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O sentido da cláusula sempre que possível

No documento O estatuto do contribuinte no estado social (páginas 82-86)

4. UMA RELEITURA DO PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA

4.2 O sentido da cláusula sempre que possível

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CARRAZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 25ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 93. Nota de rodapé nº 44.

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ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 4ª ed. Saraiva: São Paulo, 2010, p. 396-402.

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Outra divergência doutrinária diz respeito à expressão “sempre que possível” que consta do referido dispositivo. Uma parte da doutrina entende que a referida cláusula aplica-se exclusivamente à obrigação de imprimir caráter pessoal aos impostos. Outra parte entende que a mesma se refere tanto a esta obrigação quanto à obrigação de graduar os impostos conforme a capacidade econômica do contribuinte.

A discussão assume maior relevo quando se constata que, na Constituição de 1946, o art. 202 previu que “os tributos terão caráter pessoal, sempre que isso for possível, e serão graduados conforme a capacidade econômica do contribuinte”. Ou seja, neste texto, claramente se percebe que a cláusula “sempre que possível” se relacionava somente à pessoalidade do tributo. Questiona-se, assim, se a mudança de redação pretendeu alterar este panorama.

Já foi exposta acima a posição do Min. Carlos Velloso, para quem a cláusula citada somente relaciona com o caráter pessoal dos impostos. Esta, aparentemente, é a posição dominante da doutrina, encampando-a, entre outros, Ives Gandra Silva Martins, Hugo de Brito Machado, e Humberto Ávila.

Amaro destoa desta corrente e expressamente consigna sua discordância em relação a Machado e Martins quanto a aplicar-se a cláusula somente em relação à personalização dos impostos98. Na opinião deste autor, a cláusula analisada: “abre campo, precisamente, para a conjugação com outras técnicas tributárias (como a extrafiscalidade), que precisam ser utilizadas em harmonia com o princípio ali estatuído”.

A solução do problema é bastante complexa. Antes de tudo, é preciso lembrar que a generalidade da doutrina parte do pressuposto de que o dispositivo mencionado abriga um princípio. Mas se assim for, correndo-se o risco de contrariar a opinião de todos, há que se chegar à conclusão de que a cláusula “sempre que possível” é totalmente desnecessária e não possui qualquer utilidade prática.

É consenso geral de que os princípios são normas que reclamam uma otimização em conformidade com o âmbito das possibilidades fáticas e jurídicas. Assim, independentemente da cláusula referir-se à personalização dos impostos, à graduação destes de acordo com a capacidade econômica, ou com ambas as obrigações, a retirada da cláusula do texto não implicaria em absolutamente nenhuma conseqüência.

Como princípio a aplicação do dispositivo dependeria, de um lado, das possibilidades

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fáticas. Assim, é evidente que nenhuma violação ao mesmo resultaria da ausência de personalização dos tributos naqueles casos em que a hipótese material de incidência do imposto não leva em conta qualquer característica pessoal do contribuinte (IPI e ICMS). Por outro lado, a aplicação do art. 145, §1º dependeria também do âmbito das possibilidades jurídicas, permitindo que, através da ponderação, outras regras e princípios prevalecessem, afastando obrigação de graduar o imposto conforme a capacidade econômica. É justamente isso que ocorreria no caso dos impostos utilizados com finalidade extrafiscal, quando, por exemplo, impostos aduaneiros gravam mais severamente a importação de produtos nocivos ao meio ambiente.

Imagine-se então a redação do dispositivo, sem a cláusula “sempre que possível”, mantendo a sua natureza de princípio, conforme entende a maior parte da doutrina. Nota-se que a retirada do texto em nada afetaria as conseqüências acima mencionadas. Ocorre que, a existência do referido texto é, justamente, o maior obstáculo à apreensão do preceito citado como uma regra. Isto porque é extremamente complicado defender a impossibilidade absoluta tanto da personalização de qualquer imposto, quanto de sua graduação conforme a capacidade econômica, pelo menos do ponto de vista jurídico. O que existe, é a extrema dificuldade prática de levar esta personalização ou graduação a cabo, o que exigiria da administração fazendária o dispêndio de recursos que, provavelmente, inviabilizaria seu funcionamento. Neste sentido apontam as lições de Aliomar Baleeiro e de José Eduardo Soares de Melo. 99

Vejamos o caso do IPI, tido como exemplo clássico de imposto insusceptível de personalização e de graduação segundo a capacidade econômica. Com efeito, possuímos, no ordenamento brasileiro, norma que configura justamente a personalização do referido tributo, ao estabelecer a isenção de IPI para a aquisição de veículos por portadores de deficiência física (Lei 8.989 de 24 de fevereiro de 1995).

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Da obra de Aliomar Baleeiro se retira a lição de que a cláusula analisada não confere discricionariedade ao legislador, mas, ao contrário, acentua a imperatividade do dispositivo: “Ao contrário, o advérbio acentua sempre o grau da imperatividade e abrangência do dispositivo, deixando claro que, apenas sendo impossível, deixará o legislador de considerar a pessoalidade para graduar os impostos de acordo com a capacidade econômica subjetiva do contribuinte. BALEEIRO, Aliomar. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar. 8. ed. Atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 1097. JOSÉ EDUARDO SORES DE MELO parece concordar com esta premissa ao afirmar: “Como a estrutura da norma tributária sempre revela a intensidade econômica do ônus imputado ao contribuinte, forçoso defluir o entendimento de que sempre é possível apreender o caráter pessoal e a capacidade econômica do contribuinte. O que nem sempre será possível é obter, com absoluta segurança e certeza, o caráter eminentemente pessoal e a exata capacidade econômica. MELO, José Eduardo Soares de. Curso de Direito Tributário. 7. ed. Dialética: São Paulo, 2007. p. 33-34.

No caso do ICMS, muito embora, à primeira vista, seja impossível a construção de um sistema de lançamento que leve em conta as obrigações impostas pelo art. 145, §1º da CF, parece factível a construção de um procedimento posterior, de restituição, que atenda a ambas as exigências do dispositivo. É o que ocorre, por exemplo, com o sistema TAX FREE, presente em diversos países (a exemplo da Argentina), em que o visitante estrangeiro é restituído dos valores referentes ao IVA (Imposto por Valor Agregado), bastando, para tanto, apresentar suas notas fiscais e passaporte em posto alfandegário na saída do país. Juridicamente falando, não parece haver grandes óbices à instituição de um sistema semelhante em relação ao ICMS no Brasil, cuja finalidade fosse atender às obrigações do dispositivo analisado100.

Ocorre que é visível a fragilidade dos mecanismos mencionados em relação ao intento de fraudes a serem cometidas por contribuintes mal intencionados. No caso do mecanismo do IPI, qualquer interessado pode adquirir o veículo por interposição de um deficiente físico para valer-se da isenção ali mencionada. De forma semelhante, no caso de um mecanismo semelhante ao do IVA, cuja intenção fosse restituir integral ou parcialmente o valor do ICMS incidente sobre produtos adquiridos por pessoas com limitada capacidade econômica, poderia ser facilmente burlado. Por exemplo, bastaria às pessoas abastadas, providenciar que suas compras fossem realizadas em nome de seus empregados, exigindo destes os valores referentes à restituição.101

Neste mesmo sentido a lição da Baleeiro que, referindo-se à extrema dificuldade de graduação dos impostos indiretos de acordo com a capacidade econômica do contribuinte de fato, aí enxerga a razão da cláusula “sempre que possível” para a

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Um sistema como o da “Nota Cidadã”, por exemplo, em que o município de Salvador estimula a exigência de notas fiscais pelo adquirente de serviços sujeitos ao ISS, mediante o creditamento de percentual do valor do tributo para ser utilizado na compensação com o IPTU, poderia (do ponto de vista jurídico) ser facilmente adaptado para atender às disposições do art. 145, §1º da CF.

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Interessante julgado em relação ao problema aqui proposto é mencionado por Nabais. Trata-se da sentença do 2º Senado do BVERfG alemão, de 27 de junho de 1991, em que este fixou ao legislador um prazo para adotar as medidas necessárias à reposição da igualdade entre os contribuintes titulares de rendimentos provenientes de juros de depósitos bancários, afetada em razão da aplicação de imposto sobre tais rendimentos apenas a parte dos contribuintes. Isto ocorreu porque uma norma administrativa recomendava o respeito de seus agentes ao segredo bancário. Em razão disso, a única forma de liquidação do imposto era através das declarações dos próprios contribuintes, que não eram fiscalizadas pela Administração. A referida sentença decidiu que a isonomia exigia um tratamento igual tanto em termos jurídicos como em termos fáticos. Assim, uma disciplina de cobrança tributária que permite um déficit de execução desta magnitude pode ser imputada diretamente ao legislador, implicando em uma inconstitucionalidade material da norma. Dada a previsibilidade de fuga generalizada ao tributo, o que efetivamente veio a se verificar, impunha-se a adoção de técnicas menos sujeitas à fraude, como a da retenção na fonte. NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos. Coimbra: Almedina, 2009, p. 472.

pessoalidade e defende para tais situações o uso da seletividade.102

Assim, pretendendo-se uma acepção do art. 145, § 1º da CF como o veículo de uma regra, é necessário atribuir à cláusula “sempre que possível” um sentido que permita ao legislador a consideração das possibilidades fáticas como critério para a adoção ou não de mecanismos como aqueles mencionados acima. Por outro lado, esta permissão confere ao legislador uma margem de discricionariedade exacerbada, que dificulta sobremaneira o controle de constitucionalidade das normas que deixem de atender às imposições do dispositivo, uma vez que a prova da viabilidade de dispositivos de fiscalização que inibam as fraudes mencionadas aproxima-se da diabólica, ainda mais quando se tratar do controle em abstrato.

No mesmo sentido parece entender Edvaldo Brito, quando afirma que todos os impostos podem ser regulados de modo pessoal e que, justamente por isso, se o dispositivo não fosse mitigado pela cláusula “sempre que possível”, então, quando, na prática, fossem de apuração técnica insusceptível, a tributação não se faria103.

Por outro lado, muito embora se reconheça a vulnerabilidade provocada pelo acima exposto, o problema não sofre qualquer diminuição ao se entender o dispositivo como veículo de um princípio, e não de uma regra. Ao contrário, a margem de discricionariedade do legislador ordinário, em tal caso, é até maior, dificultando ainda mais o controle de constitucionalidade, motivo pelo qual se insiste no posicionamento aqui adotado.

No documento O estatuto do contribuinte no estado social (páginas 82-86)