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A busca da verdade real e o processo de vitimização secundária

Vítima é aquele indivíduo que sofre ou foi agredido de alguma forma por uma infração criminal praticada por um agente.

Para Ribeiro (2001), “a vitimologia pode ser definida como o estudo científico das vítimas no que se refere à sua personalidade, seja do ponto de vista biológico, psicológico ou social, (...) a sua proteção social e jurídica, bem como sua relação com o criminoso”. (RIBEIRO, 2001).

A falta de atenção com a vítima ou o seu abandono no processo penal causa o fenômeno conhecido como “sobrevitimização” ou “vitimização secundária” que é o dano adicional causado à vítima de crime ocasionado pela própria mecânica da justiça penal em busca da verdade real.

Para Rogério Greco, “a conduta de violentar uma mulher, forçando-a ao coito contra sua vontade, não somente a inferioriza, como também a afeta psicologicamente, levando-a, muitas vezes, ao suicídio”. (GRECO, 2010, p.581).

A vítima ao procurar a polícia é por vezes tratada como objeto de investigação e não sujeito de direitos, ocasionando assim a violações inerentes à dignidade da pessoa humana (art.1º, III,

da CF). Isso por muitas vezes ocasiona o desinteresse da vítima a procurar a polícia judiciária, ocasionando a denominada cifra negra, como exemplifica Rogério Greco.

A sociedade, a seu turno, tomando conhecimento do estupro, passa a estigmatizar a vítima, tratando-a diferentemente, como se estivesse suja, contaminada com o sêmen do estuprador. A conjugação de todos esses fatores faz com que a vítima, mesmo depois de violentada, não comunique o fato à autoridade policial, fazendo parte, assim, daquilo que se denomina cifra negra. (GRECO, 2010, p.581).

Para Ricardo Antonio Andreucci:

É inegável que a vítima sofre inúmeras conseqüências (físicas, morais, psicológicas, emocionais, patrimoniais etc) em decorrência do crime, não havendo praticamente nenhuma disposição legal que a ampare efetivamente, que lhe forneça assistência psicológica, médica, jurídica e material, ocorrendo, não raras vezes, isso sim, um verdadeiro incentivo a que permaneça no anonimato, não buscando as autoridades, até por receio da chamada vitimização secundária.(ANDREUCCI, 2016).

Para Carvalho e Lobato “juízes, promotores de Justiça, defensores públicos, advogados, delegados de polícia e demais servidores da Justiça devem ter noções de psicologia para melhor tratar as vítimas, bem como, tendo o auxílio dos profissionais da área do Serviço Social e da Psicologia” (CARVALHO e LOBATO, 2008).

Luiz Flávio Gomes e Mollina em sua obra discorrem:

O abandono da vítima do delito é um fato incontestável que se manifesta em todos os âmbitos: no Direito Penal (material e processual), na Política Criminal, na Política Social, nas próprias ciências criminológicas. Desde o campo da Sociologia e da Psicologia social, diversos autores, têm denunciado esse abandono: O Direito Penal contemporâneo – advertem – acha-se unilateral e equivocadamente voltado para a pessoa do infrator, relegando a vítima a uma posição marginal, no âmbito da previsão social e do Direito civil material e processual (GOMES; MOLINA, 2000, p.73).

Vale destacar que a Lei nº 11.690/08 alterou diversos dispositivos do Código de Processo Penal e inovou ao valorizar a vítima no processo penal dispondo que a vítima será comunicada dos atos processuais em relação ao ingresso e a saída do acusado da prisão (art. 201 § 2º); as comunicações ao ofendido deverão ser feitas no endereço por ele indicado ou por meio eletrônico ( § 3º, do art. 201); espaço reservado para a vítima antes do início da audiência e durante a sua realização ( § 4º, do art. 201).

Prevê ainda o encaminhamento do ofendido, caso necessário, para atendimento multidisciplinar nas áreas psicossocial, de assistência jurídica e de saúde, a expensas do ofensor ou do Estado (§ 5º, do art. 201) e as providências necessárias à preservação da intimidade, vida privada, honra e imagem do ofendido, podendo, inclusive, determinar o segredo de justiça em relação aos dados, depoimentos e outras informações constantes dos autos a seu respeito para evitar sua exposição aos meios de comunicação (§ 6º, do art. 201). A recente lei nº 13.718, de 24 de setembro 2018, trouxe profundas alterações na parte processual penal, a respeito da modificação na redação do art. 225 do CPP, em que agora a ação penal será pública incondicionada para todos os casos (antes a regra geral era que fosse condicionada à representação da vítima e incondicionada nos casos de vulnerabilidade).

Para Aury Lopes Júnior (2018), a aparente ampliação proteção à vítima tornando a ação penal pública incondicionada, menosprezou a capacidade de decisão da vítima maior e capaz e ao impô-la a ação penal nestes casos acabaria por gerar uma revitimização. Conforme segue:

Neste ponto penso que andou mal o legislador e, ao aparentemente ampliar a proteção da vítima (maior e capaz), o que fez foi menosprezar sua capacidade de decisão, escolha e conveniência. Penso que a exigência de representação para vítimas maiores e capazes, por ser um ato sem formalidade ou complexidade, mas que assegura à vítima o direito de autorizar ou não a persecução penal, é um ato de respeito ao seu poder decisório, importante neste tipo de delito, em que a violência afeta diretamente sua intimidade e privacidade, além da liberdade sexual. (LOPES JÚNIOR, 2018).

Em suma, pode-se afirmar que a vítima, durante muito tempo, foi esquecida e não lhe foi dada a importância devida, mas inovações no ordenamento pátrio já demonstram um avanço para a devida atenção com as vítimas de crimes sexuais.

5 A PALAVRA DA VÍTIMA COMO FONTE DE PROVA NOS CRIMES SEXUAIS

O estupro se houver penetração vaginal ou anal é uma infração penal que deixa vestígios, portanto, nos termos do art. 158 do Código de Processo Penal, haverá a necessidade de submeter-se ao exame de corpo delito, direto ou indireto.

O exame de corpo delito é tão importante que não pode ser suprido nem mesmo pela confissão do acusado, só se admite como alternativa neste caso o denominado corpo de delito indireto.

Não prospera a alegação de que a ausência de exame de corpo de delito impede o reconhecimento da configuração do delito de estupro, portanto não implica em nulidade absoluta do processo, conforme segue:

"[a] A palavra da vítima, em sede de crime de estupro ou atentado violento ao pudor, em regra, é elemento de convicção de alta importância, levando-se em conta que estes crimes, geralmente, não há testemunhas ou deixam vestígios" (STJ, HC 135.972/SP, 5.ª Turma, Rel. Min. FELIX FISCHER, DJe de 07/12/2009).

O STJ novamente reitera o seu posicionamento que a ausência do exame de corpo de delito não implica em nulidade do processo “a ausência do exame de corpo de delito, no crime de estupro, não tem o condão de configurar nulidade absoluta do processo, pois segundo o ministro relator do HC supramencionado, a falta da prova técnica não é a única capaz de atestar a materialidade das condutas, portanto a ausência do exame de corpo delito não impede a propositura da ação penal, haja vista a possibilidade de ser suprido pelo depoimento de testemunhas. Precedentes do STJ. (STJ – AgRg no AREsp: 272952 DF 2012/0271024-4, Relator: Ministro Campos Marques (Desembargador Convocado pelo TJ/PR), Data de Julgamento: 21/03/2013, T5 – Quinta Turma, Data de Publicação: DJe 26/03/2013.

Dessa maneira, o STJ possui entendimento no sentido de que a ausência de exame de corpo de delito nos crimes de estupro e atentado violento ao pudor não enseja nulidade do processo, se existirem nos autos outros elementos aptos a comprovar a materialidade e autoria do crime.

Dessa maneira, nos demais casos o exame de corpo de delito é imprescindível, mas nos crimes contra a dignidade sexuais mesmo não desaparecidos os vestígios a ação penal não é declarada nula.

Embora o estupro, se houver conjunção carnal ou sexo anal, se encontre no rol das infrações penais que deixam vestígios, exigindo como regra, a realização do exame de corpo delito na vítima, para Rogério Greco (2010) “a análise do caso concreto é que determinará essa necessidade, podendo tal regra ser excepcionada”. (GRECO, 2010, p. 599).

Em suma, “o corpo de delito são os vestígios materiais deixados pelo crime. Exame de corpo de delito é o exame técnico da coisa ou pessoa que constitui a própria materialidade do crime”. (LOPES JR, 2014).

Já o “exame direto é quando a análise recai diretamente sobre o objeto, uma relação imediata entre o perito e aquilo que está sendo periciado”. O exame indireto “é quando impossível de ser feito o exame direto, por haverem desaparecido os vestígios do crime, a prova testemunhal, filmagens, fotografias, áudios, podem supri-lhe a falta. (LOPES JR, 2014).

É importante destacar que a regra é o exame direto, e somente não o havendo, buscará o indireto que será uma excepcionalidade.

Aury Lopes Júnior adverte que a prova pericial não é “a rainha das provas” no processo penal e que “ uma prova pericial demonstra apenas um grau- maior ou menor- de probabilidade de um aspecto do delito, que não se confunde com a prova de toda complexidade que envolve o fato”. (LOPES JR, 2014).

Preconiza o art. 182 “O juiz não ficará adstrito ao laudo, podendo aceitá-lo ou rejeitá-lo, no todo ou em parte”. (BRASIL. Decreto-lei nº 3.689, de 1941). Além da exposição de motivos do CPP “todas as provas são relativas; nenhuma delas terá, ex vi legis, valor decisivo, ou necessariamente maior prestígio que outras”.

A Exposição de Motivos do CPP, em relação a confissão diz que “ a própria confissão do acusado não constitui, fatalmente, prova plena de sua culpabilidade”.

Pelo exposto, considerando o sistema adotado pelo ordenamento processual penal, o livre convencimento motivado ou persuasão racional, em que cabe ao juiz formar sua convicção pela livre apreciação da prova, sendo que nenhuma prova tem maior valor ou prestígio que as demais, em se tratando de crimes sexuais, conforme orientações jurisprudenciais, a palavra da vítima tem grande relevância, podendo suprimir, inclusive, a nulidade por falta do exame de corpo de delito.