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TRABALHADORES FILHOS DO ÊXODO E DA FAVELIZAÇÃO

5. OS CAMINHOS DA IDENTIDADE DOS TRABALHADORES APÓS AS TRANSFORMAÇÕES PRODUTIVAS E POLÍTICAS

5.4 Traços de um perfil identitário atual

Este capítulo volta-se ao exame de como as transformações na esfera da produção industrial afetou e afeta a formação da identidade dos sujeitos envolvidos. Nesse percurso não uniforme se combinam formas clássicas, fordistas de organização do trabalho com formas modernas, compondo, no interior do processo produtivo, uma cooperação coletiva e complexa que altera as formas de socialização dos trabalhadores.

De uma socialização afetada pelo processo de aceleração produtiva, pelo aprofundamento das divisões e hierarquias internas aos próprios trabalhadores depreende-se um perfil ideal de trabalhador da atualidade, enquadrado como um competidor e colaborador multifuncional. O seu reverso é o perfil dos perdedores, presos ao passado, incapazes de investir em sua maximização multiprofissional e por essa sua “fraqueza” flertam com o sindicato.

O perfil do competidor multicapaz em competências segue uma lógica detentora de uma “régua” de valores, qualificada por Rosa (2016) como medida essencialmente de quantificações, válidas em todas as áreas. Nas ciências quantifica-se o número de artigos e publicações, no campo eleitoral o número de votos, no religioso o número de fiéis, nos indivíduos o seu quantum financeiro. Em contrapartida, a “régua” de valores e ideias anteriores de identificação, segundo Dubar (2009), com seus papéis estabelecidos estão com problemas.

As identidades “tayloriana”, “de ofício”, “de classe”, “de empresa” são desvalorizadas, desestabilizadas em crise de não-reconhecimento. Todos os “nós” anteriores, marcados pelo “comunitário” e que tinham permitido identificações coletivas, modos de socialização do “eu” pela integração definitiva a esses coletivos, são suspeitos,

desvalorizados, desestruturados. A última palavra do modelo da competência supõe um indivíduo racional e autônomo que gera suas formações e seus períodos de trabalho segundo uma lógica empresarial de “maximização de si” (DUBAR, 2009, p. 153).

Trabalhadores com múltiplas competências maximizam-se na corrida para manter-se no emprego, uma corrida produtora de maior individualismo e permeada de uma permanente insegurança, onde nada está garantido. O resultado dessa maratona de obstáculos é a perversidade do adoecimento, o que em Alves (2013) significa a instância acabada da degradação do núcleo efetivo da condição humana, é a expressão do produto social do mundo dessocializado, expressão e produto ao mesmo tempo da alienação.

Para Bilac o competidor não olha para os outros, ele crê que seu crescimento na empresa virá quanto mais ele se entregar. Para Carmem, os trabalhadores se entregam a essa lógica porque há promessas de recompensas, mas ao passar anos de trabalho percebe-se que são promessas falsas. Na prática não há reconhecimento efetivo aos competidores, mas isso só é perceptível após anos de promessas não cumpridas.

Falta olhar uns para os outros, falta solidariedade, cada um é diferente, as empresas querem que tu dê ideias, além de produzir, tem que buscar melhores formas de produzir. Se tu é mais criativo que eu vai dar mais sugestões e isso vai me excluindo do processo, porque eu não estou dando o meu máximo, por isso eu falo da falta de solidariedade. Tu acha que contigo não vai acontecer, no setor, os trabalhadores vão se dividindo, cada um puxa para um lado, lá a gente está competindo, cada um quer garantir o seu espaço (Bilac, 56 anos, CIPA).

Essa temática é muito simbólica, ela traz uma doação dos trabalhadores a empresa, beneficia os valores da empresa que aumenta seu valor social, mas o retorno aos trabalhadores é nenhum, é uma falsa ilusão, que acaba causando muita doença. As metas são exaustivas, fora do normal, muitos se submetem a essas metas com a falsa ilusão que futuramente serão promovidos, terão novos cargos, nova promoção, tem uma troca, uma falsa troca, esse mês não está bom, mas o mês que vem haverá recompensas, algo como aumentar o vale-refeição, o almoço, passa ano e vem ano, a situação é mesma, só palavras, benefício real, nenhum. A empresa tem a visão de que só ela é o centro do mundo, mais nada (Carmem, 45 anos, CIPA).

A tensão no perfil do competidor é parte do deslocamento da promessa de integração a sociedade salarial de direitos, regulada pelo Estado, para uma promessa de inclusão a sociedade do consumo através da persistência individual, aceitando as regras competidoras do trabalho ditadas pela empresa. No entanto, o competidor precisa ser estimulado constantemente e as empresas renovam as promessas de prosperidades em reuniões diárias

ou semanais, voltadas para destacar os testemunhos de sucesso. São palestras motivacionais voltadas a emular a missão da empresa e engajar os trabalhadores em seus planos de negócios, como explicita a experiência de Silva.

A G. nestes cinco anos que estou lá ela está em constante mudança, evolução tipo projeto 2020/2022, onde queremos estar em 2022? Tem aí uma questão de sabermos onde queremos estar, o momento é ruim, precisamos fazer sacrifícios, tem um processo ardiloso de retirada de benefícios. Trabalhamos com a segurança dos colaboradores acima de qualquer coisa, cada dia surge uma nova política de atuação, além da política normal, das regras normais. Sempre com a ideia de evolução, de crescer, travestido de trabalhar mais, estamos retirando a insalubridade, mas é porque o e-social nos obriga a novas normas, mas isso é para a nossa evolução, quem estiver aqui vai crescer com a gente, somos uma das cem melhores empresas para trabalhar (Silva, 28 anos, CIPA).

O perfil do competidor, na prática, requer um discurso de construção de um horizonte de crescimento profissional, econômico e simbólico. Os relatos informam o quanto o crescimento dos indivíduos trabalhadores é associado pelas empresas ao crescimento econômico destas. Nesta associação de interesses, as empresas mobilizam um campo de pertencimentos às suas ideias, aos seus projetos, como se estes fossem de igual interesse aos trabalhadores, contribuindo para o esvaziamento das esferas coletivas da categoria.

Para Dubar (2009), o sujeito competidor engajado nos projetos da empresa é um sujeito desmantelado, porque não tem mais referências no campo da cidadania, a qual também perdeu valor e legitimidade social. Dessa equação social e política resulta a perda coletiva da legitimação dos porta-vozes dos problemas do trabalho e da sociedade, problemas que passam a ser enfrentados, sobretudo, pela esfera individual. O autor observa que esta perda de identidades simbólicas e coletivas aprofundam a alienação e incorporaram uma dimensão de bloqueio.

O bloqueio ocorre quando o sujeito não encontra as causas das descontinuidades, da fragmentação, das divisões exacerbadas entre seus pares. Junto ao não encontrar as causas instala-se um obstáculo às esperanças, podendo levá-lo ao desamparo, ou seja, o último grau da alienação, fruto da não compreensão do real funcionamento da ordem burguesa. Para enfrentar essa crise é preciso evitar de se afundar no isolamento da crise de sociabilidade.

Dubar (2009) propõe a reflexividade pessoal como ponto de partida para enfrentar essa crise, em que os sujeitos precisam reformular os princípios da representação coletiva e retomar em que bases querem refletir sobre o futuro. Esse passo é também um passo político no sentido mais profundo, pois não há um processo de identificações comuns, de formulação de convicções e engajamentos no campo privado, estes são eminentemente públicos e por

isso mesmo profundamente políticos.

Em outros termos, a identidade nunca está dada e definida, ela está se dando em processos inseridos em contextos históricos mais ou menos largos. Porém, ela precisa manter pelo menos por algum tempo contínuo uma coerência, em torno de uma forma identitária, envolvendo o eu, o outro, os outros nesse caso, que se destaca nos ambientes de vida profissional. Essa relação recursiva entre o individual e o coletivo quando colocada em dúvida, para Dubar (2009), é a crise de identidade e por isso mesmo o recurso reflexivo é fundamental. A reflexividade tem a potência de elaborar uma ponte e de dar suporte entre a história e o projeto pessoal em suas coerências íntimas com história social e os pertencimentos a um projeto coletivo.

6. DINÂMICA DO RECONHECIMENTO E DA IDENTIDADE