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1. DESENHANDO RUI SPOHR

1.1 A biografia como fonte

Ao utilizar discursos autobiográficos de designers como ferramenta para a pesquisa histórica, Alessandra Vaccari se aproxima da socióloga Yunya Kawamura19, para quem os designers de moda têm forte participação no sistema da moda. Ainda

que não sejam os únicos atores na produção e difusão de novos estilos, determinam status e reputação, além de desempenharem um papel importante na

manutenção, reprodução e disseminação da moda. Como a literatura acadêmica é mais focada nos estilos do que na ação dos criadores em si, a autora propõe olhar a partir de uma organização social – e não estética. Compreender o sistema da moda, na visão dela, inclui compreender também o papel de quem produz.

Vaccari considera o designer como parte constitutiva da moda e se interroga sobre o seu papel na formação desse campo. Afirma que, embora a biografia seja um gênero exaltado do ponto de vista midiático, acaba desvalorizada no campo teórico: se na arte e na arquitetura os escritos dos artistas e arquitetos contribuíram ao aprofundamento de sua historiografia e literatura crítica, na moda o material textual produzido por designers é considerado promocional para suas carreiras, coleções e marcas. Ao superar essa diferença, Vaccari estimula o crescimento de um corpo teórico de conhecimento ao qual a história da moda pode se dedicar.

O uso de tais narrativas no campo do conhecimento histórico acadêmico, no entanto, requer prudência. Por um lado, como sugere Pierre Bourdieu, corre-se o risco de se cair na “ilusão biográfica”, ou seja, “a ideia de que a vida constitui um todo, um

19 “The fashion-ological analysis of designers is social organizacional na not aesthetic. Fashion is not defined as something more special and the great work of genius. However, the works of designers are essential because the understanding of the social structure and organization of the fashion system includes designers role in the system na what they produce”. KAWAMURA, Yunya. Fashion-ology: a introduction to fashion studies. Oxford-New York: Berg Publishers, 2005. Versão e-book.

conjunto coerente e orientado, que pode e deve ser apreendido como expressão unitária de uma ‘intenção’ subjetiva e objetiva de um projeto”.

A narrativa é construída a fim de dar coerência e linearidade às histórias de vida.20 Philippe Artières, na mesma linha, considera a autobiografia como prática de arquivar a própria vida, ressaltando que “não só escolhemos alguns acontecimentos, como os ordenamos em uma narrativa; a escolha e a classificação dos acontecimentos determinam o sentido que desejamos dar às nossas vidas.” 21

Por outro lado, se tomarmos a noção de Walter Benjamin, podemos considerar que “articular o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de perigo.”22 Assim, seria possível pensar no abandono de uma linearidade cronológica e abrir espaço a diferentes temporalidades, afastando a “ilusão” de Bourdieu.

A solução para esse impasse vem de Alessandra Vaccari, que considera o “designer de moda mais do que um indivíduo de fato: a figura do designer serve como

tropo da modernidade, através do qual os discursos sobre moda podem se

desenvolver e difundir”23. Portanto as autobiografias, assim como os textos biográficos, podem – se reconhecidas de maneira crítica –, ser utilizadas como fontes primárias. Por meio delas, busca-se a compreensão de como esses profissionais escrevem e subscrevem uma história da moda, além de contar aspectos a própria vida. A autobiografia de Rui, ao ser encarada como fonte de pesquisa, funciona como um lugar de memória onde a totalidade de sua história de vida encontra-se condensada. Lançada em 1997, “Memórias Alinhavadas” foi escrita em parceria com Beatriz Viegas-Faria e apresenta uma narrativa em primeira pessoa.

20

BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes & AMADO, Janaína. Usos e abusos da história oral. p.183-191. 2.ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998, p.185

21 ARTIÉRES, Philippe. Arquivar a própria vida. Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, p. 9 – 34, jul. 1998. ISSN 2178 – 1494. Disponível em:

<http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2061/1200>. Acesso em: 19 Fev. 2019. 22 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de História. In: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sergio Paulo Rouanet.São Paulo: Brasiliense, 2011, p. 224.

23 VACCARI, Alessandra. Autobiografias de designers de moda como ferramenta para pesquisa histórica. Modapalavra, E-periodico Dossiê História e Moda: múltiplas faces do saber histórico. UDESC, ano 8, n.16, jul-dez 2015, p.8. Disponível em:

<http://revistas.udesc.br/index.php/modapalavra/article/view/1982615x08162015005/4636>. Acesso em: 22 Fev. 2019.

O livro conduz, inicialmente, à experiência de Rui como estudante em Paris, detalhes sua chegada, com duas malas em Montparnasse, no exíguo quarto de "5ème

étange, sans ascenceur" onde morou, sua instalação definitica em Porto Alegre e a

construção de seu espaço profissional e, por fim, evoca fatos de sua infância. Foi em sua cidade natal, Novo Hamburgo, que começou a imaginar vestidos enquanto cortava couro na fábrica de sapatos do pai.

Existe ainda a preocupação de relatar episódios tidos como importantes ou ainda inusitados (como a influência da figura de Evita, então primeira-dama argentina e vestida por Dior), a participação nos desfiles promovidos pela Rhodia na década de 1960 ou ainda a história da noiva que dizia: “o meu véu vai cair!”. Por vezes, Rui se preocupa em informar ao leitor, em tom pedagógico, sobre suas visões no papel de profissional da moda – o que chama de “a minha verdade” – assim como registrar desabafos e conselhos.

A autobiografia de Rui, ao aglutinar um discurso que já vinha sendo consolidado, delimita marcos e alude a “fatos de memória” – que, segundo Michel Pollak, são “expressões que remetem mais a noções de memória, ou seja, a percepções da realidade, do que à factualidade positivista subjacente a tais percepções” 24. Esses fatos de memória passam a ser constantemente retomados, possibilitando um processo de enquadramento.

A memória enquadrada, ainda segundo Pollak, é mais específica do que a memória coletiva: não é construída de maneira arbitrária, produz um discurso organizado. Para Pollak, “o trabalho de enquadramento da memória se alimenta do material fornecido pela história. Esse material pode sem dúvida ser interpretado e combinado a um sem-número de referências associadas”.25

24

POLLAK, Michael. Memória e identidade social.Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 200-215, jul. 1992. ISSN 2178-1494. Disponível em:

<http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/1941>. Acesso em: 21 Fev. 2019. p. 201.

25

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 3-15, jun. 1989. ISSN 2178-1494. Disponível em:

Um exemplo desse processo vem do trabalho de Benito Bisso Schmidt. Em pesquisa sobre a jornalista Gilda Marinho26, o historiador aponta como se deu o enquadramento de sua memória. Para Schmidt, ela própria inferiu, com suas ações e discursos, nos marcos e referências que construíram e que ajudam a conservar a sua imagem e uma série de passagens anedóticas faz com que Gilda seja lembrada como mulher excepcional, à frente de seu tempo. Para o autor, “a cronologia da vida de Gilda só ganha densidade histórica quando se torna capaz de expressar muitos outros tempos, fenômenos cujas durações não podem ser medidas por esses sinais inequívocos, sempre iguais a si mesmo, que são as datas”.27

Ao desprender-se do tempo cronológico, a imagem de Gilda Marinho ganha força mítica, reatualiza-se em lugares de memória (artigos de jornais, livros, homenagens, celebrações) em uma “ação contínua e persistente de laboriosos guardiões da memória que, de tempos em tempos, lembrem por meio de diferentes suportes, narrativas e ações que Gilda era eterna”28

Em relação ao mito, Schimidt sugere observá-lo conforme Alessandro Portelli, considerando-se que:

[...] não é necessariamente uma história falsa ou inventada; é, isso sim, uma história que se torna significativa na medida em que amplia o significado de um acontecimento individual (factual ou não), transformando-o na formalização, simbólica e narrativa das auto-representações partilhadas por uma cultura.29

A ampliação dos significados de eventos isolados ajuda a compor uma percepção de realidade, que se sobrepõe aos fatos em si. No caso de Rui, o trabalho de enquadramento se dá em função da imagem de um profissional emblemático, referência na moda feita no (e para) o sul do Brasil.

26

Algumas questões sobre a trajetória de Gilda, especialmente quando da sua atuação no jornal A Hora, estão mencionadas no capítulo III.

27

SCHIMIDT, Benito Bisso. Os muitos tempos de Gilda: sobre biografias e extratos do tempo. In: Estudos da Historiografia Brasileira. Rio de Janeiro, ed. FGV, 2011.P.323-333 p. 328

28SCHIMIDT, Benito Bisso. Os muitos tempos de Gilda: sobre biografias e extratos do tempo. In: Estudos da Historiografia Brasileira. Rio de Janeiro, ed. FGV, 2011.P.323-333, p.330

29

PORTELLI, Alessandro. O massacre de Civitella Val de Chiana. In: FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO, Janaína (orgs.). Usos & abusos da história oral. 1a edição 1996. Rio de Janeiro: FGV, 2001, p. 123.

Por isso, é necessário compreender esse processo– considerando-se marcos, fatos e suas atualizações–pois ele alicerça a construção de uma narrativa que, ao dar conta da trajetória de Rui, acaba também por consolidar uma imagem de si.