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A busca por um modelo e o papel de Ibrahim Sued

2. RUI, UM ESTILO NO JORNAL

2.4 A busca por um modelo e o papel de Ibrahim Sued

159 Idem

160 BASSANEZI, Carla. Mulheres dos Anos Dourados. In: DEL PRIORE, Mary (org.) História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008.

Ibrahim Sued manteve sua coluna diária no jornal O Globo entre 1951 e 1995 e aparecia frequentemente no rádio e na televisão – participou, inclusive, do programa Fantástico. Sua coluna visava à "gente bem", como designava a elite frequentadora de festas, que promovia jantares e marcava presença na piscina do Copacabana Palace.

Nos anos 1950, sempre no mês de dezembro, o jornalista publicava a lista das dez mulheres mais elegantes do ano em sua coluna no jornal O Globo – em paralelo às fotografias coloridas que eram veiculadas na Revista Manchete.161

Como observa Elisabeth Murilho Silva, a análise de suas crônicas fornece pistas acerca do comportamento da elite e, de certa forma, serve como modelo a ser imitado por outras classes sociais. A lista das dez mais elegantes de Sued permite a identificação de padrões de autocontrole da sociedade da época. Funcionam como uma memória cotidiana das aparências, pois veiculavam ideias e imagens de uma performance pública:

A novidade trazida por Ibrahim Sued é colocar-se nos acontecimentos não como observador, como o repórter que às vezes era, mas como um ator, como alguém que participa das ações e conta suas próprias aventuras. Ao contrário dos demais jornalistas do gênero, que faziam estilo na exaltação dos retratados, Ibrahim constrói, ao longo do tempo, seu próprio prestígio, figurando ao lado de personalidades da política, da economia, do mundo artístico e da sociedade. Ao aparecer ao lado de personalidades como a Rainha Elizabeth da Inglaterra, sua posição já consolidada de árbitro da elegância e do gosto torna-se inquestionável. Ibrahim Sued coloca-se como um membro do grupo que narra aos seus leitores.162

As mulheres que aparecem na lista seguiam um perfil definido, “atendiam a um critério de elegância”. Apesar desse critério estar baseado na simplicidade, obedecendo à máxima de que “elegância não se compra”, todas vestiam-se com costureiros franceses, passavam temporadas em Paris e frequentavam o jet set. Até a década de 1960, apenas mulheres casadas eram apontadas. 163

Em 1956, o jornal A Hora divulgou uma entrevista exclusiva com Ibrahim Sued, “o cronista mais comentado e discutido do país”. Rui atuou como repórter e foi

161 SUED, Isabel. Em sociedade tudo se sabe. Rio de Janeiro, Rocco, 2001. 162

SILVA, Elisabeth Murilho. As dez mais elegantes: notas sobre a rigidez do comportamento feminino no Brasil dos anos dourados In: Anais do 10 Colóquio de Moda- 7 edição internacional, 1 Congresso de Iniciação Científica em Design de Moda, 2014.

163 Idem.

recebido pelo jornalista “em seu apartamento em Copacabana, respondendo a perguntas entre uma torrente de telefonemas e ordens de auxiliares”. As fotografias, creditadas a Miniró, reforçam o tipo de Sued: cabelos desgrenhados e camisa de mangas curtas em cor clara contrastavam com o estilo quase solene de Rui, que se apresentava de terno, gravata e óculos de armação grossa.164 (Figura 26.)

Figura 26 - Rui entrevista Ibrahim Sued para o jornal A Hora, 1956.

Fonte: A Hora.

A entrevista girou em torno da famosa coluna onde Sued apontava “As 10 mais elegantes do Brasil”, pois haveria suspense sobre a possibilidade de uma gaúcha ser incluída na lista anual. Ao ser perguntado sobre as mulheres do Rio Grande do Sul, o

164

cronista diz ter tido boa impressão ao visitar o Estado, porém acrescenta: “algumas senhoras não sabem como e onde usar certos acessórios de grande importância no vestir feminino”, como chapéus exagerados, após as 20h.

Sued disse ainda que seu trabalho não era fácil, pois mesmo contando com a opinião de mais de 100 conselheiros – entre modistas, cabeleireiros e “senhoras da sociedade” –, via-se cercado por mulheres de “evidenciada elegância”. Rui insistiu em saber o que classificava uma mulher como elegante, ao que Ibrahim Sued respondeu: “ser bem educada, inteligente, fina, ter projeção social e, naturalmente, saber se vestir. Aparentemente é muito fácil de uma mulher corresponder a estes requisitos mas, na maioria delas, falta uma ou outra condição fundamental.” 165

E o texto segue, chamando a atenção para o estilo de Ibrahim, que fez da coluna social um espaço para além dos comentários sobre bailes e casamentos: “É também noticiário internacional e, parece mentira, até político. Quantas vezes Ibrahim Sued surpreende nos bastidores da política a nomeação desta ou daquela pessoa para determinado cargo!”. 166

De fato, após a entrevista no concorrido apartamento em Copacabana, no mês de setembro, ao anunciar as debutantes, Rui informou que em dezembro do mesmo divulgaria uma lista apontando as dez senhoras consideradas as mais elegantes do Rio Grande do Sul. A dinâmica seria a seguinte: “vinte e cinco pessoas entre jornalistas, decoradores, cronistas sociais, profissionais de institutos de beleza, pelarias e lojas” dariam por escrito a sua opinião e as mais votadas seriam reconhecidas.

Rui passou a promover uma lista de elegantes, que eram entrevistadas e fotografadas, muitas vezes mostrando suas casas e exibindo suas peças preferidas do guarda-roupa. Aos poucos, “O que há de novo” parece ter se firmado como o espaço de Rui no jornal.

A coluna passou a aparecer, com frequência, ao lado de Instantâneo, na mesma página da história em quadrinhos O coração de Julieta e do horóscopo. Não raro, a coluna dividia espaço com receitas culinárias e a programação do cinema. Ainda com seus desenhos, ilustrava encontros com as elegantes nas mais diversas situações,

165 Idem 166

indicando “o que Porto Alegre viu a semana passada", o que também sugere uma organização quanto à periodicidade da coluna. (Figura 27)

Figura 27 - "O que há de novo por Rui", Jornal A Hora,1956.

Fonte: A Hora.

Ao seguir o modelo de Ibrahim Sued, além de reforçar o modelo feminino da época que, conforme Carla Bassanezi, promovia o casamento, a maternidade e a dedicação ao lar como um destino natural e incontestável, também reforçava gostos e hábitos.

Bassanezi, sobre os anos 1950 – ou Anos Dourados–afirma:

A vocação prioritária para a maternidade e a vida doméstica seriam marcas de feminilidade, enquanto a iniciativa, a participação do mercado de trabalho, a força e o espírito de aventura definiriam a masculinidade. A mulher que não seguisse seus caminhos, estaria indo contra a natureza, não poderia ser realmente feliz ou fazer com que outras pessoas fossem felizes.

Assim, desde criança, a menina deveria ser educada para ser boa mãe e dona de casa exemplar.167

Nesse sentido, as elegantes apontadas por Rui eram geralmente casadas, sempre apresentadas em referência ao nome de seus maridos. A maternidade e características como “simpatia” e “simplicidade” também eram exaltadas. O lar é apresentado através de ambientes refinados, onde móveis e objetos de decoração também aparecem como protagonistas.

Para Pierre Bourdieu, essa ideia de refinamento se articula dentro de um processo de distinção social, onde a noção de gosto é, portanto, socialmente construída e associada a determinada classe ou grupo. Para Bourdieu, tal processo gera uma dialética:

Uma classe possui uma determinada propriedade, a outra a alcança, e assim por diante. Esta dialética da concorrência implica numa corrida em direção ao mesmo objetivo e no reconhecimento implícito deste objetivo. A pretensão já sai derrotada, pois, por definição, ela se submete ao objetivo da corrida, aceitando ao mesmo tempo a desvantagem que se esforça por superar.168

Para Diana Crane, a teoria de reprodução de classes e gostos culturais de Bourdieu ajuda a compreender a complexidade das estruturas sociais:

Dentro das classes sociais, os indivíduos competem por distinção social e capital cultural com base em sua capacidade de julgar a adequação de produtos culturais segundo padrões de gosto e maneiras alicerçados na ideia de classe. As práticas culturais que incluem tanto conhecimento da cultura quanto capacidade crítica para avaliá-la e apreciá-la, são adquiridas na infância, no seio da família ou no sistema educacional, e contribuem para a reprodução do sistema de classes existente.169

Dessa forma, as colunas de Rui, ao tratar do gosto das mulheres que ocupam uma posição social destacada, funcionam como uma forma de reconhecimento – em

167

BASSANEZI, Carla. Mulheres dos Anos Dourados. In: DEL PRIORE, Mary (org.) História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008. p. 638.

168

BOURDIEU, Pierre. Alta-costura e alta-cultura. In: Questões de Sociologia. Trad. Jeni Vaitsman,Rio de Janeiro, ed, Marco Zero, 1983. p. 158.

169 CRANE, Diana. A moda e seu papel social, classe gênero e identidade das roupas. Trad. Cristina Coimbra. São Paulo: Ed. Senac, 2009. P. 33.

um processo de competição por distinção, mas também têm certo caráter pedagógico, pois sugerem que aquele é um estilo de vida passível de ser apreciado ou imitado.

Rui, quando entrevista Marília – apresentada como Sra. Dr. Paulo Agrifoglio – por exemplo, a fotografa em sua casa, “num puro estilo colonial, com móveis autênticos e peças de museu da época de D.Pedro.” Educada no Sacre Coeur, fluente em francês e mãe de três filhos, no vestir é “discreta mas de classe, seu porte altivo, simplicidade e simpatia são dignas do grupo de senhoras que representam a elegância da mulher do Rio Grande do Sul.” 170

Já a Sra. Paulo Agrifoglio vê na moda “uma fonte de distração”, prefere o estilo esporte, que ilustra ao posar de “eslaque cinza chumbo e suéter preto, o traje típico da elegância esportiva. Não é adepta a grandes mudanças no guarda-roupa: “a única mudança que faço com a moda, aliás adoro fazê-las, é mudar a cor dos cabelos, buscando saber tudo o que há de novo no que se refere a penteados.” 171

Nesses discursos, a moda – ou a composição de uma imagem pessoal elegante – passa por um gosto discreto, “de classe”, em que excentricidades ou distrações, assim como “grandes mudanças”, poderiam representar a fuga de um padrão estabelecido. Com observa Bassanezi, de acordo com esse padrão, uma mulher casada não deveria “ser muito vaidosa ou chamar a atenção, ao contrário, esperava-se que uma mulher casada se vestisse com sobriedade e não provocasse ciúmes no marido”.172

Loris – a Sra. Elias Bothomé –, descendente de libaneses, “reflete na sua vida cotidiana diversos costumes vindos do extremo Oriente: na sua casa, os móveis, a coleção de bibelôs de marfim e mil e um detalhes dão a impressão de estar-se no país longínquo de seus antepassados”. Mãe de dois filhos, Loris se define como uma mulher para o lar que, “quando é possível” desfruta ao máximo o prazer de viajar e conhecer o mundo. 173 (Figura 28)

170

Jornal A Hora, 1957. 171

Idem.

172 BASSANEZI, Op. Cit. p, 628. 173

Figura 28 - Rui apresenta a Sra. Elias (Loris) Bothomé

Fonte: A Hora.

As viagens também estão entre as preferências de Tereza Muniz Freire: “o de que eu realmente gosto é viajar e o faço sempre que possível; no mais, minha vida se resume em minha família”. Eleita na seleta lista das 10 mais elegantes do Brasil de Ibrahim Sued, Tereza é conhecida por sua coleção de óculos, é vestida pela mesma modista desde criança e, apesar das viagens, é assertiva nas escolhas do guarda-roupa: “você sabe, meu marido é funcionário do Banco do Brasil e não podemos fazer

grandes despesas, ainda mais nas grandes casas de Paris onde eles imaginam que todo o sul-americano seja milionário.”174

Ser econômica, administrar o orçamento doméstico e não confrontar o marido em questões que envolvessem dinheiro seriam também, ainda conforme Bassanezi, uma das posturas fundamentais para “evitar desentendimentos no lar”. Já as viagens “para conhecer o mundo” seriam uma forma de contato com outras culturas, cujos

souvenirs se integrariam à decoração da casa – também se inserem em um gosto de

classe ou seja, como possibilidade restrita à classe abastada.

Difundidos no jornal, tais gostos (e hábitos), ao mesmo tempo em que são reconhecidos também podem ser aprendidos; passam a ser aspirados, inserindo-se na dialética da distinção proposta por Bourdieu. Nesse sentido, tantos os estilos de vida quanto a difusão de um determinado papel feminino – que os textos de Rui passam a corroborar – mostram-se como construções, marcas que produzem e mantêm fronteiras sociais.