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1. DESENHANDO RUI SPOHR

1.7 Doris, a companheira de trabalho e de vida

Ao contrário do que faz pensar, Dóris nunca foi modelo de Rui. Foi sim primeira-assistente e, após o casamento, tornou-se uma espécie de executora: começou por se ocupar da organização do ateliê de costura e depois se tornou gestora da marca.

Em suas memórias, Rui diz que enxergou em Doris “aquilo que tem dentro de si e vai além da aparência", que ela sempre foi, além de uma figura extremamente agradável, "uma mulher elegante, chique e com gestos bonitos". Resumiu: "Isso nela é inato: o extremo capricho com as coisas, o ser e estar sempre bem arrumada.”93

Rui exalta também o gosto que Doris tem pela música e sua facilidade com os números – que fez com que dominasse, num primeiro momento, a parte técnica do processo de construção das roupas e, mais tarde, a parte administrativa da empresa, que assumiu plenamente.

O encontro do casal se deu em 1956, quando Rui procurava por alguém que pudesse ajudá-lo na produção de chapéus. Doris se apresentou no ateliê com um vestido rodado, feito por ela mesma, como contou à jornalista Mariana Bertolucci:

Cheguei aqui e já costurava a minha roupa. Essa coisa já me fascinava

. Isso já me encantava. Naquela época, as mulheres terminavam o ginásio e tinham que se casar, não trabalhar [...] Me arrumei toda e fui. A amiga da minha mãe [que teria indicado Doris à Rui] ainda disse: ‘Tu vais bem arrumadinha que um dia tu ainda podes casar com ele’. Eu pensei: ’Ela tá louca.’ Estava esperando um alemão, loiro, grande. Aí vem aquele cara magrinho, todo existencialista, de preto. Isso não existia por aqui, só em fotos e reportagens da revista O Cruzeiro. De óculos pretos, cabelos bem pretos, me disse: ’Tu sabes fazer chapéu?’ Levou um ano sem me pagar um tostão. Meu pai dizia: ‘Minha filha, ao menos o dinheiro do bonde’. Em 1958 noivamos, era para casar em 1959, acabamos casando em 1960. Pintamos nosso apartamento e começamos nossa vida. 94

Sobre o mesmo evento, em suas memórias, Rui comentou:

Uma moça sentada no sofá, numa pose que, se não era natural, era muito bem estudada. O vestido bem rodado, esparramava sua saia ampla pelo

93

SPOHR, Rui. VIEGAS-FARIA, Beatriz. Memórias alinhavadas. Porto Alegre: Ed. Artes e Oficios, 1997, p. 143

94

acento. A moça, sentadinha bem no meio do sofá, perninha cruzada, trajava com desenvoltura aquele vestido [...] Cabelinho curto à la Doris Day, era de modo típico a garota de seu tempo. 95

O namoro começou por carta. Durante uma viagem ao Rio de Janeiro, Rui adoeceu, prolongando a estadia em terras cariocas e ficando sob cuidado de amigos. No relato desse episódio, novamente a Madame Cuja Dita é trazida à cena: Rui atribui a doença – e uma série de imprevistos – ao terno de alpaca que usava, presente de Mary Steigleder por ter sido mencionada em sua coluna do jornal A Hora: "'Este certamente será teu primeiro terno num verdadeiro tecido de categoria'", teria escrito no bilhete que acompanhou o terno "mau agourado". Rui conta: “ficou muito bonito, e nas únicas três vezes que usei a bendita roupa quase morri – literalmente”. 96

Doris nasceu Doris Uhrl, em 08 de março de 1938, no Bairro Floresta, em uma família alemã tradicional, de orientação luterana. Fez seus estudos no colégio Farroupilha, na primeira turma mista da instituição. Começou a trabalhar aos 14 anos porque o pai adoeceu. Foi quando aprendeu a costurar com uma vizinha, que depois a indicou para a vaga de assistente de Rui.

Para o casamento com Rui, tornou-se católica e usou um vestido criado por ele: “curto, de gorgorão branco, simples e lindo, algo inusitado. Com grinalda, um laço estilizado prendendo um longo véu que arrastava em cauda”. A cerimônia aconteceu na manhã do dia 04 de fevereiro de 1960.

Em um perfil elaborado pelo jornal Diário de Notícias, em 1964, para o qual posou com a filha Maria Paula, Doris é apresentada como a “eminência parda” da moda gaúcha: mulher que “não admitiria a sua vida sem trabalho, mas admite perfeitamente uma realização total da mulher no casamento e na maternidade: ‘Esse não é o meu caso, considero a maternidade como uma complementação.”

O texto segue dizendo que “o trabalho de Doris está ligado diretamente ao ateliê de costura: ‘Procuramos criar nós mesmos nossas auxiliares. Gosto se educa e elas passam a integrar a equipe que Rui e eu iniciamos.” Por fim, conclui que “o Rui,

95SPOHR, Rui. VIEGAS-FARIA, Beatriz. Op. cit. p.142 96

que as mulheres conhecem, a quem as elegantes recorrem, tem em Doris a outra parte de si mesmo.”97

De fato, Rui atribui a Doris papel central em sua transformação de chapeleiro em costureiro. Foi ela quem, a partir do material trazido por ele da França, organizou o ateliê de costura e estabeleceu uma metodologia de trabalho. A mulher de negócios “responsável por um estabelecimento com quase 40 empregados”98, porém, só apareceu de fato na década de 1990. Apesar da posição de gestora, os discursos produzidos acerca de sua posição acabavam por atentar para a situação de “esposa que trabalha ao lado do marido” – e como gerenciava tal convivência.

A jornalista Celia Ribeiro traça seu perfil, apresentando-a em seu novo cargo: “casada com o estilista Rui, Doris Uhrl Spohr há muitos anos é responsável pela parte de produção e assessoria de criação dele, desenvolvendo o seu corte em uma projeção do prêt-à-porter, em cima da alta-costura. Hoje ela é administradora da empresa.” 99 Nesse mesmo texto, Doris apontou Zélia Cardoso de Melo, a então ministra do governo Fernando Collor e primeira mulher a ocupar o cargo máximo do Ministério da Fazenda, como exemplo de mulher moderna. Disse: “sabe se vestir e sabe se portar; é uma grande profissional também”. 100

O elogio à ministra como profissional de grande responsabilidade que também sabe se fazer um modelo de elegância não foi em vão: reforçava o novo papel que Doris passara a desempenhar, de administradora da empresa que levava o nome do marido. Além disso, vale mencionar que a transição de função se deu por questões financeiras, que envolveram disputas familiares101. O comprometimento de Doris, assim como a ideia de ter “uma cabeça ótima para números”102– exigência da

97

“A ‘eminência parda’ da moda gaúcha: Doris Spohr”. Jornal Diário de Notícias, 26 de janeiro de 1964. 98

SPOHR, Rui. VIEGAS-FARIA, Beatriz. Memórias alinhavadas. Porto Alegre: Ed. Artes e Oficios, 1997, p, 143

99

RIBEIRO, Célia. Doris Spohr, auto-respeito que se reflete em visual impecável. Zero Hora, 30 de setembro de 1990, Revista ZH.

100 Idem. 101

Estas questões familiares envolvem o irmão de Doris que trabalhou na gestão da empresa até os anos 1990. Os motivos da disputa-e fatos decorrentes dela- são um silêncio encontrado na pesquisa. 102 SPOHR, Rui. VIEGAS-FARIA, Beatriz. Memórias alinhavadas. Porto Alegre: Ed. Artes e Oficios, 1997, p.155

contabilidade, mas também dos traçados de moldes para costura – ajudava a afastar rumores sobre as finanças da empresa.

O perfil traçado por Ribeiro não deixa de lado o papel de esposa que se ocupa das tarefas da casa. Ao descrever a rotina do casal, o texto ressalta hábitos domésticos bastante comuns aos casais da época: “ao meio dia voltam para o Cristal, para almoçar em casa e descansar. É tempo de olhar o jardim, ver os cachorros e organizar a casa ainda que aos sábados tenha feito todas as determinações para a semana. Supermercado? Ela mesma faz à noite.” 103

Em 1993, Rui e Doris, ao lado de outros dois casais, aparecem em uma reportagem sobre comportamento feita pela jornalista Maria Luisa Paim Teixeira, que então diz: “salário e contas bancárias não bastam para ter poder: as mulheres conquistaram a independência financeira, mas quem decide ainda é o marido”104. O texto considera que, apesar dos avanços dos costumes, a evolução dos papéis de homens e mulheres é lenta. “O fato de ter um salário e uma conta bancária não conferiu as mulheres tanto poder quanto se esperava”105, conclui.

Enquanto o primeiro casal – um fotógrafo e uma publicitária, casados há dez anos – se esforça para não deixar que “o dinheiro perturbe o relacionamento”, o segundo, formado por um engenheiro e uma psicóloga juntos há quase nove anos, “dribla a inflação administrando bem o orçamento doméstico”, fazendo balanços e estimativas de despesas. Nesse cenário, o casal Spohr, que à época contava 34 anos de casamento, é descrito por sua harmonia em conciliar trabalho e interesses pessoais. Reforça a jornalista: “o casal tem contas bancárias separadas, contas individuais e divide as despesas”.

O texto ainda atribui a Rui as tarefas de criação e marketing, enquanto Doris é responsável pela produção e administração. Apesar de não tratar do universo da moda e evidenciar aspectos da vida íntima do casal, Rui ocupa o posto de “criativo”, tendo a moda como um fruto de inspiração; Doris, novamente, vê reforçado o papel de

103

RIBEIRO, Celia. Rui novamente em Porto Alegre. Magazine A Hora, 10 de março de 1957. 104

TEIXEIRA,Maria Luisa Paim. Os casais e o dinheiro. Zero Hora, 28 de novembro de 1993, Caderno Donna.

105 Idem

administradora: a sintonia necessária para o bom funcionamento da empresa e do êxito financeiro do casal.

Como observa Michelle Perrot, a moda é um código ao qual convém submeter- se: a partir das roupas, “a memória das mulheres é trajada”. Complementa dizendo que “uma mulher inscreve as circunstâncias de sua vida nos vestidos que ela usa, seus amores nas cores de uma echarpe ou na forma de um chapéu. Uma luva, um lenço, são para ela relíquias”.

A autora, quando escreve, se detém às dinâmicas do século XIX. Mas, se considerarmos a forte ligação do uso moda – e do fazer das roupas – ao universo feminino, assim como a prevalência dos papéis de mãe e esposa às mulheres da geração de Doris, é possível dizer que seu encontro com Rui lhe permitiu ainda mais. Ao ser coadjuvante do processo criativo do marido e detentora de todo o conhecimento administrativo da marca, a moda deixou de funcionar para Doris apenas como código de aparência. Tornou-se um espaço de invenção de si, fazendo-a realizar- se através da profissão.

Além disso, é por iniciativa de Dóris que toda a trajetória de Rui se encontra ricamente organizada e catalogada. Como uma espécie de guardiã da memória da carreira do marido, anotou datas, guardou agendas, pastas, revistas e roupas, tornando possíveis registros para a posteridade.

Essa preocupação – possivelmente fruto de uma mentalidade de “guardar hoje para ter amanhã” – a transformou em uma espécie de partícipe de uma prática que Philippe Artières chama de “intenção autobiográfica”. Para Artières, as práticas de selecionar e armazenar “vestígios de nossa existência” colaboram para um arquivamento do eu, uma maneira de construir a si mesmo e também de resistência; de contrapor à imagem social a imagem íntima de si próprio. Ao arquivar-se, o indivíduo estaria em busca de controle sobre sua vida e sobre suas perdas, uma consequência da passagem do tempo: “devemos manter arquivos para recordar e tirar lições do passado, para preparar o futuro, mas sobretudo para existir no cotidiano”.106

106

ARTIÉRES, Philippe. Arquivar a própria vida. Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, p. 9 – 34, jul. 1998. ISSN 2178 – 1494. Disponível em:

Ou seja, ao colaborar com a organização dos discursos acerca de Rui, Doris também construiu a si própria. No processo de arquivamento, a imagem social do costureiro – que se contrapõe à sua imagem íntima – torna-se representativa do casal.

Nos inúmeros retratos de Rui e Doris, é possível perceber que se fazem fotografar lado a lado, ou ainda em atitude carinhosa, de maneira a reforçar a harmonia. Nas fotografias que celebram o noivado, feitas por Schilleininger Jr., Doris veste um vestido “gala curto”, adequado à dança e também à etiqueta dos bailes. O vestido de noiva, igualmente curto, tem um ar de jovialidade e lembra o usado pela atriz Audrey Hepburn no filme Funny Face (1957), feito por Hubert de Givenchy. (Figura 13).

Figura 13 - Rui e Doris Spohr. Registro de noivado feito por Schlleininger Jr.,1959.

No musical, Hepburn interpreta uma aspirante a modelo que, em viagem a Paris, envolve-se com um fotógrafo de moda famoso, interpretado por Fred Astaire. O enredo inspirado no universo da moda e os figurinos de alta-costura, somados a endereços icônicos da cidade – como o Museu do Louvre e o Arco do Triunfo – reforçam a retomada de Paris como grande centro irradiador de tendências no pós- guerra.

De volta a Porto Alegre: os registros do casamento e Rui e Doris também ficaram a cargo de Schilleininger Jr., em imagens que mostram posturas estudadas, que ajudam a construir uma imagem pública. Uma das fotografias que integra o álbum integrou a exposição dos 40 anos de carreira de Rui. Foi colocada ao lado a de uma imagem atual, como forma de celebrar os 36 anos de união. (Figuras 14 e 15)

Figura 14 - Registro do album de casamento de Rui e Doris Spohr. Schilleninger Jr. 1961.

Figura 15 - Rui e Doris Spohr. 1995.

Fonte: Acervo Rui Spohr.

Mas, talvez, a série de fotografias mais célebre seja aquela realizada por Assis Hoffmann na Praia do Rosa (SC), no ano de 1979. Nela, além de registros inusitados de Rui no mar vestido de smoking ou com o torso nu e grandes óculos de sol – criando uma espécie de narrativa – o casal simula um flerte que termina em abraço. Vistos à distância, parecem formar um só corpo. (Figura 16)

Figura 16 - Rui e Doris em série de Assis Hoffmann,1979.

Fonte: Acervo Rui Spohr.