrão de pautas sindicais acabou por ganhar também um caráter de luta política.

O segundo direcionamento das formas de enfrentamento das precárias condições de trabalho foi o caminho adotado por Bilac (56 anos, CIPA) e Mário (53 anos, CIPA): a iniciativa de criação e invenção de mecanismos de proteção aos impactos das operações realizadas com máquinas “abertas”, porque são compradas sem os equipamentos básicos de proteção e são, portanto, mais baratas e perigosas.

Esse tipo de iniciativa, baseada na operação das atividades e observando-as, envolvidos física e mentalmente com o trabalho real, assemelha-se com o debate em Dejours (2010), onde o trabalho real é aquele decorrente dos fatores não prescritos pelos setores de concepção, e, para estas situações, as soluções são criativas e caseiras.

Na observação, depois de oito anos e na prática fui melhorando as máquinas em que eu trabalhava, até que me tiraram da produção e pude formar uma equipe de 20 pessoas só para fazer as melhorias de segurança, de ergonomia, das proteções, para eu me desgastar menos. As coisas mais organizadas, mais planejadas era para buscar melhores condições de trabalho. Isso foi para todos os setores da fábrica, fui chamado de professor pardal (Bilac, 56 anos, CIPA).

Bilac trabalhava em uma grande fábrica, com mais de seis mil trabalhadores, vista como uma das mais modernas e, portanto, irradiadora das novidades em termos de métodos de gestão e trabalho. Porém, a velocidade com que essas novidades foram sendo incorporadas variou muito de empresa para empresa e, na atualidade, ainda há diferentes situações de penúria no trabalho. Um exemplo recente vem da fábrica onde trabalha Pagú (38 anos, base), em que os trabalhadores foram obrigados a usar colas e solventes proibidos em outras partes do mundo em função do alto nível de toxidade e corrosão da pele humana, independente do uso equipamentos de proteção individual.

As narrativas das condições de trabalho entre 1970 e o final dos anos de 198021 apontam para uma ideia constante nos processos produtivos, no sentido de que as esteiras aceleraram a produtividade do trabalho, mas sem a incorporação de grandes inovações tecnológicas. Para Adelmo (66 anos, sindicalista), o seu curso de ajustador mecânico permaneceu atualizado até o início dos anos de 1990, e quanto mais experiência os trabalhadores acumulavam, melhores e mais capacitados e habilitados ficavam.

Os enfrentamentos às precárias e penosas condições de trabalho físico e mental produziram estratégias de enfrentamentos condizentes com a elaboração de Braga (2013) sobre a inquietação operária produzida no interior do fordismo periférico. Ou seja, esse padrão de inserção no mundo urbano industrial e em um processo transparente de exploração econômica estimulou os operários a um comportamento crítico a seu modo, mesmo sob ameaças de demissão ou sob formas de repressão desmedidas.

A geração de metalúrgicos mais velha, ao vivenciar as adversidades das condições de trabalho, forjou seus mecanismos de resistência e de enfrentamentos, em grande medida por ter encontrado condições mais amplas de relacionamentos coletivos. Foi possível desenvolver esse comportamento crítico por terem encontrado uma base objetiva de socialização mais ampla, capaz de desenvolver e estabelecer relações sociais produtoras de valores e posturas favoráveis à defesa de seus interesses, como relatam Adelmo e Martin.

Até para quebrar o gelo com os outros trabalhadores (…) em uma fábrica gigante tinha o dito futebol, então cada setor tinha um grupo, tinha a associação dos funcionários, que seria digamos a federação gaúcha de futebol e os times de cada cidade. Cada setor era um grupo e fazia o campeonato interno, só dessa fábrica tinha 18 grupos e eu era presidente de um. Teve um tempo em que o grupo em que eu era presidente teve 4 mil sócios, que pagavam mensalidade, descontado em folha, nosso time era um dos melhores, depois dos horários de trabalho tinha jantar,

21Os metalúrgicos mais velhos referem-se à mudança na qualidade de vida com a conquista na Constituição

Federal de 1988, a redução da jornada de 48 para 44 horas semanais, embora Mocelin (2011) argumente o quanto esse é um tema com divergências entre análise econômica, política e teórica.

galeto, festa de chopp, sempre tinha atividade social, havia muita convivência fora da fábrica (Adelmo, 66 anos, sindicalista).

Era uma outra forma de se tratar as pessoas, com todos os problemas que tinha os trabalhadores eram mais unidos. No teu horário do almoço na época era de conversar, brincar, contar piada. A gente comia correndo para ir jogar bola, detonava os EPI, mas ali a gente se unia (Martin, 56 anos, CIPA).

As relações sociais transbordavam dos espaços produtivos para outros ambientes de socialização, desenvolvendo outras redes de interação, como o futebol. Mas também no interior das fábricas, nos intervalos, aproveitava-se para inteirar-se das diferentes notícias internas de colegas, de demissões injustas e ainda articular e combinar ações em torno de uma agenda social. Segundo Bilac, um momento alto de unidade da categoria era (e ainda é) o acesso ao documento do acordo coletivo, negociado pelo sindicato.

Com esses colegas do sindicato a gente ia entendendo que tinha CLT, direitos, isso a gente fazia nos intervalos de janta, de almoço, tudo era novidade, ninguém sabia muita coisa, naquele momento muitos trabalhadores vinham do interior, a empresa priorizava esses, eles não tinham vícios, mas também não sabia nada de direitos trabalhistas. Nos intervalos a gente não falava de outro assunto que não isso, aprender e saber dos direitos, a gente aprofundava, o acordo coletivo rodava dentro da fábrica e era muito respeitado, isso é até hoje (Bilac, 56 anos, CIPA).

As relações humanas na fábrica fordista periférica, apesar de suas condições de trabalho serem penosas, mas também por esse elemento, tinham outra dinâmica e relação com o tempo e o espaço. Convivia-se no trabalho por longos períodos com os mesmos colegas, alguns por mais de vinte anos. A qualidade da convivência nos ambientes produtivos contava com a porosidade de tempos entre as operações da atividade de trabalho, permitindo durante a própria jornada alguns níveis de diálogo, compondo um leque de fatores favoráveis a um padrão intenso de socialização.

Todos esses fatores objetivos, lastreados em tempos e espaços perenes de convivência, eram favoráveis ao desenvolvimento de laços e vínculos sociais, e aliados a um movimento conjuntural de efervescência e participação política em assembleias, greves e paralisações, com resultados positivos em termos de conquistas por meio de negociações. As longas fases de convivência em comum, a partilha das realidades e das histórias de vida levavam ao interior da vida laborativa um maior incentivo aos padrões de um comportamento moral baseado na sinceridade, na valorização de uma postura correta, para não causar uma sobrecarga aos colegas. Evidentemente, esse padrão não foi uma prática unânime ou um padrão homogêneo, mas havia espaços para o seu desenvolvimento e a sua valorização.