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A Batuta do Choro não Pertence aos Oito Batutas

O folclore sou eu

Heitor Villa-Lobos

A década de 1920 se iniciaria com Villa-Lobos possuindo uma relativa mestria na composição, um programa estabelecido de trabalho e a conquista de certa crítica favorável.

Inauguraria timidamente neste primeiro ano da década aquela que se tornaria talvez a sua primeira série mais bem sucedida nacional e internacionalmente. Trata-se da série Choros, acerto de contas erudito com o universo semi-erudito ou não-erudito em que teria se criado na prática musical. O seu primeiro número homenagearia aquele amigo íntimo de outrora, o mais famoso dos “mulatos que estudaram” e que possuíam aspiração à erudição: a Ernesto Nazareth era dedicado o início da série. O número foi composto para a execução de um instrumento musical predileto de sua adolescência de “chorão” e até então relegado ao segundo plano em sua obra erudita, o violão, próprio para “choros e serestas” e um tanto quanto ousado para salões e concertos. Fazia parte da maneira de compor de Villa-Lobos o uso de instrumentação inusual no repertório da esfera erudita, como instrumentos indígenas e composições inusitadas que redundavam em sons metálicos, dissonantes e agressivos. Este primeiro movimento da série, no entanto, não despertou o interesse da crítica à primeira vista em meio a uma figuração em que o choro “rasteiro”, o choro gênero musical, ainda não existiria por completo da forma como hoje é concebida.

O convite para a participação de Villa-Lobos na Semana de Arte Moderna de São Paulo, em 1922, vinha coroar frente ao grupo vanguardista a obra daquele “gênio incompreendido” que encontraria paulatinamente quem o compreendesse no cenário nacional e internacional. Villa- Lobos, após a polêmica discussão em torno da “Semana...”110 partiria a Paris, em junho de 1923, financiado em parte por uma bolsa de estudos obtida junto à Câmara dos Deputados, que contou com a intervenção do deputado e beletrista Gilberto Amado em sua requisição. Arnaldo Guinle, Antonio Prado, Olívia Guedes Penteado, Paulo Prado, Laurinda Santos Lobo entre outros afamados mecenas dos modernistas o auxiliariam complementando a sua ida e manutenção, enquanto Carlos Guinle lhe cederia dinheiro visando à publicação de sua obra em terras gaulesas. Villa organizaria, em 1924, seu primeiro concerto em Paris, dizendo impetuosamente que “(…) não vim aprender, vim mostrar o que fiz (...)” (HORTA, 1987: 44). Apesar de se deparar com um novo mundo de possibilidades na composição, de ter conseguido editar suas obras por uma casa editorial dona de reconhecimento internacional, de travar contato com personagens do primeiro time da música, caso de Andre Segovia, e de ter se encantado com A Sagração da Primavera, de Stravinsky, nesta sua primeira empreitada em solo francês Villa-Lobos não lograria obter a aclamação por parte da crítica parisiense. Pelo contrário. Foi neste instante pouco acariciado em seu ego e tratou de voltar logo em seguida ao Brasil, claro que também por razões materiais.

Após algumas apresentações que contou com pleno êxito em São Paulo e Buenos Aires entre os anos de 1925 e 1926, Villa-Lobos decidiria retornar a Paris em 1927, um acerto de contas em melhores condições financeiras e emocionais, tendo em vista que Carlos Guinle lhe emprestaria seu apartamento pessoal para a permanência da temporada. Já sabedor desta feita do que o público 110 Uma vasta bibliografia trata da recepção e do impacto causado pela Semana de Arte Moderna em São Paulo. Sobre a

parisiense poderia aprovar ou não, Villa resolve pôr à prova a série que idealizara alguns anos atrás e que já contaria naquele ano com oito movimentos. Além do mais, seu propósito explícito era o de se promover, forma pela qual creditava o sucesso dos compositores russos em Paris (Cf. GUÉRIOS, 2003: 147). Sua obra, entrementes, a despeito do parco interesse suscitado desde sua primeira ida, teria sido neste intervalo de três anos executada algumas vezes em solo francês, sendo estrategicamente posta em circulação no país pelo seu editor, Max Eschig. E, como se não bastasse, a primeira apresentação receberia a presença de ilustres colegas e amigos que Villa-Lobos colecionara em seus anos pretéritos de ascensão artística. A presença do pianista polonês Arthur Rubinstein, da prestigiada Orquestra Colonne, da soprano Vera Janocopoulos, da pianista norte- americana Aline van Barentzen, do pianista espanhol Tomás Terán e dos demais artistas franceses no concerto da Salle Gaveau entre outubro e dezembro de 1927 alavancaria a obra do brasileiro a ponto de a crítica francesa se render irremediavelmente ao seu talento. A apresentação foi aplaudida de forma completamente distinta nesta nova estada. A partir daí não se tratava mais de um brasileiro desconhecido, mas de um respeitável e talentoso compositor, ladeado e executado pelos mais insignes concertistas da música e que, antes de tudo, teria auferido glórias máximas em seu país de origem e na Argentina antes de aportar novamente na capital do mundo.

Os oito movimentos citados acima dizem respeito à mencionada série Choros, apresentada no Brasil com estrondoso sucesso antes de sua segunda ida a Paris. Compostos entre os anos de 1920 e 1926, eles sintetizavam, segundo palavras de seu autor, “(...) as diferentes modalidades da música indígena e popular (...)” (Apud: HORTA, 1987: 49), além de contarem com instrumentação “típica” brasileira111. O sucesso alcançado por estas obras reverberaria até os nossos dias, fornecendo-lhes um quê misterioso, uma força incomunicável, uma perenidade intraduzível, conforme pode ser lido em excertos vindos de seus hagiógrafos:

[Sobre a série choros] Ela é tão forte, tão original, tão grandiosa, que ainda não foi assimilada pela consciência brasileira como o foram as Bachianas (série importante, mas não tanto quanto os Choros em proporção e significado artístico). Obras como os Choros 8, 9, 11, 12, por sua monumentalidade, e por serem de difícil execução, sequer são ouvidas no Brasil (o que não deixa de ser espantoso) (HORTA, 1987: 50).

Voltando à década de 1920, a crítica em Paris não deixaria por menos os elogios feitos à série. De parcialmente rechaçado, ou pelo menos ignorado, Villa-Lobos transformava-se em verbete em importante livro de harmonia francês e ainda era eleito membro do Comité d’Honneur du Conservatoire da França. O que poderia ter lhe faltado em termos de prestígio, após os episódios e sucessos da década de 1920 se transmutaria em regalos superlativos. A obra Choros, responsável por tamanha modificação na posição do artista, ao contrário do que pode dar a entender à primeira

111

Dentre os números da série que foram compostos antes de 1927 – Villa-Lobos não segue a ordem cronológica para os classificar numericamente – o choro n. 1 conta com o violão, o n. 2 com flauta e clarinete, o n. 3 com clarinete, sax alto, fagote, trompas, trombone e coro masculino, o n. 4 com trompas e trombone, o n. 5 com piano, o n. 6 com orquestra, o n. 7 com flauta, oboé, clarinete, sax alto, fagote, violino, violoncelo e tam-tam, o n. 8 com orquestra e dois pianos e o n. 10 com orquestra e coro misto.

vista, se resume a uma intrincada e diversificada produção, pontuada e unificada apenas pelos elementos folclóricos, indígenas e populares – significando este último elemento a inspiração nas melodias das manifestações não-eruditas instrumentais vivenciadas por Villa-Lobos no Rio de Janeiro. O sentido tomado por esta obra na visão de parcela da crítica musical brasileira pode ser resumido por meio das palavras de um de seus intérpretes recentes, dando prosseguimento a um continuum que atravessa décadas:

A intenção de Villa-Lobos ao criar os Choros talvez não tenha sido, em primeira linha, a de difundir no país e no exterior aspectos da criação musical popular ou indígena. Mais importante para ele foi a busca de uma consciência nacional em matéria de música. Durante vários séculos, fazer música de concerto no Brasil significava conhecer e imitar a música européia. E também significava estar alienado em relação à produção musical do povo. Mas na série dos Choros, Villa-Lobos não está criando qualquer vinculação sistemática de sua atividade criadora com a música folclórica, indígena e popular (Apud: HORTA, 1987: 49).

O intelectual maior da Semana de Arte Moderna, Mário de Andrade, escreveria ainda sobre o Choro n. 10 que se tratava “(...) [d]o mais verdadeiro e apoteótico hino da música brasileira (...)” (Apud: HORTA, 1987: 54). A partir deste ponto, não haveria mais críticas ou críticos possíveis que viessem a diminuir o valor conferido à série Choros e ao universalismo nacional-popular ou nacionalismo-popular universal de Villa-Lobos. O ex-“chorão” atravessaria o momento de total reconhecimento obtido no domínio da composição, o que o alçava à categoria de maior compositor brasileiro de todos os tempos quando tinha justamente 40 anos de idade. Da série restariam ainda lugares de honra na história para o panteão que se anunciava do gênero musical choro com a dedicatória ofertada a Ernesto Nazareth, em seu primeiro número, e a Catulo da Paixão Cearense e Anacleto de Medeiros, no décimo número.

Importa neste momento frisar-se que, pela primeira vez, uma música erudita, legítima e aplaudida em Paris se denominava Choro. Villa-Lobos, neste ínterim, posicionava-se no espaço da música a mil léguas de distância dos seus velhos amigos chorões em termos de status simbólico. Nem mais caberia comparação com os aspirantes à erudição. O universo do agora quase nascente gênero musical choro, qual seja, o dos “velhos” amigos de Villa-Lobos, teria por sua parte sofrido diversas modificações em relação àquele que era caro e familiar ao maestro e compositor maior. O disco, o rádio, os jornalistas que se embrenhavam entre as produções musicais e o surgimento de novos musicistas transtornavam até certo ponto o ambiente outrora pacato e “descompromissado” que havia acolhido o jovem Villa-Lobos em sua juventude. As mais diversas gravações circunscritas às manifestações musicais não-eruditas teriam ocorrido sob os auspícios de Fred Figner. Os amigos mais chegados de Villa haviam penetrado o universo do disco há algum tempo. Foliões de longa data, seus companheiros de jornadas carnavalescas, como Vagalume e Morcego, teriam conquistado postos e colunas fixas nos periódicos da época para tratarem tanto de assuntos policiais, de fatos diversos como, enfim, do tema que eles mais prezavam: as manifestações musicais populares que avultavam. As oportunidades que outrora representavam uma chance de

carreira musical um tanto quanto improvável passavam a ser agora plausíveis; mais do que isso, o sustento da vida a partir da produção musical não-erudita se tornaria o modo principal de reprodução artística no Brasil.

Um fato miraculoso em sua segunda volta, contudo, iniciava-se sem que Heitor Villa- Lobos agisse deliberadamente para que ocorresse. Os diversos estilos musicais homenageados pelo maestro por sua série intitulada Choros, quer dizer, o material utilizado e tão bem conhecido por Heitor, caso das polcas, tangos, valsas, mazurcas, habaneras etc. que ainda no início da década de 1920 permaneciam com dezenas de designações, conforme os citados nos discos, no rádio e nas colunas de jornal, à maneira de um passe de mágica se reuniriam após a ascensão e o sucesso de Villa-Lobos em torno de um único termo. Trata-se, conforme já adiantado, da nomenclatura universal que englobava os estilos musicais instrumentais cariocas antes representados por meio de diversos epítetos: o choro, proveniente talvez do Choro. Que os periódicos da época ressaltassem com louvores os louros obtidos por Villa-Lobos através de sua série, difundindo assim o nome choro já um tanto quanto presente na cena musical carioca, ainda que com significados diversos; que as necessidades racionalizadoras e mercadológicas da indústria do disco fizessem com que a seleção de um único nome passasse a designar os diversos estilos musicais próximos e antes dispersos, logo, praticamente impossíveis de serem ordenados, prejudicando assim a correlação de artistas a um gênero musical determinado; que os compositores não-eruditos se sentissem mais prestigiados ao vincularem suas produções a um termo que neste instante passava a deter um reconhecimento nacional e até mesmo internacional; que o nacionalismo nascente identificasse a série Choros, de Villa-Lobos, como “a busca de uma consciência nacional em matéria de música”; penso que todas essas alternativas possuam parcelas de verdade e que, de fato, devam ter concorrido a fim de que o processo já exposto de sintetização de um gênero fosse concluído em cerca de 1928-1930, conforme mostram os dados já apresentados. A herança legada pelo choro a Villa-Lobos acabou sendo retribuída pelo personagem maior ao ocupar uma posição nunca dantes alcançada por nenhum de seus pares de boêmia, ocasionando de forma um tanto contraditória e por vias tortuosas a “criação” do próprio gênero em que o artista foi criado.