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Os desafios atuais do reconhecer-se trabalhador

TRABALHADORES FILHOS DO ÊXODO E DA FAVELIZAÇÃO

6. DINÂMICA DO RECONHECIMENTO E DA IDENTIDADE PELO TRABALHO

6.1. Os desafios atuais do reconhecer-se trabalhador

Discutir a formação e os conflitos em torno da constituição da identidade nesta categoria profissional, desde suas narrativas biográficas, é deparar-se com algumas importantes contradições, envolvendo o campo do reconhecimento de sua própria forma

identitária individual, que transborda para a dimensão coletiva. Os desafios da dimensão do reconhecerem-se trabalhadores que serão analisados nessa seção são: a precariedade relacional, a perda de mecanismos de mediações institucionais e elementos das atuais fragilidades da legitimidade do ator coletivo.

Em Guareschi (2008) relação tem o sentido de uma disposição inerente de uma coisa em direção a outra, ou seja, relação é algo que não pode “ser”, sem outro, o que implica em uma ideia de incompletude, de processualidade, de historicidade. Sendo relação, algo com o outro, tratar da precariedade relacional é tratar da precário estado com o outro, nesse caso em meio as relações de trabalho. Desde a concepção de relação e desde a observação do conjunto das narrativas observa-se os indivíduos mergulhados intensamente na maximização da produção e, portanto, da produção de excedentes, de lucros.

Uma forma de organizar a produção onde são socializados para conviver com a instabilidade da demissão, com a aceleração dos ritmos de produção e de sua própria descartabilidade enquanto força de trabalho. Um contexto onde os próprios sujeitos acabam por atuar conscientes ou não na desestruturação de espaços e tempos necessários para desenvolver o estar em relação com o outro. Sob uma precariedade relacional, os processos de interação sociais desde o trabalho, basilares para o reconhecimento e identificação comuns, também se tornam precários e superficiais, perdendo, entre outros fatores, sua capacidade de gerar pertencimento nos indivíduos.

Quanto ao elemento das mediações, verifica-se a presença e a força do papel do Estado no desempenho da regulação das relações de trabalho, ainda visível aos sujeitos metalúrgicos de todas as gerações. As instituições do Estado, ainda que fragilizadas nos últimos anos, continuam sendo reconhecidas como mediadoras das pautas, protetoras dos direitos adquiridos e de programas importantes, como o de proteção à saúde do trabalhador. Por outro lado, esse lugar de mediação ao estar cada vez mais permeado por disputas de concepção e papel afeta os espaços de negociação das necessidades coletivas oriundas do trabalho.

A precarização das relações sociais de trabalho e de suas instituições reguladoras leva ao esvaziamento do papel do ator coletivo. Um dos conflitos ao redor da constituição da identidade envolve as percepções sobre a legitimidade e o reconhecimento do sentido do ator coletivo, nesse caso o sindicato, como mediador dos conflitos entre capital e trabalho. Porém

o ator coletivo não é apenas um mediador, ele é também uma expressão de uma determinada forma identitária, cujo pertencimento se faz reconhecer individualmente.

Estas dimensões do reconhecer-se trabalhador, desde as biografias localizadas no interior de coletivos profissionais, informam da necessidade da análise do reconhecimento de uma consciência de si e dos outros. Dubar (2009) alerta para a necessidade do reconhecimento de si ser compreendido através da narrativa da vida, da história de cada um, pois ao fazê-lo o indivíduo liga as diferentes instâncias da vida com as mudanças em suas identificações percebidas por si e pelos outros.

A construção e o reconhecimento da identidade de si envolvem um conjunto de fatores, os quais vão desde as crises por falta de recursos financeiros à subjetividade derivada de um tipo de laço social com origem nos padrões de relações comunitárias. Os vínculos comunitários são aqueles baseados em tradições transmitidas, ou ainda aquele tipo de identificação emocional com um grande e carismático líder. Já os vínculos societários referem-se ao campo da racionalidade econômica, de luta por acesso a melhores oportunidades de vida e também a compromissos e engajamentos assumidos voluntariamente para defender seus diferentes interesses. Segundo Dubar, esse tipo de vínculo está em crise há alguns anos e é expresso através da crise das identidades.

Pois é disso que se trata, sociologicamente, na crise das identidades, seja qual for a dimensão envolvida. Essa passagem, sempre incerta, não raro dramática, mas também potencialmente emancipadora, de dominação de vínculos comunitários que coagem, determinam, encerram as subjetividades individuais “tomadas” em identificações coletivas e relações de dominação temíveis (dos homens sobre as mulheres, dos velhos sobre os jovens, dos dirigentes todo-poderosos sobre os executantes subordinados etc.) e que constituem com frequência “identidades” ilusórias, ambíguas ou mesmo mortíferas com as relações societárias que individualizam, separam, selecionam, às vezes exploram, muitas vezes angustiam, mas tornam possível uma subjetividade autônoma que alguns chamam de liberdade (DUBAR, 2009, p. 253).

As bases anteriores do reconhecimento da configuração identitária, analisadas através das trajetórias de vida dos metalúrgicos da primeira e segunda geração/grupo etário demonstram um tipo de vínculo que é também fruto da história social do trabalho no Brasil, por isso mesmo parcial, por cindir os trabalhadores consigo mesmos e com os outros. A configuração desenvolvida entre os anos de 1970 e 1980 no contexto brasileiro dificilmente pode ser nomeada de “tradicional”, afinal um percurso proletário de poucas décadas não tinha como produzir o estatuto de uma tradição.

Sugere-se uma configuração original própria desde a conturbada transição do trabalho escravo para o trabalho livre tal como se deu no Brasil. Original em dois sentidos, tanto pela

consideração da origem agrária dos metalúrgicos mais velhos, como pela originalidade da experiência brasileira de forjar, ao mesmo tempo, industrialismo, urbanização, exército industrial de reserva, tudo em uma “única pancada”, como descreveu Oliveira (1982).

Quanto à configuração societária, a experiência nacional é marcada pela promessa de inclusão e mobilidade social, via sociedade salarial, denominada por Cardoso (2010) de “utopia brasileira”. Uma utopia diante da uma ordem social profundamente desigual, capaz de transformar qualquer mínimo ganho de renda em renovação e atualização daquela promessa. Para grande parte dos trabalhadores brasileiros, apesar da dinâmica neoliberal que acentua a individualização, os descartes e as precarizações, aspirar a um lugar dentro dessa ordem societária significa aspirar a um bom posto de trabalho, devido a suas proteções sociais, mesmo que atualmente estejam em processo de declínio.

Dito isso, é preciso pensar essa passagem desta configuração original para uma configuração neoliberal, em que a disputa pelo conteúdo da identidade dos trabalhadores é parte da dinâmica da legitimação da ordem desigual pelas classes dominantes. É uma legitimação fragilizada, segundo Dubar (2009) por além de necessitar repor constantemente novas formas de controle, também ser questionada nas suas atuais formas de dominação, desde os brancos sobre os negros, dos homens sobre as mulheres, dos ricos sobre os pobres, da metrópole sobre a colônia, dos homens sobre a natureza, do capital sobre o trabalho.

Nessa perspectiva, a apropriação da dimensão do reconhecimento de sua própria identidade no interior das relações de produção pode ser a apropriação de modo consciente das proporções desta crise. Em outros termos, a compreensão do trabalhador de seu lugar e seu papel no sistema através da reflexividade em torno de seus vínculos sociais pode ser, portanto, uma brecha para pensar a (re)construção de uma identidade, em outras bases.

As narrativas de vida no trabalho dos metalúrgicos explicitam uma busca por compreender a natureza desta crise, sobretudo através da percepção de que a própria vida é desrespeitada pela maximização da produtividade, expressa através dos corpos adoecidos e desgastados. Porém a saída a este quadro crítico não parece passar pela restauração daquela identidade profissional original dos anos de 1970 e 1980. Também não se trata de evocar retoricamente o reconhecimento de uma identidade de proletariado como redentor e salvacionista da classe.

Enfrentar o quadro crítico da configuração identitária forjada desde a ordem neoliberal poderá passar pelo desafiador encontro dos aspectos, interesses e projetos

individuais com interesses e projetos coletivos, sem que um tenha que suprimir o outro. Em Dubar (2009) isto significa indivíduos reflexivos, capazes de uma apropriação subjetiva da cultura e da economia política. Isto requer a criação de espaços de socialização onde os sujeitos, desde seu lugar ocupado no trabalho, inicialmente se reconhecem seres sociais, cuja identidade é narrada em decorrência de suas experiências no interior de socializações coletivas historicizadas e referenciadas pelo conflito social.

Quanto maior for o nível de reflexividade do reconhecimento de si mesmos, maior poderá ser a capacidade de alteridade, de encontro com o outro par de interação, desvendando-o para além de mais um concorrente, como alguém que disputa seu posto de trabalho. Maior poderá ser a compreensão sobre o atual estágio da desconstrução e deslegitimação do ator coletivo, o que leva a uma maior fragilidade do conjunto da categoria. Esta atitude de reconstrução identitária poderá abrir um campo de atuação de um novo formato de ator coletivo, capaz de trabalhar com a pluralidade da composição do perfil dos trabalhadores da categoria.

Trata-se de um método antagônico ao da forma identitária neoliberal, na qual, segundo Dejours (2005), a base primeira é o uso da dinâmica das ameaças e das distorções comunicacionais, ambas produtores de medo, que nada mais é do que uma forma de violência subjetiva e objetiva. Para o autor, o trabalho é o lugar por excelência do uso metódico do medo, capaz de enfraquecer o coletivo, a participação, a cooperação entre os trabalhadores. Nesse processo, desloca-se o centro da produção de reconhecimento do trabalho vivo para os valores da empresa.

Reconhecer a construção de um projeto pessoal, situado no social e com um horizonte de futuro, capaz de enfrentar a dinâmica do medo, requer uma participação no sentido desenvolvido por Paulo Freire (2002). Ninguém liberta ninguém, mas também ninguém se liberta sozinho, os homens se libertam em relação, no ato de reconhecerem-se como homens, através da reflexão e da ação, que se torna práxis. Uma participação na qual o ponto de partida é o autorreconhecimento da condição de homens destruídos, “descartados”, “coisificados”. Um reconhecimento de que a ordem desigual se mantém sob uma frágil hegemonia, se baseia mais pela força das ameaças do que pelo convencimento.

É preciso que o trabalhador participe da própria reconstituição da sua identidade, como ser social desde a constituição de outras formas de socialização, no trabalho e para além do trabalho, como condição a priori para ultrapassar o estado de “coisa”, de “peça de

descarte”, de “competidor em tempo integral”. Participar do movimento de reconhecimentos das diferentes dimensões da forma identitária neoliberal é fundamental para situar o projeto de uma identidade pessoal no projeto social.