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A capacidade contributiva e a proteção ao mínimo vital

No documento O estatuto do contribuinte no estado social (páginas 100-105)

4. UMA RELEITURA DO PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA

4.7 A capacidade contributiva e a proteção ao mínimo vital

Outro instituto jurídico que vem recebendo bastante atenção da doutrina é aquele relativo ao mínimo vital ou mínimo existencial ou ainda mínimo de existência digna. A doutrina constitucional, em especial aquela mais dedicada ao estudo dos direitos fundamentais tem trabalhado na construção de um conceito segundo o qual, cada indivíduo teria, por sua condição de ser humano, o direito à proteção de um núcleo mínimo de direitos e garantias, considerado indispensável para uma vida digna. O mínimo existencial, portanto, é uma noção diretamente vinculada ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Transportado este conceito para o âmbito do Direito Tributário, iniciou-se uma discussão acerca do mínimo imune, ou mínimo isento. Em cotejo com o princípio da capacidade contributiva, o reconhecimento da existência de um mínimo imune consiste em reconhecer a existência de uma proibição constitucional de que seja considerada como expressão de capacidade de contribuir a renda ou patrimônio que sejam suficientes tão somente para satisfazer as necessidades consideradas indispensáveis para garantir uma existência humana digna132.

Neste sentido, a proteção ao mínimo imune está intimamente relacionada ao princípio da capacidade contributiva. Neste mesmo sentido se posiciona Ávila, quando afirma que a capacidade de contribuir inicia somente acima do limite das necessidades para a manutenção da vida133.

Também é justamente neste sentido que boa parte da doutrina tributária fala sobre os limites inferior e superior da zona de capacidade contributiva. O limite inferior da mesma é representado pela proteção ao mínimo existencial, abaixo deste não há que se falar em existência de capacidade contributiva. O limite superior é representado pela

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CHULVI, Cristina Pauner. El deber constitucional de contribuir al sostenimiento de los gastos públicos. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2001, p. 167.

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ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 86. Melhor seria falar em vida digna, e não somente em vida.

proibição ao confisco, qualquer tributação que ultrapasse este limite incide em violação ao direito de propriedade.

Diversos autores defendem que o reconhecimento da existência de um mínimo imune é uma decorrência lógica do Estado de Direito. Assim, pensa Buffon, quando afirma que num Estado que existe em razão do homem, é defeso ao Estado exigir tributos que possam atingir o mínimo essencial a uma existência digna134. Este autor confere ao instituto algumas conseqüências práticas. O mesmo defende: 1) inadmissibilidade do imposto de renda sobre os salários que se revelem insuficientes para cobrir somente as despesas que deveriam estar ao alcance do salário mínimo (art. 7º, IV da CF); 2) inconstitucionalidade da vedação à dedução integral do IR das despesas essenciais, em especial saúde, educação e moradia; 3) inexigência de tributos vinculados dos cidadãos cuja renda mensal seja insuficiente para prover a própria sobrevivência; 4) não incidência das contribuições previdenciárias sobre o salário mínimo.

Ocorre que, embora no plano teórico seja relativamente fácil defender e fundamentar a existência de um mínimo imune, no plano prático se revela extremamente complexo definir os contornos de tal imunidade. Assim, não entendemos recomendável uma extração de conclusões como a acima reportada, sem uma consideração dos aspectos pragmáticos que envolvem as mesmas.

Em primeiro lugar, assumindo o risco da adoção de uma postura que diverge da generalidade da doutrina, não visualizamos uma dedução lógica necessária entre o reconhecimento do mínimo existencial (conjunto mínimo de direitos e garantias que o Estado deve dotar o cidadão, como condição para uma existência digna) e o reconhecimento de uma imunidade implícita consubstanciada no mínimo imune. Não pode haver dúvidas de que é defeso ao Estado considerar como expressão de capacidade contributiva manifestações de riqueza que não ultrapassam o indispensável para arcar com as despesas necessárias a uma vida digna. Mas ocorre que, no modelo do Estado Social, em tese, cabe ao próprio Estado prover o cidadão com o mínimo necessário para tal dignidade. Levado ao extremo, tal raciocínio implicaria numa inexistência de um mínimo de despesas, a serem arcadas pelo próprio indivíduo para a obtenção de uma vida digna. Qualquer manifestação de riqueza ostentada pelo mesmo, em um tal panorama, indicaria um plus, passível, portanto, de tributação. Não afirmamos,

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BUFFON, Marciano. Tributação e Dignidade Humana: entre direitos e deveres fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 181.

entretanto que este seja o caso Brasileiro.

Desde já, o acima exposto serve, no mínimo, para rebater uma afirmativa bastante comum, qual seja, a de que, no modelo do Estado Social o mínimo imune possui uma maior amplitude do que no Estado Liberal, uma vez que, ao reconhecer a existência dos direitos sociais, seria incongruente que o próprio Estado retirasse, através da tributação, os meios materiais necessários para satisfazê-los. Ora, o que o Estado Social faz é justamente assumir o dever de prestar, diretamente, em um patamar mínimo, a satisfação de certas necessidades (educação, saúde, entre outras). Ao fazê-lo, em tese, o Estado Social está retirando do indivíduo a incumbência de, por conta própria, buscar a satisfação de tais necessidades. No Estado Liberal, ao contrário, cabe ao próprio indivíduo buscar a satisfação dessas necessidades, gerando uma maior necessidade de recursos materiais e, portanto, uma tolerância menor à tributação, conforme, inclusive, já foi exposto no início deste trabalho.

Entretanto, via de regra, observa-se uma insuficiência, na prática, da prestação de tais bens pelo Estado, consistindo naquilo que Buffon classifica de sonegação estatal dos

direitos sociais135. Surge então a questão: esta sonegação implica numa ampliação da imunidade ora discutida, trazendo sua solução para o âmbito tributário, ou deve o problema ser resolvido no âmbito do Direito Administrativo, com a responsabilização do Estado pela omissão identificada? Em outras palavras, cabe uma discussão que responda se a omissão estatal gera um direito subjetivo a não ser tributado de forma que impeça uma busca individual pela satisfação dessas necessidades ou se gera um direito à tutela judicial de tais necessidades, ou ainda se gera ambos os direitos mencionados. Não existe espaço no presente trabalho para buscar a resposta desta discussão, entretanto, entende-se que uma referência às conseqüências práticas do reconhecimento do mínimo imune não prescinde da mesma.

Com relação à limitação da dedutibilidade de despesas do imposto de renda, também entendemos que a posição acima mencionada buscou uma resposta simplória para uma questão complexa. No caso da educação, por exemplo, seria defensável afirmar que uma educação de excelência, que inclua o acesso a equipamentos de ponta ou o aprendizado de diversas línguas estrangeiras faz parte de um mínimo existencial? Alguns podem entender que permitir a dedução integral do IR de despesas com educação, ao invés de homenagear o principio da capacidade contributiva, na verdade o viola, uma vez que

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possibilita aos mais abastados o acesso a uma educação diferenciada, não acessível à camada menos favorecida da população. Aliás, esta educação diferenciada, permite uma competição desigual no mercado de trabalho, perpetuando uma situação de desigualdade social. Assim, tal dedutibilidade violaria ainda o princípio geral da igualdade e o objetivo constitucional de redução das desigualdades sociais.

Da mesma forma, a defesa de uma não incidência de contribuições previdenciárias sobre o salário mínimo também precisa enfrentar fortes argumentos em sentido contrário, tanto de ordem teórica como de ordem prática. No plano teórico, é preciso lidar com a questão, reconhecida pelo próprio autor, da mitigação do princípio da capacidade contributiva em relação às contribuições sociais sinalagmáticas. No plano prático, é preciso lidar com questões como a necessidade de manter o equilíbrio atuarial da previdência e as repercussões da transferência do ônus pelo pagamento de tais contribuições a terceiros. Uma transferência desse ônus ao empregador, por exemplo, geraria um forte estímulo ao desemprego e à informalidade. A criação ou majoração de outras contribuições para compensar a perda de receita poderia resultar numa diminuição da competitividade da indústria nacional.

Em suma, ainda há um longo caminho a percorrer entre o plano teórico do reconhecimento a um mínimo imune e o plano prático da dedução das conseqüências desse reconhecimento. Qualquer tentativa de incursão neste segundo plano deve, necessariamente, arcar com o ônus de enfrentar as questões pragmáticas relacionadas, sob pena de configurar ingenuidade ou demagogia.

Chulvi destaca a diferença entre as posições adotadas pela jurisdição constitucional espanhola e italiana, de um lado, e pela alemã, de outro. A autora registra que as cortes constitucionais da Espanha e da Itália adotam posições semelhantes ao reconhecerem a intangibilidade do mínimo vital, mas se negando a assinalar sua medida concreta. O Tribunal Constitucional alemão, por sua vez, tem buscado garantir uma proteção real das situações econômicas mais débeis, ao estabelecer, diante de uma omissão legislativa, limites abaixo dos quais não deve incidir tributação136. Com respeito à dificuldade de fixar concretamente o mínimo imune, a autora entende que é uma valoração que se situa dentro do âmbito de discricionariedade do legislador, que não

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CHULVI, Cristina Pauner. El deber constitucional de contribuir al sostenimiento de los gastos públicos.Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2001. p. 168. V. tb. nota de rodapé 415 na mesma página.

deve ser confundida com arbitrariedade, uma vez que, por um lado, existem critérios que devem inspirar esta valoração, como as necessidades financeiras do Estado e o nível dos serviços oferecidos ao cidadão e, por outro lado, esta quantificação se encontra submetido à revisão do Tribunal Constitucional, quando seja manifestamente insuficiente137.

A defesa doutrinária da proteção a um mínimo imune deve ainda enfrentar o problema relativo aos tributos indiretos. Este enfrentamento exige a resposta a dois questionamentos. O primeiro, saber se tais tributos também são afetados pela referida imunidade. O segundo, no caso de uma resposta afirmativa ao primeiro, como evitar uma violação da imunidade nestes casos.

Em obra destinada ao tema Renato Medrado Bonelli destaca que a doutrina, ao tratar do tema, busca a aplicação desta imunidade quase que exclusivamente ao Imposto de Renda. Entretanto, sustenta que decorre da Constituição sua aplicação a toda e qualquer espécie tributária, inclusive os tributos indiretos138. Critica o que considera uma omissão do legislador brasileiro quanto ao tema, pois, ao estabelecer um mínimo de riqueza isento do imposto sobre a renda, o legislador transmitiu a falsa idéia de que estava garantindo o mínimo imune. Para este autor, não adianta reduzir a carga tributária do indivíduo com relação a apenas um imposto e, por outro lado, onerá-lo com o repasse dos encargos fiscais nos tributos indiretos, sobretudo nos que incidem sobre o consumo. Afirma ainda que a faixa de isenção não foi atualizada por parâmetros sólidos que acompanhassem o padrão médio de custo de vida da população brasileira.139

A seletividade certamente pode funcionar como um instrumento para reduzir o impacto dos tributos indiretos no patrimônio dos menos favorecidos economicamente. Mas não é tão fácil visualizar o mesmo como instrumento suficiente para garantir a não incidência (imunidade) de tributos indiretos.

Registre-se que a Constituição de 1946 trazia em seu art. 15, §1º uma norma referente à questão aqui tratada que não foi reproduzida pela Constituição de 1988, inexistindo nesta qualquer norma de teor semelhante. O referido dispositivo apresentava a seguinte redação: “São isentos do imposto de consumo os artigos que a lei classificar como o

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Ibidem. Loc. cit.

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BONELLI B. T., Renato Medrado. O Estatuto do Contribuinte e a Proteção do Mínimo Imune. Dissertação apresentada para a obtenção do grau de mestre junto à Universidade Federal da Bahia. Salvador: 2012, p. 95.

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mínimo indispensável à habitação, vestuário, alimentação e tratamento médico das pessoas de restrita capacidade econômica”.

A questão, desta forma, ainda se encontra pendente de um tratamento mais apurado, tanto no âmbito doutrinário quanto no âmbito legislativo.

No documento O estatuto do contribuinte no estado social (páginas 100-105)