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Distorções da política e das formas da linguagem

TRABALHADORES FILHOS DO ÊXODO E DA FAVELIZAÇÃO

6. DINÂMICA DO RECONHECIMENTO E DA IDENTIDADE PELO TRABALHO

6.2 As mutações no reconhecimento de uma identidade de categoria

6.2.2 Distorções da política e das formas da linguagem

As distorções na dinâmica do reconhecimento e da identidade dos trabalhadores envolvem também a substituição da estratégia política de projeto de sociedade, com seus

conteúdos, programas, valores, via espaços coletivos, por uma estratégia comunicacional individual. A política, tanto para Dubar (2009) como para Dejours (2005), foi transformada em um espetáculo, no qual o sentido das representações foi desestruturado pelo fracionamento e imposição de um tempo linear dos acontecimentos com cenas episódicas. Sem condições para processar, questionar e elaborar as dúvidas e suas representações simbólicas, fragilizam-se os aspectos da compreensão daquilo que faz sentido.

Essa transformação da política exigiu, entre outros fatores uma alteração nos padrões de linguagem, por esta ser o meio de atribuir significações, valores, reconhecimentos e identificações através das palavras que dão vida à linguagem humana e são produto e produção social. Para Lane (1994) a linguagem é produto histórico de uma coletividade, do desenvolvimento de sua consciência social e está em constante movimento, em transformação e em relações contraditórias.

Para a autora, é um desafio analítico o exercício de apontar e compreender como operam os mecanismos ideológicos de significação das palavras, produzidas por uma classe dominante. A classe detentora desse poder manipula os modos de pensar, elaborar e explicar a realidade, por meio de suas palavras e do controle de diferentes mecanismos de locução, comunicação e irradiação da sua forma de produzir os sentidos e os conteúdos de sua visão de mundo. Esses mecanismos, também afetam as formas identitárias dos trabalhadores tensionadas no cotidiano das relações de trabalho, onde a precarização relacional, a aceleração da produção, a fragilidade das instituições de mediação aparecem como coisas naturais, ou como imperativos do tipo as coisas são assim, porque é assim.

Nas relações humanas tudo é social e as formas de se identificar a si e ao outro, de localizar a posição que se ocupa nas relações de produção é conteúdo de disputa política e simbólica. Para formar uma identidade é preciso encontro, conversa, e isso não é tão simples no chão de fábrica, como recorda Marta, e uma prática relacional em que o outro é significativo e respeitado como um igual, como fala Celestino.

(...) antigamente a gente conversava mais, mas confiar, em firma não dá muito, porque uma fala para a outra, é difícil as vezes tu acha uma. Mas eu não conversava muito, me dava com todo mundo, eu fazia meu serviço e ia embora (…). A confiança era difícil, tinha umas panelinhas de leva e traz, umas poucas saíram de lá e subiram para o RH, sei lá, as panelinhas eram tudo próximo das chefias (Marta, 44 anos, base).

A “moral” da representação está na lógica do ombro a ombro, quem trabalha, quem produz igual a mim, não se escora, nem se esconde (Celestino, 51 anos, CIPA). Sendo a linguagem uma ferramenta de poder, Dubar (2009) discute em meio ao tema

das mutações da representação política a transformação de seu papel e de suas formas. Para o autor, ocorreu um deslocamento de uma lógica argumentativa, reflexiva, personificada em mensagens, em valores e sob o esforço do convencimento através dos embates de ideias de visões de mundo para uma lógica retórica. Nesse trânsito linguístico a informação eficaz passou a ser caracterizada como a mais direta, fácil, curta, “neutra”, de participação superficial. A lógica argumentativa e reflexiva exige interação, enquanto a lógica retórica requer distanciamento do outro, como expressam Gilberto e Domingo pelo viés empírico.

Nós tínhamos na S., na primeira empresa que eu trabalhei, a gente tinha grupos de ir em festas, se visitar, ir no CTG, um dos líderes que ia com a gente era um encarregado, a gente interagia, não tinha uma distância tão grande e hoje tem uma distância, não sei se o próprio sistema mudou isso. Tu até fica amigo, mas é aquela amizade, até onde tu me interessa, quando não me interessar mais tu vai (Gilberto, 55 anos, CIPA).

Nos primeiros empregos os mais velhos são meus amigos até hoje, tem um que eu vejo toda a terça, eu jogo bola com o filho dele, a gente conversa, troca whats, se chama de apelidos, isso eu não posso fazer com meus colegas atuais (Domingo, 47 anos, CIPA).

Nesse novo tipo de linguagem, o conteúdo deixa de ser importante para dar lugar à forma, ao como falar, à performance, à capacidade de uma oratória sedutora, próprias para uma cena, um espetáculo voltado para espectadores passivos e indiferentes aos fundamentos daquela cena. Esse modelo de comunicação e linguagem viceja no chão das fábricas via as redes sociais, nas fofocas na chamada “rádio peão”, no espetáculo da premiação do “time”, “equipe de sucesso”, campeão de metas, no “colaborador destaque do mês”.

No espetáculo as relações são epidérmicas, a produção de vínculos e laços de confiança não encontram respaldo concreto, o que é agravado por um ambiente de rotatividade de pessoas e de informações distorcidas. Se as cenas são formadas para espectadores é importante deixar prosperar assuntos para as distrações polêmicas, como conta Adir, elas ocupam os poucos espaços de diálogo e com isso facilitam o trabalho do apagamento da memória das conquistas, como destaca Albino.

Há uma moda no whatsapp das delações, tem um grupo, um setor que se cria uma sabotagem deu um X9, então tem esses problemas das infidelidades dentro dos próprios grupos de fidelidade (Adir, 42 anos, sindicalista)

Esses dez minutos de café a empresa retirou, reduzindo a jornada em 20 minutos, o pessoal aceitou, algumas fábricas ainda têm. O pessoal trocou, sair as 17:30 para as 17:10, mas o pessoal com essa memória, foi saindo e sendo demitido e agora a saída está para as 17:50, uma conquista que foi esquecida (Albino, 54 anos, sindicalista).

Dubar (2009) discute a linguagem em termos mais amplos, relacionada ao campo da política e Dejours (2005) discute nos termos internos à fábrica, mas ambos coincidem para a dimensão dos assuntos serem tratadas como espetáculo. Quem assiste a um espetáculo o consome, de modo passivo, ou consentindo ou sendo indiferente. É possível que estas três afirmações estejam contidas na fala de Bilac.

Quando a gente fala de que tem um setor mutilando os trabalhadores, os outros, dos outros setores, não se sentem afetados, não está acontecendo com ele, não interessa o assunto para ele, ele não se dá conta que amanhã pode ser com ele (Bilac, 56 anos, CIPA).

Lane (1994) levanta a questão sobre como operam os mecanismos ideológicos de significação das palavras elaboradas por uma classe dominante. Essa pergunta interessa para a reflexão em torno do papel da linguagem na construção da forma identitária do competidor trabalhada pelo projeto empresarial. Em Dubar (2009), a construção desta identidade dos assalariados competidores em constante evolução é uma promessa e como tal precisa tornar- se uma espetacularização. Esse mecanismo requer excessos, entre eles um excesso de imagens, que substituem os ritos e os símbolos, como nação, classe e ideal. Imagens cujo conteúdo não se conhece exatamente. No caso das fábricas as imagens, bem diagramadas são da empresa, com suas setas ascendentes e seus colaboradores e líderes felizes.

O excesso de personalização, o “líder de sucesso”, o “dono da empresa que começou de baixo”, esvazia as mensagens que requerem a coletividade, a partilha das origens, território e crenças em comum, sem identidades coletivas, restam indivíduos performáticos e sedutores. Nesse quadro, não cabe a linguagem dos fatos, os argumentos, os debates; cabem informações curtas, fáceis, diretas. Em Dubar (2009, p. 179,180) “isto implica o luto dos mitos mobilizadores, das significações simbólicas, substituídas por identificações insignificantes”.

Outro excesso é justamente o de identidades, devido à profusão de imagens personalizadas e superficiais que ofuscam as dimensões de profundidade do encontro com o outro, com sua história, seu pensamento, suas posições. Em um encontro ofuscado pelo excesso de imagens se fragiliza o conflito, substituído ou por consenso ou por exclusão. Mas a exclusão, como relação com o outro, aparece não como parte do conflito social ou como necessidade de transformar a sociedade sob a ordem burguesa. A exclusão aparece para registrar que o assalariado competidor em evolução cansou, “perdeu o pé”, usando a imagem de Rosa (2016). Agora se for integrado em algo será no trabalho informal, em políticas sociais ou através de generosidades pessoais.

Essa distorção nas formas e nos conteúdos da linguagem permeia o conjunto das narrativas, explícita no temor da exclusão social pelo desemprego. O outro, seja jovem, velho, mulher, negro, qualificado, ou não qualificado, é narrado na chave da perturbação, do estranhamento; o outro par de interação parece um constante problema. Todos estes excessos agravam e bloqueiam o campo da reflexividade, da argumentação sobre posições, opiniões.

Para Dubar (2009), nessa mutação operou-se uma separação entre a identidade pessoal, a identidade política e a identidade do trabalho. O sujeito já não se define como membro de uma comunidade, coletividade, partido, sindicato e questiona a legitimidade de seus representantes. Um sujeito que não participa de coletivos, questiona e combate as ideias políticas, assim como não tem uma ideia de futuro. Um sujeito cuja vida profissional se estabelece sob incertezas e medos, não encarando a realidade, facilmente irá buscar e encontrar abrigo sob a “integração protetora da empresa”.

Mais uma vez encontra-se com a dimensão da (re)construção de espaços de socialização, como uma brecha em meio à forma identitária dos trabalhadores competidores. Uma brecha com a potencialidade de assegurar a participação para uma outra forma de cooperação complexa, lastreada, capaz de dar suporte à composição de uma outra forma identitária. A potência da participação é fundamental para desenvolver posições políticas, contrapontos alternativos, argumentos, enfim, para a construção de decisões e ações comuns.