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1. DESENHANDO RUI SPOHR

1.6 Mary Steigleder, a Madame Cuja Dita

Em seu relato autobiográfico, Rui assinala de maneira explícita que Mary Steigleder79 teria sido a grande antagonista de sua carreira. No livro, a rival recebe a alcunha de Madame Cuja Dita.

O que o texto não evidência é que a trajetória de Rui assemelha-se muito à de Steigleder. Filha de imigrantes alemães, nasceu em 1909 e iniciou a carreira fazendo chapéus, como assistente, em um atelier na Rua da Praia. Passou a ter um endereço próprio após se casar com Sylvio Steigleder, aos 21 anos. Mary foi descrita nas memórias de Nilo Ruschel como a “jovem elegante e bonita que tinha coragem de confiar à propaganda pelo rádio a elegância de suas criações em chapéus”80.

Calcada no prestígio como chapeleira, passou a confeccionar roupas sob- medida nos anos 1950, instalando-se em um casarão na Av. Independência – misto de loja e residência. Nesse endereço, fazia-se fotografar em ambientes com decoração rebuscada. (Figura 12)

79 Os poucos registros sobre a vida e carreira de Mary Steigleder são fornecidos, especialmente, pela jornalista Célia Ribeiro, que foi sua cliente e amiga. Liliam Steigleder Meneghetti chegou a dar continuidade a marca da mãe, com roupas-sob medida. Os registros encontrados- além dos textos produzidos por Ribeiro- são compostos por notas sociais e também por um site, mantido por Alfredo Meneghetti Neto- neto de Mary- que carece de fontes. Ao longo da pesquisa, foram identificadas algumas clientes de Mary, que ainda mantém seus modelos, o que permitiria um estudo futuro, mais aprofundado sobre sua trajetória.

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Figura 12 - Mary Steigleder em frente ao seu retrato. Sem data.

Fonte: Flickr Alfredo Meneghetti Neto.

Em 1985, Mary não resistiu a uma pneumonia, decorrência do estado de saúde debilitado após uma cirurgia. Ao escrever o obituário da chapeleira-costureira, a jornalista Célia Ribeiro, que também era sua cliente, evoca o carisma de Mary:

Mary Steigleder deu ao Rio Grande do Sul a dimensão do chic europeu desde o tempo que era só chapeleira e tinha atelier na Andradas. Subia-se uma escada num espaço com divisórias de madeira escura atapetado de veludo. Mary recebia suas clientes. Já naquela época ela exercia a influência de seu carisma. Todas as clientes ficavam encantadas com a sua beleza e o modo como se tornava manequim de seus próprios chapéus [...] como menina, extasiada, assisti a essa cena várias vezes, minha mãe como cliente de Mary.81

81

O texto de Célia Ribeiro ainda destaca as viagens regulares de Mary a Paris e seu reconhecimento no centro do Brasil: “Viajava muito: fazia compras em São Paulo várias vezes ao ano, e em Paris se reciclava assistindo desfiles e percorrendo lojas. [...] em São Paulo e no Rio chamavam-na carinhosamente de ‘Mary Porto Alegre’”.82

Steigleder era uma referência de elegância na cidade. O jornal A Hora, em 1958, a insere na lista das “Dez personalidades que fazem notícia no mundo feminino”. O texto destaca a “elegância incomparável” e a “beleza clássica” de Steigleder, lembrando que já fora uma das “Dez mais elegantes do Brasil”, na lista organizada por Ibrahim Sued – o que a tornou “sinônimo de chiquismo, atualidade e bom gosto”. Sobre sua atuação profissional, a nota dizia: “Mary possui uma das melhores casas de moda do Brasil e acaba de chegar da Europa a fim de adquirir modelos autênticos para si e para sua freguesia.”83

A jornalista Tânia Carvalho84 comenta a existência de outra Mary, a Mary Kramer, que em seu atelier na rua Dr. Flores copiava os chapéus da primeira. O fato gerou uma espécie de piada entre as clientes que, ao ouvir que alguém usava um chapéu “da Mary”, perguntava se o modelo tinha sido feito pela “Mary rica” (Steigleder) ou pela “Mary pobre” (Kramer). Ainda nas palavras de Célia Ribeiro: “Mary Steigleder não foi uma estilista, mas sim uma grande costureira voltada para o luxo e a qualidade das roupas, sob inspiração parisiense. Mantinha-se sempre atualizada, viajando anualmente a Paris e, Menna Fialla, da Casa Canadá, do Rio, foi uma grande amiga”85.

O embate com Rui, descrito em suas memórias como uma “declaração de guerra”, ocorreu logo depois de seu primeiro desfile em Porto Alegre, em 1955, no Cotillon Club. Mary, conduzida pela jornalista Gilda Marinho, teria criticado um dos

82 IDEM. 83

Jornal A Hora, 18 de maio de 1958.

84 Lembrada por ter estado à frente da edição local do programa Jornal do Almoço, da RBS TV (sucursal da Globo no Rio Grande do Sul e Santa Catarina), Tânia Carvalho também foi âncora e apresentadora de diversos programas de televisão e rádio, falando sobre variedades e sobre o universo feminino. Cliente de Rui em diversas ocasiões– como no casamento dos filhos– Tânia foi entrevistada em dezembro de 2017.

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chapéus apresentados por Rui sem saber que se tratava de um modelo original de Jacques Fath. O encontro teria terminado com uma ameaça, conforme Rui relata em suas memórias:

– Você vai vencer, mas enquanto eu for viva vai ter de enfrentar a minha guerra.

E guerra foi. Não fomos só “inimigos íntimos”, como mais tarde definiria a revista Manchete, mas inimigos declarados. Minha desvantagem foi ficar só na defesa, pois minhas únicas armas eram a minha cabeça, minha juventude, minha garra e uma vontade louca de mostrar meu talento e minha capacidade. [...] Recusei-me a entrar no jogo dela. Mas a guerrinha particular da Mme. Cuja Dita continuou, mesmo sem a minha contribuição.” 86

Retomando-se o arcabouço teórico de Pierre Bourdieu, a disputa que se instala ajuda a compreender o jogo entre dominantes e recém-chegados no campo da moda local. No cenário porto-alegrense, Mary Steigleder representava o poder dominante. Suas estratégias de manutenção de poder no campo constituíam-se, além do seu bom gosto pessoal, periodicamente estampado nas colunas sociais dos jornais da época, pela parceria que garantia a recriação de modelos “legítimos”, ou seja, mediando objetos já consagrados por assinaturas de criadores de moda prestigiados na época.

Porém, cabe lembrar que havia outros atores em ação nesse campo, como sugere o texto de Luis Carlos Lisboa, na Revista do Globo:

Nem só no Rio e em São Paulo aparecem os figurinistas que dirigem a Moda Brasileira. Porto Alegre é também um grande centro de elegância, e as mulheres gaúchas seguem à risca as ordens de seus modelistas. Poderei citar vários nomes como o da Sra. Mary Steigleder [...] Martinez (residindo em São Paulo que faz anualmente uma temporada na capital gaúcha) e Rui. 87

Hugo Martinez, reconhecido pelo desenho habilidoso, poderia ser citado ao lado de nomes como Dyrson Cattani ou ainda Luciano Baron, todos contemporâneos

86

SPOHR, Rui. VIEGAS-FARIA, Beatriz. Memórias alinhavadas. Porto Alegre: Ed. Artes e Oficios, 1997, p.111

87

de Rui88. Porém, ao colocar-se como um jovem de “vontade louca”, reivindica o posto de recém-chegado que não se intimida.

Em “O costureiro e sua grife”, Pierre Bourdieu e Yvette Desault situam os dominantes nos espaços antigos e consagrados da rive droite e os recém-chegados à

rive gauche. Aos primeiros, cabem as estratégias de conservação de seu capital

simbólico, já aos situados à gauche, a subversão.

Se, guardadas as proporções, cenário semelhante fosse passível de ser reproduzido na Porto Alegre de 1950, nesse jogo de droite e gauche Rui parece decidido a posicionar-se como vanguarda – apesar de suas estratégias especialmente calcadas na alta-costura e na tradição parisiense soarem conservadoras.

Ao longo da carreira, Rui acaba por simbolizar uma renovação da droite local, onde suas inovações e ousadias não chegam a ser subversivas, reforçando o jogo: “os recém chegados, à semelhança do que ocorre no boxe com o desafiante, fazem o jogo. Os dominantes agem sem risco: não tem necessidade de recorrer a estratégias de blefe ou enaltecimento que são outras tantas maneiras de confessar sua fraqueza”.89

As memórias de Rui reforçam a memória de Mary Steigleder. Na ânsia de “vencer”– e demonstrar seu posto de “vencedor”–, acabou por incorporar à narrativa pessoal o impacto da costureira, e talvez esta tenha sido sua maior contribuição ao não esquecimento dela. Ao despertar o interesse pela figura da “inimiga”, Rui passa a contribuir também ao enquadramento da memória de Mary, construída a partir dos seus relatos e do seu ponto de vista.

Em seu livro, Rui afirma que Mary fazia parte de um “esquema” de cópia de modelos, com “uma modista de São Paulo e outra do Rio de Janeiro” (possivelmente Madame Rosita e Menna Fiala) que “monopolizavam o serviço de atendimento em moda às mulheres mais ricas do Brasil”. Sobre o tema, afirma Rui: “De que forma? Elas

88 Dyrson Cattani acabou se destacando por sua atuação relacionada ao Carnaval. Ver NORONHA, Renata Fratton, CAVEDON, Diego Dias. Uma inserção no universo particular de Dyrson Cattani. Revista IARA, vol. 5, n.2, 2012 p. 253-268. Já Luciano Baron, conforme o jornalista Paulo Gasparotto, é filho de imigrantes italianos e foi aprendiz do pai, que era alfaiate. Ao lado da esposa Scheila passou a

confeccionar roupas femininas, seguindo a alfaiataria italiana. 89

BOURDIEU, Pierre. DESAULT, Yvette. O Costureiro e sua grife IN: BOURIDEU, Pierre DELSAUT, Yvette. A produção da crença: contribuição para uma economia dos bens simbólicos. São Paulo: Ed. Zouk, 2002.p.119

compravam, em partes ou em conjuntos (o que hoje certamente chamaríamos de ‘kits’) cópias pirateadas, cópias de modelos de moldes franceses”90.

O mesmo fato é citado pelo autor João Braga no livro escrito com Luis André do Prado, onde apresentam uma história da moda do Brasil. Ao utilizar a biografia de Rui como fonte, os autores terminam por cristalizar a imagem de Mary Steigleder como “copista”, assim como tendem a evidenciar a rivalidade entre ambos: “Em Porto Alegre, apareceu Rui [...] para desbancar a hegemonia da maison de Madame Mary Steigleder, que reinava absoluta, seguindo a fórmula da venda de cópias de modelos franceses.”91

Entre os antagonistas de Rui, há ainda espaço para a jornalista Gilda Marinho. Além de ser próxima de Mary Steigleder, Gilda teria sido a responsável pelo desuso definitivo dos chapéus em Porto Alegre.

Rui diz que, em 1958, Gilda Marinho decretou o fim do uso do chapéu e, de repente, o acessório não mais interessava às elegantes porto-alegrenses. Nessa época, Gilda já era considerada uma referência, especialmente em assuntos femininos. É lembrada como figura excêntrica que “desfilava na redação seus chapéus” e usava “a máquina de escrever como um piano, dedilhando as teclas sem macular o esmalte rubro de suas unhas longas”92.

Parece pouco provável que Gilda tenha sido protagonista no processo de declínio do uso do chapéu, apesar de ter atuado como colunista social. A afirmativa de Rui soa muito mais como tentativa de aproximá-la à Steigleder, transformando-a em mais uma vilã dessa “guerra de agulhas”. A anedota, ao ser levada adiante, acaba por constituir-se em mais uma camada no processo de construção de uma imagem mitológica de Gilda Marinho.

90

SPOHR, Rui. VIEGAS-FARIA, Beatriz. Memórias alinhavadas. Porto Alegre: Ed. Artes e Oficios, 1997, p.125

91

BRAGA, João; PRADO, Luís André. História da moda no Brasil: das influências às autorreferências. São Paulo. Ed. Pyxis, 2011 p.239

92 Conforme relato de Celia Ribeiro ao jornalista Lauro Schirmer In: SCHIRMER, Lauro. A hora: uma revolução na imprensa. Porto Alegre Ed. L&PM, 2000