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RMP: “Uma Espécie de Bíblia para Nós”

Nada, pois, pode ultrapassar o poder, digamos nacionalizador, da tradição.

Cecília Meirelles

Ações como colecionismo e a decorrente preocupação com o arquivamento de documentos que serviriam como provas factuais a estes novos intelectuais em suas investidas sobre a construção da “correta” história dos gêneros musicais populares imbricavam-se com a defesa consciente e intransigente das formas artísticas situadas nas décadas passadas e de seus respectivos agentes. Não se tratava mais de apenas fazer desfilar um punhado de personagens e de historietas carentes de um sentido mais abrangente, de apresentar ao público em forma de livro e reportagens um universo anteriormente desconhecido e que paulatinamente vinha sendo descortinado por meio das manifestações artísticas que invadiam as novas estruturas comerciais de reprodução musical; punha- se em causa agora a expressão de pontos de vista através de escoramentos balizados muitas vezes em teorias externas ao âmbito das simples memórias, a demarcação de uma posição de escol para aquilo que eles acreditavam representar a brasilidade nascente, a autêntica identidade artística nacional. Um público ávido não só pelo consumo de produtos musicais em forma de disco e na audição radiofônica, mas que demonstrava interesse em discussões aprofundadas que envolvessem termos como música popular autêntica, nacionalismo e folclore, ainda que restrito, manifestava a sua existência. Ultrapassava-se, destarte, o entremeio da ingênua descrição elegíaca de territórios e de figuras a fim de se atingir uma trincheira arvorada em torno da defesa daquilo que teria se 124 Para a narração desses eventos, ver Cabral (2005: 239-247). Há também informações tomadas da Coleção RMP

(2006: 54-56).

125 Frase de Hermínio Bello de Carvalho escrita na orelha do livro Samba, jazz e outras notas, de Lúcio Rangel, sobre a

constituído enquanto categoria expressiva de pureza absoluta no domínio artístico popular brasileiro. Não obstante, os locais originários do nascimento da “pura” música popular urbana que figuravam de forma esparsa e sem os mesmos propósitos nos livros de Orestes Barbosa, Vagalume e Animal – caso das residências das baianas do centro do Rio de Janeiro e dos morros –, e os personagens correspondentes eleitos de forma um tanto confusa e titubeante nesses livros como “pais fundadores” dos gêneros musicais em questão seriam ratificados por meio das classificações tecidas pelos herdeiros dos intelectuais êmicos de outrora. Em hipótese alguma os novos agentes teriam vindo para negar a “lei”, mas sim para cumpri-la. A criação institucional desta posição marcaria indelevelmente a reprodução da música popular urbana sob o bastião das bandeiras dos “verdadeiros” sambas e choros em contraposição às “falsas” manifestações musicais florescentes.

Se Ary Barroso, na parte da composição, e Radamés Gnattali e Pixinguinha, na orquestração, haviam dado o pontapé inicial para que o samba e o choro pudessem ser vistos com outros olhos, uma vez que se “civilizariam” sem perder a sua “autenticidade”, um consistente debate intelectual atuaria a reboque na mesma direção de glamorização das selecionadas “autênticas” manifestações musicais populares urbanas nacionais.126 Detentores de contatos muitas vezes ambíguos com agentes de todos os espectros da esfera política, levando-se em consideração a necessidade premente de auxílio fosse do lado que mais bem lhes conviesse no intuito de levar a termo seus projetos, esses personagens passariam a ser reconhecidos como ativistas de primeira ordem em tudo o que se relacionasse aos gêneros por que passavam a zelar. No intento de focalizar a análise em pontos determinantes ao estabelecimento de seus ideais, deter-me-ei em projetos mais específicos pelos quais esses personagens expressaram com clareza suas posições estético- ideológicas. Um dos mais relevantes deles, por exemplo, consiste na fundação de um periódico de freqüência mensal existente no interregno de dois anos da década de 1950. Reunindo figuras de destaque em seu corpo editorial, a Revista da Música Popular, pode ser compreendida como o espaço central de debates de um grupo bastante heterogêneo de intelectuais em torno de posições estético-políticas inusitadamente mescladas.

O jornalista carioca Lúcio do Nascimento Rangel (1914-1979), branco, neto do engenheiro Nascimento e Silva, personagem imortalizado na célebre rua de Ipanema cantada em versos por Vinícius de Moraes127, foi a figura central deste grupo constituído na década de 1950. Bacharel em direito, seguiria a profissão em voga dentre aqueles com os quais mais bem se relacionava na juventude: o jornalismo. Coxo, Lúcio recolheu-se na infância em torno de atividades estáticas como a leitura, a música e o cinema. Cresceu ao lado de figuras da classe média intelectualizada de

126

Para maiores informações sobre as modificações impressas por estes agentes, ver Napolitano (2007), Stroud (2008), McCann (2004), e os biógrafos de Pixinguinha, Cabral (1977) e Silva & Oliveira Filho (1979), e de Radamés, Barbosa & Devos.

127 Trata-se da canção Carta ao Tom 74, (1974) de autoria de Vinícius de Moraes, que começa com os seguintes versos:

Copacabana, local que habitava, com quem manteria contato durante toda a vida, dentre os quais futuros diplomatas e colegas de classe de advocacia na Universidade do Brasil. Apesar de possuir boa voz para o canto popular, teria sido impedido pelo pai, o também engenheiro e nome de rua carioca Armindo Rangel, de tentar a inserção no mundo artístico, com a escusa de que “(...) a vida artística não era digna de um neto do dr. Nascimento e Silva (...)” (Apud: RANGEL, 2007: 13). A relativa abastança financeira e a decorrente despreocupação o conduziriam, no entanto, a meios boêmios um tanto inusitados no caso de um adolescente com tais origens sociais. Na faculdade, o aluno gauche, amante das novas manifestações artísticas e relativamente rebelde às aspirações de reprodução de classe paterna, tomaria contato com alguns dos intelectuais vanguardistas por meio de sua participação na Revista Acadêmica daquela instituição, a qual contava com colaboradores do porte de Mário de Andrade, Rubem Braga, Graciliano Ramos, Érico Veríssimo, Cândido Portinari, Aníbal Machado, Arnaldo Pedroso Horta, seu colega de faculdade Moacir Werneck de Castro, Murilo Miranda e o futuro governador da Guanabara, Carlos Lacerda, um grande amante das formas musicais populares urbanas (Cf. RANGEL, 2007: 12-13). Lúcio teria a honra de tomar chope e dividir cantilenas de samba com aquele a quem atribuiria a inspiração para seus atos, o líder máximo Mário de Andrade. Embora a estada carioca de Mário tivesse começado em 1938, a correspondência entre ambos remontava a 1934, por conta de sua atividade na revista. Mário, definitivamente, a partir de então, justificaria a vida a ser perseguida por Lúcio, um convertido às causas “populares”. Seu contato com Mário o fez apreender que o trabalho de intelectual das manifestações musicais que tanto amava podia ser desempenhado por consagrados do meio cultural, fato que, de um modo ou de outro, não o desabonaria de todo aos olhos do pai. A um “neto do Dr. Nascimento e Silva”, o universo musical-popular oferecia uma posição digna de ser ocupada.

Logo após ter concluído a faculdade, Lúcio, ao contrário de diversos dos intelectuais êmicos, não encontraria dificuldades em iniciar a sua vida profissional nos jornais cariocas, tendo sido um dos primeiros a possuir uma coluna fixa que tratava apenas das manifestações musicais populares urbanas, entre os anos de 1945 e 1947 no suplemento literário de O Jornal (Cf. RANGEL, 2007: 12). Freqüentador assíduo da boêmia da Lapa e dos principais cafés que reuniam personagens do mundo musical nos anos 1930, Lúcio se relacionaria com os futuros “deuses” da música popular urbana carioca, no caso, Noel Rosa, Pixinguinha, Cartola, Paulo da Portela, Ismael Silva etc. Tornar-se-ia célebre, aliás, o tratamento ostentatório, à época um tanto fora de lugar, conferido por ele a alguns desses personagens. Cartola seria chamado em suas crônicas, e mesmo pessoalmente, de “O Divino Cartola”, Ismael Silva de “O Grande Ismael”, Pixinguinha de “O Maior Músico Popular de Todas as Épocas”. Ao conferir um grau de superioridade e nobreza a figuras da música popular, o jornalista daria ensejo à canonização simbólica desses agentes vinculados ao universo popular musical urbano e oriundos das baixas camadas da população.

O intransigente defensor de seus amigos de boêmia das décadas de 1930-40, após vagar durante um bom tempo pelo jornalismo “cultural”, decidiria ele próprio criar, na década de 1950, uma revista especializada nas manifestações musicais populares que acreditava representar os dois produtos mais autênticos das culturas negras brasileira e norte-americana: o samba e o jazz, principais assuntos sobre os quais se havia posto a escrever na década de 1940. Em parceria econômica com seu amigo Pérsio de Moraes e contando com a colaboração de ilustres colegas de jornalismo, boêmia e de culto ao jazz, que muito se lhe assemelhavam na defesa inconteste de uma espécie particular de música popular, Lúcio lançaria, em 1954, o primeiro número da Revista da Música Popular – a partir de agora RMP – como editor. Existiam ao menos mais três publicações voltadas exclusivamente ao universo das artes populares urbanas. Tratava-se de Radiolândia, Cinelândia e Revista do Rádio. Esses três veículos, entretanto, pretendiam atingir o grande público com informações, fofocas, matérias especiais revelando a intimidade dos “cartazes”, concursos promovidos à época, como o das “Rainhas do Rádio” e amenas entrevistas repletas de questões sobre o vestuário preferido, iguarias prediletas e tópicos assemelhados. Recheadas de grandes e coloridas fotografias dos ídolos, pretendiam alcançar a máxima dispersão em termos de mercado com tiragens expressivas neste segmento cultural. Rangel, por outro lado, deixava claro em editorial que a linha da revista nada teria a ver com congêneres já existentes:

Já frizamos, e mais de uma vez, que esta REVISTA não publica notícias e artigos visando a vida particular de artistas ou notas comentando certos fatos escandalosos que, infelizmente, ocorrem em nosso meio musical. Fazemos mais uma vez êste aviso para que não nos cheguem às mãos certos artiguetes evidentemente mal endereçados (Apud: COLEÇÃO RMP, 2006: 665).128

A RMP de Lúcio Rangel visava, portanto, a incrementar o debate intelectual que vinha se encorpando ao longo de décadas. Voltada a um público restrito, haja vista sua tiragem restrita, a administração financeira amadora, os desenhos “artísticos” de renomados cartunistas, como Lan, que tomavam os espaços centrais, e o padrão gráfico a serviço de longos textos argumentativos em detrimento de fotos, a RMP agregava um time de colaboradores que pautaria as manifestações musicais presentes na indústria do disco e nas rádios. Diga-se de passagem, a década de 1950 viu recrudescer a presença de estilos musicais estrangeiros, tanto nas estações de rádio quanto no lançamento de novos discos. Os então considerados malfadados sambas-canção dominavam as paradas de sucesso juntamente com o bolero. Esses formatos “malditos” identificados como estrangeiros, somados aos alardeados “desvirtuamentos” ocorridos no samba, no choro e nas demais manifestações tidas originariamente por autênticas representavam os grandes inimigos da “boa” tradição da música popular e deveriam ser, antes de tudo, combatidos sem trégua. O outro propósito da RMP se direcionava à crítica interna enaltecedora das produções dos “verdadeiros” artistas populares. Por meio da tabela a seguir129, vislumbra-se uma possível divisão relativa aos artistas 128 Como em toda a tese, dou preferência por manter a grafia original das citações, com seus equívocos e regras de

época.

daquela época; aqueles considerados comerciais, temas freqüentes de reportagens “leves” levadas a cabo pelas demais revistas citadas, no caso, a Radiolândia, e aqueles que geralmente mereciam o louvor da RMP130:

Elenco de artistas citados e enaltecidos pela RMP

Elenco de artistas da

Radiolândia

Almirante Ademilde Fonseca

Aracy Cortes Angela Maria

Aracy de Almeida Carlos Galhardo

Ary Barroso Cauby Peixoto

Ataulfo Alves Dalva de Oliveira

Bororó Dick Farney

Braguinha Dircinha Batista

Carmem Miranda Doris Monteiro

Chiquinha Gonzaga Elizeth Cardoso

Donga Emilinha Borba

Dorival Caymmi Francisco Carlos

Elizeth Cardoso Isaurinha Garcia

Ernesto Narazé Jorge Goulart

Francisco Alves João Dias

Inezita Barroso Linda Batista

Jacob do Bandolim Luiz Vieira

Mário Reis Mário Lago

Noel Rosa Marlene

Pixinguinha Nelson Gonçalves

Sinhô Nora Ney

Wilson Batista Orlando Silva

De início, percebe-se que alguns deles, como Elizeth Cardoso e Carmen Miranda – que não figura na parte correspondente à Radiolândia na lista acima, apesar de ser tema freqüente desta revista – dividiam espaço nas duas publicações.131 Personagens na mesma situação, porém, não passavam de uma pequena minoria. Aos “exclusivos” da Radiolândia assinalados acima e alguns outros pertencentes ao mesmo espectro do chamado “samba-canção”, Lúcio Rangel não perderia tempo em rebaixá-los explicitamente. Que o digam Anísio Silva (1920-1989), Roberto Paiva (1921-), João Dias (1927-1996), Lúcio Alves (1927-1993), Blecaute (1919-1983), Marlene (1924-), Emilinha Borba (1923-2005), Agostinho dos Santos (1932-1973), Maysa (1936-1977), Dick Farney (1921-1987), Cauby Peixoto (1931-), João Gilberto (1931-), Isaurinha Garcia (1919-1993), espezinhados sem dó nem piedade por Lúcio em razão dos mais diversos motivos, como a falta de afinação vocal, a cantilena melosa e demais humilhações infligidas (Apud: RANGEL, 2007: 23-24). Isto posto, alguns dos contemplados com reportagens sobre suas obras em ambas revistas sofreriam

130 Friso que a lista se apresenta um tanto incompleta em relação aos artistas que habitualmente ocupavam as páginas de

ambos os veículos. Nomes como os de Marília Batista, Sílvio Caldas e Orlando Silva, por exemplo, que chegaram até mesmo a ilustrar a capa da RMP, inusitadamente não figuram dentre os eleitos da RMP para a autora do quadro. Do outro lado, Waldir Azevedo, artista constantemente celebrado pela Radioândia e revistas do gênero, encontra-se ausente. A despeito dessas carências, a lista contém certo grau de operacionalidade, pois grosso modo identifica que há uma nítida linha demarcatória entre esses grupos de artistas.

131 Fora essas duas cantoras, há ainda os casos de Sílvio Caldas, Dircinha Batista e Orlando Silva, que chegaram a

ilustrar capas da RMP, as de números 9, 12 e 14, respectivamente, mas que, por outro lado, também figuravam freqüentemente nas revistas mais “comerciais”.

restrições da parte dos críticos da RMP, como Inezita Barroso, a quem Lúcio Rangel reportaria que “(...) Estraga a coisa com sotaque de caipira paulista” (Apud: RANGEL, 2007: 25). Lúcio ainda apontaria idiossincrasias negativas associadas a Elizeth Cardoso e a Carmen Miranda, “(...) baiana portuguesa de Hollywood (...)” (Apud: RANGEL, 2007: 24). Elogios rasgados e incondicionais só mesmo àqueles que de alguma forma filiavam-se sem nenhuma suspeita às “fontes” da “pura” música popular urbana. Do lado do samba, Almirante, Aracy de Almeida, Ary Barroso, Braguinha, Aracy Cortes, Mário Reis, Noel Rosa e Wilson Batista integrariam o grupo das manifestações que dariam origem ao chamado “paradigma do Estácio de Sá”. Outros, como Pixinguinha, Sinhô, Donga, Caninha, Heitor dos Prazeres e João da Baiana proviriam das manifestações da casa da Tia Ciata. Os falecidos Ernesto Nazareth e Chiquinha Gonzaga completavam o grupo dos “mulatos pioneiros” das manifestações musicais populares que se tornariam o choro, e Jacob do Bandolim se enquadraria dentre aqueles que requeriam as manifestações levadas a cabo por estes últimos personagens como antecessoras diretas de sua própria atividade, sendo, além disso, um colecionador e arquivista de documentos, partituras e discos da música popular, ao modo de Almirante e Lúcio Rangel.132 No outro lado da tabela, a grande maioria dos artistas não possuía vínculos simbólicos positivamente diferenciadores. Provindos quase que exclusivamente das estruturas comerciais que vinham de se formar, quais sejam, as estações de rádios e seus espetáculos de calouros, terminavam proscritos pela falta de “origens”.

É de se notar ainda que coordenadas sociais diversas dividiam esses grupos no espaço social. Neste momento de maturação e assentamento do cadinho da filiação à tradição desenhado desde as asserções dos intelectuais êmicos pioneiros, uma geração de artistas ainda na ativa seria ungida pela aura da pureza dentre as manifestações musicais urbanas. Os favoritos da RMP contavam à época da publicação, em média, 45 anos de idade – não incluí as idades dos personagens falecidos naquele instante, haja vista que alguns pertenciam a tempos bem mais remotos. Do lado dos artistas filiados à Radiolândia, a média de idade era notoriamente mais baixa, beirando os 32 anos. Outro dado revelador diria respeito ao local de nascimento dos artistas. Dentre os agraciados da RMP, quinze teriam nascido na cidade do Rio de Janeiro, um no interior do estado da Guanabara e apenas cinco em outras localidades. Os artistas da Radiolândia, por outro lado, apresentavam apenas nove naturais da cidade do Rio de Janeiro, dez provinham de outros estados da federação e dois do interior do estado da Guanabara.133 Conforme se pode depreender dessas coordenadas, a materialização do grupo portador do mana que distinguiria os “autênticos” daqueles que por muito tempo atrairiam certa desconfiança da crítica especializada nas manifestações musicais populares urbanas se fazia a olhos vistos. Os iniciados “puros” deveriam ter nascido antes ou na própria

132 Tanto que seu arquivo pessoal teria sido comprado pelo estado da Guanabara, assim como o de Almirante,

terminando incorporado ao MIS-RJ.

década de 1900 e na cidade do Rio de Janeiro. Se um agente se desviasse desses marcadores, ser- lhes-ia exigido qualidades extras que os vinculassem de forma insuspeita ao “clube da tradição”, como a reprodução de estilos musicais folclóricos, logo, considerados “puros”, caso da então jovem paulista Inezita Barroso. O apadrinhamento por um personagem acima de qualquer suspeita também funcionaria neste sentido, ao molde do qual o tradicionalista Jacob do Bandolim teria realizado em favor da jovem Elizeth Cardoso. Sem contar a defesa explícita de um dos gêneros musicais “autênticos” por meio do verso de composições, ato criativo e criador efetuado pelo baiano Dorival Caymmi em “(...) quem não gosta de samba/bom sujeito não é (...)”.134 O resto estaria fadado, no máximo, ao sucesso econômico e à celebração popular de suas obras. Pagariam o pedágio custoso, contudo, de não figurar dentre os que possuíam a estirpe da “raiz” embocada no passado, à História da música genuinamente brasileira e “autêntica”.

O estabelecimento da tradição posta em marcha pelos intelectuais da RMP escorava-se, de outra parte, em discussões tangentes à atividade propriamente musical. Preciosismos e certa sofisticação intelectual tornavam-se correntes nas diversas contendas que os articulistas promoviam no veículo. Sobretudo por conta das questões levantadas em torno do folclorismo e das ligações cultivadas pelos colaboradores da RMP com esses debates e porta-vozes. A afinidade eletiva brotada entre esses intelectuais carentes de reconhecimento no âmbito propriamente intelectual – os intelectuais êmicos das manifestações musicais populares urbanas e os folcloristas – rendeu-lhes uma cooperação extremamente intensa em ambas as direções. Desde os tempos de Mário de Andrade, a quem foi atribuído no movimento folclorista o papel de “pai fundador”, a música ocupa um posto central em meio às preocupações dos cultores do folclorismo. Seu “sucessor”, Renato de Almeida, principal organizador institucional e mentor intelectual do movimento folclorista nos anos de 1940-50, musicólogo de profissão e autor de uma História da Música Brasileira na década de 1920, a primeira do gênero, prosseguiria com o interesse pelo objeto (Cf. VILHENA, 1997: 153)135. Renato de Almeida daria ensejo a que nos anos 1950 a atividade folclorista tomasse uma grande dimensão, a ponto de diversos congressos terem sido organizados com muito sucesso e as comissões estaduais se reunissem em uma única entidade nacional. Os folcloristas passavam a obter amplo acesso aos grandes meios de comunicação, pautando as discussões em torno das manifestações artísticas populares de maneira bastante ativa. Nessas instâncias recém-inauguradas emergiam temas e questões cercados de grande ambição, como, por exemplo, a pretensão de fundar uma ciência especializada com metodologia, teoria e objeto próprios, qual fosse, a “ciência do folclore” em solo brasileiro e a partir das especificidades encontradas por aqui.136

134 O Samba da minha terra (1940), de Dorival Caymmi. 135

Os sucessores de Renato de Almeida na presidência da Comissão Nacional de Folclore, Edison Carneiro e Mozart de Araújo também possuíam livros escritos sobre as formas musicais populares e/ou folclóricas, sem contar que Mozart de Araújo era um musicólogo de profissão.

136 Sociólogos bem colocados no campo acadêmico, como Florestan Fernandes, combatiam essas pretensões, o que