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Os programas de Almirante no Rádio brasileiro representam, para o sentimento da música popular brasileira, a semente do bom-gosto para curar os viciados em má música.

Heitor Villa-Lobos

Mesclando sambas, marchas, choros e valsas dos artistas do “passado” e da atualidade a criações musicais nordestinas que aportavam na cidade, caso do baião, e ainda a ritmos latinos que faziam sucesso naquela conjuntura, como a rumba e o tango argentino (Cf. WASSERMAN, 2002: 22), a poderosa estatal Rádio Nacional alternava, em sua programação na década de 1940, estilos então considerados “comerciais” – os ritmos latinos e estrangeiros em geral –, com aqueles considerados “autênticos”, casos dos sambas espelhados no padrão do Estácio de Sá e dos choros “herdeiros” das tradições nacionais-cariocas, como os perpetuados por Pixinguinha, Luperce Miranda, Jacob do Bandolim, Benedito Lacerda entre outros. A tensão entre os estilos musicais estrangeiros e os nacionais “autênticos” recrudescia com a incorporação de estilos “inautênticos” nacionais efetuada pela estação. Assim, o samba-canção, em um primeiro momento, se vincularia simbolicamente às manifestações estrangeiras por conta dos versos melosos, do andamento lento e por se tratar de estilo mais melódico do que rítmico, o que o aproximava dos tangos e rumbas em

vez dos gêneros nacionais “autênticos”, segundo a opinião de seus detratores. Fora isso, seus principais representantes não guardavam nenhum tipo de contato ou parentesco com os “pioneiros” do samba ou do choro, fossem os ligados ao “morro”, ao ramo da casa da Tia Ciata ou aos “mulatos pioneiros” do choro.

Nessa passagem, um dos personagens já arrolados havia penetrado a estrutura do rádio. Após ter auxiliado Ademar Casé em 1932 na empreitada de inaugurar e tocar o mencionado e afamado programa, e ter mesmo percorrido com sucesso algumas estações de rádio do Rio de Janeiro e de São Paulo cantando sambas, emboladas e cateretês, o artista em pauta se lançaria em um novo métier, qual seja, o da preparação e apresentação de programas radiofônicos em que a memória dos sambistas e chorões da “antiga” passaria a ser louvada. Trata-se de Almirante, afamado cantor e compositor que viria a ser contratado pela Rádio Nacional em 1938. O jovem bem nascido morador de Vila Isabel, ex-integrante do então extinto Bando de Tangarás teria apresentado até então como seu maior trunfo no domínio musical a idéia de se gravar em disco a percussão usual das escolas de samba: “(…) O tipo de música [Na Pavuna] prestava-se perfeitamente para colocar em prática um tipo de acompanhamento para o samba que já vínhamos bolando há algum tempo, isto é, o uso de pandeiros, tamborins, cuícas, ganzás, surdos etc., que as escolas de samba utilizavam” (Apud: CABRAL, 2005: 57). Apesar de obter relativa notoriedade com o crédito desta “invenção”, o renomado “compositor de modinhas” (Apud: CABRAL, 2005: 62), na ocasião, ao contrário de seu colega Noel Rosa, não demonstrava intimidade com as paragens em que esses instrumentistas se encontravam nem com os próprios instrumentistas. Ele ingressava no universo musical popular de maneira fortuita e pelas mãos do “civilizado” Braguinha, amigo de vizinhança e futuro cunhado que animava bailes e espetáculos em clubes e sociedades grã-finas.117 Almirante se veria levado neste início de carreira, no intuito de sobreviver em um meio artístico incipiente, a fazer as vezes de uma espécie de showman das rádios durante quase toda a década de 1930 – contaria piadas, dançaria, comporia canções carnavalescas, interpretaria diversos estilos musicais, produziria programas sem deter a identidade de sambista ou outra qualquer que lhe garantisse respeito maior da parte de seus pares ou de jornalistas no universo da música popular. Após sua entrada na Rádio Nacional, no entanto, daria uma virada em sua posição subalterna.

A experiência amealhada qualificaria Almirante ao comando de alguns programas neste veículo ainda aberto a experimentações de toda ordem. De sua lavra nasceria despretensiosamente o Curiosidades Musicais em meados de 1939 e sem nenhuma remuneração no início, dado que Almirante fora contratado como cantor e não produtor de programas radiofônicos. O programa se tornaria, em 1940, o primeiro a ser irradiado para todo o território nacional em razão do sucesso

117 A canção Na Pavuna, a despeito do êxito obtido no carnaval de 1930, teria despertado a ira de jornais como o Jornal

do Commercio por conta das pretensas idiotia e falta de qualidade artística dos versos, bem como, em contrapartida, a relativa simpatia de outros veículos como o Correio da Manhã, conforme Cabral (2005: 61-62) relata.

alcançado no ano anterior. De um início titubeante, recheado de curiosidades e fofocas um tanto chochas sobre o universo musical popular do qual Almirante se faria uma testemunha ocular, definir-se-ia uma emissão com pendores historicistas e forte viés nacionalista de agrado de determinado setor da intelectualidade. Reunindo a elucidação de questões diversas em torno das manifestações musicais populares brasileiras, isto é, a respeito de suas “origens”, “influências”, o programa logo passaria a contar com o auxílio “científico” das asserções de Renato de Almeida, um dos mais destacados musicólogos do país naquele instante e que, à frente, se tornaria o principal articulador do Movimento Folclorista.118 Neste ponto estaria sendo tecido o primeiro dos elos conectores entre as manifestações musicais populares urbanas – samba e choro “autênticos” – e o movimento folclorista, o que viria a eclodir no denominado “folclorismo urbano” que grassou sobretudo durante a década de 1950.119 Almirante estimulava os ouvintes a enviar partituras de composições folclóricas “autênticas”, as quais seriam analisadas e poderiam vir a ser executadas por Radamés Gnattali e sua banda. O diretor do programa iniciava assim, por meio da reunião, organização e classificação desse material, o primeiro dos arquivos que conteria tão-somente documentos relativos às manifestações folclóricas e/ou populares brasileiras, vindo a se tornar uma sumidade no assunto com o passar de alguns anos, dado que esses materiais únicos estavam sob sua guarda. A autoridade de suas assertivas sobre o que quer que fosse neste domínio transmitiria um ar de infalibilidade.120 Tendo como finalidade explícita o “culto à tradição” (Apud: CABRAL, 2005: 170), o Curiosidades Musicais em sua parte musical mesclava a execução de composições folclóricas de diversas regiões do Brasil com os “cariocas” marchinhas de carnaval, sambas e choros, dando margem a que um cadinho da “tradição musical brasileira” aos poucos se constituísse no entremeio das potentes ondas da Nacional. A crítica nacionalista apoiadora do Estado Novo aplaudia vigorosamente a iniciativa de Almirante, que em 1941, após dois anos nesta nova função, receberia o Prêmio Roquette-Pinto pela excelência da criação e ainda por cima deixaria a Nacional a peso de ouro para assumir a direção de programas da concorrente Tupi (Cf. CABRAL, 2005).

Entusiasmado pela recepção à sua investida, aquele que declararia bem dentro do espírito pedagógico estado-novista que “(...) é preciso educar divertindo e divertir educando (...)” (Apud: CABRAL, 2005: 178), direcionaria seu veio criativo quase que exclusivamente à produção de diversos programas na Tupi entre 1941 e 1943, retornando à Nacional logo em seguida, em 1944. O medíocre compositor e mediano cantor Almirante faria deste expediente uma maneira de estabelecer uma concorrência à altura e no mesmo diapasão ao “samba-exaltação”, criação vinculada ao personagem dominante no mundo da composição do samba, Ary Barroso, contratado da Rádio

118 Ver tese de Vilhena (1997) para a análise da institucionalização, do apogeu e da queda desse movimento. 119 O termo foi cunhado por Paiano (1994).

120 Este arquivo ficaria conhecido justamente como o Arquivo do Almirante, o qual seria vendido ao Estado da

Mayrink Veiga.121 Sua tacada neste terreno que mais frutos lhe traria se daria em 1946 com o célebre

O Pessoal da Velha Guarda, que contava com a direção musical de Pixinguinha e Benedito Lacerda, o duo de saxofone e flauta transversal eternizado em gravações e composições de choro daquela mesma década. Trazia ainda o famoso Regional de Benedito Lacerda, presente nas estruturas do rádio desde o Programa do Casé reunindo os exímios violonistas Meira, Dino Sete Cordas, o cavaquinista Canhoto e o pandeirista Russo, conjunto que por décadas a fio atuaria nas gravações de samba e de choro e nos acompanhamentos musicais das rádios ditando o padrão de arranjo e reprodução a ser cumprido por aqueles que almejassem filiar-se à “tradição”. Verdadeiro celeiro de craques, o programa abrigaria a estréia de diversas figuras que viriam a se tornar grandes nomes da música popular urbana – mais especificamente filiados ao choro –, casos de Jacob do Bandolim, o flautista Altamiro Carrilho e o trombonista Raul de Barros. Conforme se observa a partir de transcrições de excertos do programa, a linha de força na produção de Almirante seguia o parâmetro estabelecido pelos intelectuais êmicos, qual seja o enaltecimento à revivescência “das lembranças deliciosas de um tempo que já vai longe”. Pixinguinha aqui atingia o posto de representante em carne e osso da Velha Guarda:

A Rádio Tupi e a Rádio Tamoio apresentam: O Pessoal da Velha Guarda, um programa para oferecer músicas do Brasil de ontem e de hoje em arranjos especiais de Pixinguinha para a orquestra exclusiva do Pessoal da Velha Guarda.(...)

(…) Quando essas melodias nos chegam, chegam-nos também lembranças deliciosas de um tempo que já vai longe, de um tempo que pertence à juventude do pessoal da Velha Guarda. E o Pessoal da Velha Guarda, aqui está, comandado por Almirante, para contar coisas do tempo antigo (…).122

A confirmação de que a “verdade” da música popular residiria em seu passado perpassa as vinte edições do programa. O nacionalismo de Almirante, para quem “(...) a nossa música é superior (...)” (Apud: CABRAL, 2005: 209), completa o quadro de solidificação do elemento nacional- popular “autêntico” carioca urbano, transfigurado nos artistas vinculados sobretudo aos gêneros samba e choro e seus agentes tidos como “puros”. A essa altura, contando com apoio explícito de sumidades da cultura nacional e nacionalista em sua empreitada, como Heitor Villa-Lobos, Edgard Roquette-Pinto, Herbert Moses, presidente da Associação Brasileira de Imprensa, os folcloristas Câmara Cascudo, Renato de Almeida, dentre outros, os “educativos” programas radiofônicos de Almirante atingiam um status amiúde aspirado, porém jamais concretizado no universo radiofônico pioneiro: o de “educar divertindo” por meio do uso daquelas que passavam a ser consideradas as “autênticas” expressões culturais de nosso povo. Nota-se que muitos desses programas já 121 Diversos seriam os programas de rádio produzidos e criados por Almirante neste período. Dentre os mais

representativos, destacam-se A Canção Antiga, em 1941, História do Rio da Música, em 1942, se seguindo o Curiosidades Musicais, mantendo um molde parelho. Em 1943, Almirante produziria mais três programas: Histórias das Danças, Campeonato Brasileiro de Calouros e Histórias de Orquestras e Músicos. Em 1945, de volta à Nacional, criaria o Aquarela do Brasil e, à frente, o Anedotário de Profissões, o Carnaval Antigo, o Incrível, Fantástico, Extraordinário, o No tempo de Noel Rosa e, por fim, o célebre O Pessoal da Velha Guarda, já em 1946, quando novamente havia se transferido novamente para a Tupi. Sobre Ary Barroso, ver Shaw (1999), McCann (2004) e a biografia de autoria de Cabral (s/d).

122 Programa A Velha Guarda de número um, de 08/10/1947, acessado em http://daniellathompson.com, no dia

expressavam um caráter visível de preservação e resgate das “antigas” manifestações populares e de suas “histórias” que, na maior parte das vezes, contavam com o arrimo dos documentos em posse de Almirante na comprovação da “veracidade dos fatos” sobre os quais ele discorria. Na realidade, Almirante inaugurou uma espécie de tirocínio no meio radiofônico ao identificar temporalmente a música popular de bom gosto, autêntica, pura ou o que quer que seja de positivo, com aquilo que teria sido a “era de ouro” da música popular urbana: as décadas de 1920-30 e seus artistas – décadas em que, por sinal, ele próprio teria se iniciado nas atividades musicais ao lado de Noel Rosa, Braguinha e seu Bando de Tangarás. Nesses “tempos de outrora” não haveria, para Almirante, interesse de nenhuma espécie da parte dos compositores, músicos e cantores; apenas o prazer da execução musical per si ou de se reunir animariam as atividades artísticas. Coincidentemente ou não, os personagens escolhidos, aqueles que passariam à história como os pioneiros de um purismo que supostamente marcharia à distância da produção musical que se armava em meio às estruturas comerciais eram os mesmos apresentados na parte anterior da tese, isto é, os que figuravam como protagonistas nos livros de Vagalume, Orestes Barbosa e, por fim, no caso do nascente choro, no de Animal. Mas as semelhanças com as ações dos classificadores do pretérito não paravam por aí. Iriam bem mais além.

Almirante incrementaria deveras as atividades levadas a cabo pelo primeiro grupo de intelectuais êmicos. Seu trabalho de preservação e descoberta dos “verdadeiros” valores em nossa música popular arrancaria do respeitado crítico musical Eurico Nogueira França, que viria a considerá-lo um requintado estudioso dessas manifestações, comentários elogiosos, a ponto de o radialista ser posicionado um grau acima na hierarquia de intelectuais de sua cepa, outrora carentes de prestígio externo: “(...) Representa Almirante uma nova espécie de folclorista (...)” (Apud: CABRAL, 2005: 217). Quer dizer, o samba e o choro eram lançados à categoria de “nova espécie de folclore”, o urbano, merecedores de tanta atenção e estudo, em seu formato puro, quanto as rústicas manifestações interioranas de agrado dos “tradicionais” folcloristas. E este radialista, a partir daí alçado ao rol de folclorista, a mais nobre ocupação conferida aos intelectuais desgarrados de instituições legítimas daquela época, não perderia tempo em desvendar “a verdade” sobre o então folclorizado samba nos mais diversos âmbitos. Almirante punha em marcha práticas que se tornariam rotineiras dentre os novos ativistas intelectuais êmicos coligados ao samba e ao choro. Em uma série de conferências realizada na erudita Escola Nacional de Música, o antigo INM, o mais novo especialista no tema dissertaria sobre a “real” origem do mais popular gênero musical brasileiro. Intitulado O samba não nasceu no morro, o conjunto de palestras proferido por Almirante, que contava com o auxílio do pessoal do Conjunto da Velha Guarda e de Aracy de Almeida – a cantora preferida de Noel Rosa – na ilustração musical de seu argumento tencionava demonstrar que o samba, na realidade, viria sim da cidade – mais exatamente, teria sido gestado na

casa de Tia Ciata. O Pelo Telefone de fato representaria o primeiro samba registrado, logo, legitimamente considerado o marco do gênero. Com Donga e Pixinguinha levados a tiracolo nessas ocasiões, antigos habitués da residência e presentes no dia da criação do “primeiro samba”, o radialista confirmaria a sua “verdade” histórica originária (Cf. CABRAL, 2005: 221). Eis que Almirante revisitava e selecionava as antigas proposições evidenciadas tanto no discurso de Vagalume quanto nos versos de canções mencionadas com o fito de fornecer a apenas uma dessas diversas versões até então possíveis um tom cientificista e uma conclusão peremptória.

Decorrências de fundamental importância ao desenrolar dos gêneros samba e choro podem ser entrevistas a partir deste ato fundador. Em primeiro lugar, o folclorismo urbano passaria a buscar as “origens” das manifestações musicais urbanas dentro do próprio ambiente da cidade. Não mais haveria a necessidade premente para um Mário de Andrade e seus presumidos seguidores em se percorrer paragens distantes ou isoladas no intuito de se deparar com formas artísticas “autênticas”. O citadino Almirante, a despeito de ter trazido aos estúdios de gravação a percussividade do “morro”, local ermo até então e considerado pelos folcloristas “tradicionais” berço do verdadeiro samba, possuía parco contato com as escolas de samba e seus baluartes, instituições incrustadas nesses recintos. Logo, daria preferência à versão sobre a “origem” que contasse com o protagonismo do amigo e colega de rádio Pixinguinha. Em segundo lugar, deve-se recordar que sua idade não lhe permitia ter participado dos pretensos períodos “primordiais” da música popular urbana. A sua ascensão artística teria se dado a reboque das instituições comerciais da música, fato que lhe facultaria apenas sistematizar e abraçar um dos pólos existente e possível demarcado por um de seus antecessores êmicos como “o” local originário do samba, e não de ele próprio fundar uma terceira via em que se inserisse. E como naquele instante era ele quem “redescobria” a “Velha Guarda” composta por Pixinguinha, Donga e João da Baiana, tornava-se lógica a sua opção por estabelecer esta verdade e não outra. O que antes se dividia em diversas possibilidades – Ary Barroso, por exemplo, ainda era daqueles que acreditava que o verdadeiro samba proviria do “morro” (Cf. McCANN, 2004), enquanto Orestes Barbosa sequer citava a casa da Tia Ciata como um de seus locais originários – encontraria aqui o ensejo de unificação através do vácuo de legitimidade que envolvia as declarações de Almirante com respeito a esses assuntos.

O evento citado, ademais, realizava uma aproximação que, à frente, se manifestaria constantemente entre os gêneros musicais populares urbanos e a “escola”. Avolumar-se-iam conferências, teses, apresentações etc. em ambientes de estudo e de ensino em geral postas em marcha por gente da estirpe de Almirante e que contariam, no mais das vezes, com a demonstração prática de sambistas e chorões que teriam vivenciado aquela “era de ouro” de que esses “doutores em sambice”, como diria Mário de Andrade, falavam. Com isto, o prenunciado folclorista traçava claramente uma distinção relativa a outros concorrentes de peso no mundo do samba. Ary Barroso

detinha, por exemplo, o título de sambista-nacionalista, representante das “coisas nossas” em viagens ao exterior e o reconhecimento do grande público na qualidade de compositor, algo deveras recompensador. Almirante, neste sentido, por vias tortuosas seguia um trabalho distinto que, não obstante, terminava por amealhar a admiração de intelectuais diversos, alguns mesmo inimigos confessos de Ary Barroso, caso de Heitor Villa-Lobos (Cf. McCANN, 2004). A nova posição inaugurada pelo radialista-folclorista ensejaria uma nova forma de visão sobre as manifestações musicais populares no espaço social e intelectual. O samba e o choro ganhavam uma seriedade em seu tratamento jamais conquistada, e seus intelectuais êmicos, o reconhecimento enquanto intelectuais de uma nova espécie, mais próximos ao movimento afim que eclodia, o folclorista, do que a desgarrados jornalistas policialescos das décadas anteriores. O folclorismo e o folclorismo urbano dividiriam o mesmo espírito pedagógico, genético, combativo e institucional, além de participarem de uma posição no espaço social parelha: a de agrupamentos de intelectuais menores e especializados em temas também menores que requeriam uma ascensão, tanto em termos de importância de seus objetos quanto em termos sociais e institucionais, visando ao melhor escoramento de suas ações. Intelectuais menores no campo intelectual e maiores para os não- intelectuais. E neste quesito residiria a grande revolução simbólica que forneceria a cara final ao campo da MPU, delimitado com precisão crescente a partir de então. Este processo ocorrido à surdina teria representado um ato inaugurador de muito maior relevância ao devir da música brasileira do que se costuma verificar. O irrompimento de movimentos tidos como intelectualistas na música popular, caso da Bossa Nova e da Tropicália, geralmente sobredimensionados a posteriori por acadêmicos-amantes e compositores-musicistas a quem foi conferido um grande poder de persuasão e legitimidade contestatória no regime militar, não poderia ter se dado sem a valorização obtida pelos intelectuais êmicos, que passavam a circunscrever e a rotinizar o próprio discurso legítimo sobre a música popular. Poder simbólico que eventualmente inexistiria, caso Almirante não tivesse fincado pé dez anos atrás na ENM inaugurando o período em que a voz dos intelectuais êmicos da música popular pudesse de fato ser ouvida e respeitada por quem realmente importava.

E a “Velha Guarda”, por fim, se faria real em meio ao legado de seu preservacionismo cultural consciente.123 Em 1954, por ocasião da festa de comemoração do IV Centenário da cidade de São Paulo, Almirante organizou, a pedido de seu amigo e componente da comissão organizadora dos festejos, o presidente da Rádio Record de São Paulo, Paulo Machado de Carvalho, uma excursão à praça aniversariante. Almirante se incumbiria de capitanear a ida de antigos e “eternos” sambistas e chorões a fim de animar o evento. Em uma verdadeira caravana da tradição, partiram da Cidade Maravilhosa em um mesmo ônibus diversos jornalistas guardiães das tradições cariocas,