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A carne, a vestimenta e a técnica: fisiologias das superfícies

CAPÍTULO 1 ANATOMIAS DOS ESPAÇOS

1.4 A carne, a vestimenta e a técnica: fisiologias das superfícies

Como se formavam e se apresentavam as corporeidades dos habitantes de Mallet? Quais relações os indivíduos estabeleciam com seus corpos? Como eram seus movimentos, seus cuidados corporais e suas roupas? Ao nos determos nos relatos de personagens como Justina, Ana ou Paulo, e outras pessoas envolvidas nos crimes objetos de nossa análise, podemos perceber que seus corpos foram compostos por traços de sangue, por tramas de gestos e por texturas de tecidos, aspectos estes diretamente relacionados ao aumento da criminalidade entre 1931 e 1950. Por outro lado, é necessário desconfiar da suposta “limpidez” com que as informações jurídicas foram produzidas. A confissão de Justina, em 20 de março de 1936, assinalou que as letras escritas no processo criminal eram acompanhadas do silenciamento de seu corpo.

Primeiramente, jamais saberemos como foi a fala de Justina, a voz que saía de seu corpo era calma ou gritante? Quais gestos e expressões ela utilizou em sua confissão? Ao narrar o acontecimento, o corpo de Justina e toda a multiplicidade de informações que dele irradiavam foram apagadas pelas letras do escrivão. O gestuário e a oralidade que emanavam do seu corpo foram transformados em frases que compunham o texto jurídico, tal processo foi denominado por Certeau como economia escriturística, uma operação na qual todos os aspectos corporais desapareciam em detrimento da escrita.215 No caso de Justina, o apagamento de sua voz e de seu corpo foi resultado de duas etapas: a primeira foi

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Influência fundamental para esse modo de perceber e narrar a história, os usos e desdobramentos da genealogia nietzchiana realizados por Foucault nos permitem compreender a centralidade do corpo como a superfície onde os acontecimentos foram inscritos. Em vez de negar o corpo, a História deve se tornar “efetiva” na medida em que considera que nada é natural, mas sim que tudo é significado e marcado temporalmente pela ação humana. Deste modo, “nada no homem – nem mesmo seu corpo – é bastante fixo para compreender outros homens e se reconhecer neles”. Ver: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. p. 15-37.

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realizada pelo intérprete, que traduziu a confissão da língua polonesa para a língua portuguesa; já a segunda etapa foi decorrente do trabalho do escrivão, que transcreveu as frases do intérprete e as colocou no papel a partir da linguagem jurídica. Neste duplo silenciamento do corpo, Justina se transformou em declarante, sua fala virou confissão, Inácio se tornou a vítima e o corpo dele passou a ser a prova jurídica.

No mesmo dia em que Justina havia sido detida, após a confissão, foi enviado um telegrama para Curitiba, a capital do Estado, solicitando a vinda de um médico legista. A presença de um perito profissional era considerada necessária pelas autoridades judiciárias malletenses, já que os médicos Janina Wandroba e Ernani Benghi realizavam perícias e exames de corpo de delito, mas não apresentavam a formação específica para exercerem a medicina legal.216 Foi por trem que o legista Felisberto Farracha chegou de Curitiba, dois dias após a solicitação do delegado. Essa rapidez na resposta e no envio do legista pelas autoridades estaduais era resultado da linha férrea São Paulo - Rio Grande do Sul que atravessava aquela área do Paraná. Após o período de viagem, já em Mallet, o legista Felisberto Farracha se encontrou com Janina Wandroba, médica que o acompanhou na exumação do cadáver. Além dos dois médicos, o grupo que se dirigiu pelos 20 quilômetros de estradas até Linha Norte era composto pelo delegado e seu escrivão, por dois praças que conduziam a acusada Justina, bem como por alguns populares.

Quando chegaram ao local do crime, Justina direcionou o grupo para o ponto exato onde o corpo da vítima havia sido ocultado, um grande potreiro localizado acerca de 200 metros da residência.217 O cadáver de Inácio se tornou visível após alguns minutos de escavação, a uma profundidade de 80 centímetros, “[...] em já avançado estado de putrefação, fermentação gasosa e em grande parte um delíquio negro cadavérico e formação de amoníacos compostos”. 218

Figura 9: A exumação do cadáver de Inácio – 1936

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Veremos no capítulo 2 que, entre os anos de 1931 a 1950, Mallet apresentou uma variação entre dois e três médicos, dois deles encontravam-se na sede municipal e um no distrito de Paulo Frontin. A julgarmos pelo crescimento populacional naquele período e pelas dimensões territoriais do município, a presença reduzida de médicos, ou a ausência, se tornavam fatores impactantes na análise e produção de saberes sobre os corpos envolvidos nos crimes daquele período, aspecto que será discutido no segundo capítulo.

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Como se descreveu anteriormente, os potreiros eram espaços amplos, geralmente localizados atrás das residências, onde circulavam, se criavam e se prendiam animais como as vacas, cavalos, galinhas etc.

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Fonte: Auto de exumação e autópsia. p/b, 18 x 09 cm. 1936. Processo-Crime, Mallet, 1936, nº 3670, Caixa 09, CEDOC/I. fls. 15.

A fotografia feita no dia da exumação do cadáver de Inácio foi anexada junto ao exame de corpo de delito. Nesta imagem podemos identificar, no lado direito, os médicos Felisberto e Janina, bem como o filho menor de Justina. No centro da imagem, sem o chapéu na cabeça, estava o delegado de polícia Rafael Bufrem, já o homem ao seu lado esquerdo, com o chapéu na mão, era o escrivão Felicíssimo Ildefonso Neves. Pode-se perceber também a presença de populares que acompanharam as autoridades auxiliando na remoção do cadáver. Por mais que Justina e alguns policiais estivessem presentes naquele momento, nenhum deles foi registrado nas imagens que constavam no processo criminal. A partir da fotografia, percebemos o corpo sem o caixão ou suporte algum, estando apenas coberto com algumas tiras de panos claros que foram removidos. Ali, diante dos olhares atentos dos médicos Felisberto e Janina, o cadáver de Inácio tornou-se linguagem, a carne decomposta foi transformada em um texto inteligível para as autoridades judiciais. Atentemos para a descrição:

Retirado o corpo cuja terra se achava argamassada com os líquidos do cadáver, verificaram os peritos ser do sexo masculino [...] de cor branca, bigode e cabelos curtos e pretos, compleição robusta, adiposidade bem desenvolvida, musculoso, estatura de um metro e sessenta centímetros. Dentadura mais ou menos perfeita; apresentava uma falta do primeiro grande molar direito. Na cabeça, cujos tecidos já estavam quase totalmente destruídos pela putrefação, encontravam-se os sinais

do que fora usado para a consumação do crime, um instrumento corto- contundente [...] a morte foi instantânea”. 219

Desde a morte, o cadáver de Inácio fora mantido enterrado por um período de oito meses, até Justina confessar o crime. A autópsia se realizava em um indivíduo morto, com a carne em um estado tão avançado estado de decomposição que os tecidos se misturavam com a própria terra. Tratava-se de um corpo já deteriorado pelo tempo, mas que possuía algumas características que nos interessam. Como muitos homens daquele período, Inácio possuía a barba e os cabelos curtos, um padrão constante dado as recorrentes descrições de “barbas bem aparadas”, “bigodes curtos” ou de homens se barbeando com navalhas. Já as menções a rostos com barba longa ou muitos pelos faciais são raras, se não inexistentes na documentação jurídica que analisamos.

Assim como a descrição do rosto, pode-se perceber na exumação do cadáver de Inácio a utilização do termo “compleição robusta”, uma das categorias recorrentemente mencionadas pelos médicos para indicar a constituição física de mulheres e homens malletenses. A compleição não estava diretamente ligada à estatura dos indivíduos, talvez Inácio não pudesse ser considerado um homem alto com seus 1,60 centímetros, mas sua musculatura e a sua formação óssea eram critérios tidos como condizentes pelos legistas para afirmarem que o seu corpo era robusto. Existiam também tipologias corporais nomeadas como “compleição frágil”, para pessoas idosas com os membros fragilizados, ou “compleição fina”, utilizada para nomear as pessoas de formação óssea débil e com aparência física magra. 220

Em corpos vivos ou mortos, o uso destas categorias nem sempre era constante, ocorrendo que muitas perícias não se estendiam em detalhes sobre os corpos, restringindo- se apenas a descreverem a idade dos indivíduos. Neste caso, a ausência de informações é relevante, pois indica que os processos jurídicos por vezes não seguiam o que determinava o Código Processual do Paraná, já que tal legislação enfatizava que todos os detalhes físicos deveriam ser descritos de maneira minuciosa. 221

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ibidem., fls. 11-12.

220

Ver: Processo-Crime, Mallet, 1943, nº 235, Caixa 14, CEDOC/I. fls. 03.; Processo-Crime, Mallet, 1944, nº 267, Caixa 15, CEDOC/I. fls. 23.; Processo-Crime, Mallet, 1944, nº 267, Caixa 15, CEDOC/I. fls. 58.

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Estabelecendo a sequência com que os procedimentos jurídicos deveriam ocorrer no Estado do Paraná, o Código Processual afirmava no Art. 237 “Os peritos serão minuciosos no exame, fazendo constar com exactidão tudo quanto verificarem do facto e suas circumstâncias” SECRETARIA GERAL DO ESTADO DO PARANÁ. Código de Processo Criminal do Estado do Paraná. Curitiba: Tipografia A República, 1920. p. 44.

Entre os dois processos criminais que aqui destacamos havia uma grande diferença no que se refere ao intervalo de tempo entre a ocorrência do crime e a realização da perícia no cadáver. Os meses que separaram a morte de Inácio e a análise de seu cadáver não foram semelhantes à rapidez com que o corpo do ucraniano Paulo, a vítima, foi autopsiado. Neste segundo crime, após a sua queda no solo e os consequentes gritos de Ana, Felipe correu juntamente com Miguel para chamar a médica Janina. Aproximadamente 20 minutos depois, chegou a médica acompanhada do esposo, o farmacêutico Estanislau, e das autoridades policiais. Segundo constou no relatório por eles elaborado:

[...] Encontramos um cadáver deitado em um banco que se achava na cozinha da casa e sabemos ser de Paulo, ucraniano, com 52 anos de idade, cor branca, casado, empregado na estrada de ferro [...] Às 23 horas procedemos o exame cadavérico cuja operação para a determinação da “causa mortis” que durou cerca de meia hora. Foi encontrado um ferimento no ventre, nove centímetros acima do umbigo, provocado por instrumento perfurante medindo três centímetros de comprimento e meio de largura. Em seguida, ao praticamos a autópsia encontramos a perfuração da aorta motivando hemorragia interna. 222

Se inicialmente a ajuda médica havia sido solicitada para tentar salvar a vida de Paulo, o ferimento aberto no seu ventre e o sangue que por ele vertia em excesso acabaram por resultar em sua morte. O cômodo que antes era animado pelos sons da rebeca e das cantigas ucranianas havia se transformado em espaço de choro, lamentação e desespero. Paulo estava morto, seu corpo havia se tornado cadáver nos 20 minutos que separaram a sua queda e a chegada da médica.

A rapidez com que os moradores da sede procuraram o socorro médico, neste segundo crime, nem sempre era possível em outras localidades do município. As dezenas de quilômetros que os separavam da sede, os problemas no percurso e a velocidade dos veículos de tração animal eram dificuldades a serem enfrentadas na busca de um atendimento hospitalar ou farmacêutico. Sabemos que nas décadas de 1930 e 1940, Mallet contava com a atuação de dois médicos, mas nem sempre tais presenças eram reconhecidas nos cuidados corporais. Muitos habitantes dividiam a preferência com os dois farmacêuticos do município, Estanislau Gluschinski e Francisco Niedziela, que também eram recorridos pelos moradores em casos de ferimentos e doenças.

É necessário observar que a presença destes profissionais constituía um grupo reduzido diante da crescente população e das amplas extensões daquele município. Os cuidados com o corpo nem sempre dependiam de tais figuras, possivelmente, o pequeno aparato médico-farmacêutico desempenhava funções novas e restritas em um lugar onde

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predominavam os remédios caseiros, o conhecimento das plantas e a atuação de parteiras, benzedores e “entendedores de machucaduras”. Enquanto os farmacêuticos eram procurados com maior intensidade em comparação aos médicos, as parteiras possuíam uma relevância superior a tais profissionais no que dizia respeito aos cuidados na gestação e na realização dos partos.223 O ato de se dirigir a um médico ou a solicitação da sua presença em caso de algum ferimento não era uma prática comum nos anos de 1931 a 1950. No crime de 1936, ao verem o ucraniano Paulo desacordado no chão, os convidados da casa de Gregório tiveram como reação imediata recorrerem à ajuda da médica Janina, uma atitude facilitada pela proximidade das casas na sede de Mallet, mas o desfecho dessas situações poderia ser muito diferente quando os crimes ocorriam em outros espaços do município.

Terminado o exame cadavérico, ainda no decorrer da noite, o delegado e o escrivão buscaram recolher os depoimentos das pessoas que testemunharam o ocorrido, pois seria necessário contar com o máximo de informações e provas disponíveis daquele episódio. Durante o tempo que levou a realização desses procedimentos, Tadeu, o polonês que havia dançado freneticamente, escondeu-se, não sendo mais visto pela vizinhança e autoridades. Sabemos que dois dias após a morte do ucraniano, a residência de Tadeu, localizada no Vicinal Seis, daquele município, foi vasculhada em busca de provas. As autoridades encontraram uma camisa de zefir claro listrado, apresentando sobre o frontal do peito repingos de esguichos de sangue e na parte esquerda embaixo da mesma peça manchas de sangue indiciavam que a mesma havia sido usada para limpar os dedos das mãos.224 A camisa de Tadeu não era apenas uma prova jurídica, suas características: clara, listrada, feita de zefir (algodão), eram comuns a uma das peças essenciais nas vestimentas dos homens malletenses.

Inácio e Paulo, vítimas dos crimes de 1936, trajavam vestes que eram comuns aos habitantes malletenses, naquele período. O polonês morto por Justina vestia um terno de brim escuro, uma camisa e ceroula de algodão azul, calça apertada por uma cinta de couro com uma fivela de ferro escuro. Já o ucraniano Paulo, trajava uma calça de casimira cinzenta, paletó e colete marrom, calça de riscado, ceroula de zefir verde e um sapato

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Processo-Crime, Mallet, 1944, nº 267, Caixa 15, CEDOC/I. fls. 13.; Processo-Crime, Mallet, 1949, nº 391, Caixa 20, CEDOC/I. fls. 05-06.

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preto. A julgar pelo momento das ocorrências, as roupas usadas pelos mortos eram vestimentas cotidianas. 225

Longe de não possuírem cores diferenciadas ou de manterem a predominância de certos tons, as roupas descritas no arquivo judiciário de Mallet nos permitem afirmar a existência de uma rica diversidade de colorações, tecidos e detalhes. O registro referente ao assassinato do lavrador Célio, ocorrido no início de uma noite de 1944, descreveu corpos cobertos com roupas de muitas tonalidades e ornamentos. Após diversos golpes de faca, Célio veio a falecer imediatamente próximo a uma casa comercial em Linha Iguaçu, pertencente ao distrito de Paulo Frontin. Com a fronte para cima, os braços abertos e uma das pernas encolhidas, as vestimentas da vítima, ainda obscurecidas pela noite, ganharam muitas cores com a aproximação de uma chama carregada pelo subdelegado daquele distrito, que visualizou os seguintes trajes:

[...] Costume226 de sarja azul, já bastante usado, camisa de zefir branca, ceroula de zefir clara, trazia um lenço de seda quadriculado ao redor da gola da camisa. Calçava uma bota de cano alto de cor marrom e ostentava em cada pé da bota uma espora para fustigar o animal que montava; estando sua calça presa a um cinto de couro, adornado com peles de lontra, com duas fivelas de metal branco, cinto este conhecido por guaicá. 227

Muitas das peças do vestuário comum eram produzidas por membros da família que adquiriam tecidos vendidos por metro, em alguma casa comercial. Já as roupas que exigiam cortes específicos de uma complexidade maior, como um paletó, eram obra dos diversos alfaiates espalhados pelo município.228 Além dos ternos ou das camisas, os contatos dos corpos malletenses com o poder judiciário eram acompanhados por registros como o do ucraniano Jaroslau, que “[...] perdeu um sobretudo, um chapéu e um sapato na estrada”; do idoso Oles, que após apanhar de seu neto, “[...] trocou o colete e foi para Mallet dar queixa”; ou do comerciante Teófilo, que estava na estrada a noite “[...] quando viu um homem de capa descer do cavalo e ficar parado”. 229

225

Processo-Crime, Mallet, 1936, nº 3670, Caixa 09, CEDOC/I. fls. 11.; Processo-Crime, Mallet, 1936, s/nº, Caixa 09, CEDOC/I. fls. 06.

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Terno sem o colete, apenas a calça, camisa e paletó.

227

Processo-Crime, Mallet, 1944, nº 1182, Caixa 17, CEDOC/I. fls. 06.

228

No ano de 1948, foi registrado o número de dez alfaiates em Mallet, quatro trabalhavam na sede municipal enquanto os outros que praticavam seus serviços em outras localidades do município. Nas décadas em que nos detemos, cinco alfaiates se envolveram diretamente em crimes, sejam como acusados ou como vítimas. O número exato de alfaiates é impreciso, pois muitos poderiam ser lavradores que em momentos vagos realizavam trabalhos de costura. Ver: INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Sinopse estatística do Município de Mallet. p. 26.

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Processo-Crime, Mallet, 1948, nº 351, Caixa 18, CEDOC/I. fls. 31; Processo-Crime, Mallet, 1942, nº 237, Caixa 13, CEDOC/I. fls. 30; Processo-Crime, Mallet, 1946, nº 308, Caixa 17, CEDOC/I. fls. 39.

Nestas rápidas menções às vestimentas nota-se a predominância das roupas mais vigorosas, de tecidos grossos e de capas que garantiam proteção aos que andavam a cavalo em tempos de frio, chuva e muita neblina. Faz-se necessário lembrar que o clima em Mallet é semitropical, apresentando baixas temperaturas nos outonos e invernos, entre os meses de abril a agosto, o que demandava e demanda o uso de peças que proporcionassem e proporcionem a sensação de calor. Da mesma forma que nas estações frias, o calor predominante no restante do ano exigia outro tipo de roupas, os casacos eram guardados e os chapéus de tecido poderiam ser substituídos por outro feito de palha.

As mudanças climáticas eram fatores relevantes na adoção e transformação das vestimentas masculinas ou femininas. Mas como vimos anteriormente, a população de Mallet era formada por diferentes etnias e pessoas de distintas nacionalidades, o que podia resultar em singularidades e diferenças na hora de vestir. As assimilações e as trocas de traços culturais poderiam resultar em formas mestiças de se vestir e ornamentar os corpos. Em 1914, o já mencionado Tadeusz Chrostowski perambulou entre os moradores de Mallet, este imigrante observou os aspectos do cotidiano e os descreveu em cartas que foram publicadas na Polônia. Chrostowski relatou que “consciente ou inconscientemente, os colonos230 imitam os caboclos nas suas práticas agrícolas, na forma de vestir, na maneira de carregar facas [...]”.231 Se o porte de instrumentos cortantes junto às vestimentas era pouco habitual ao polonês Chrsotowski, o uso de facas, canivetes e facões afiados desempenhava um papel fundamental no trabalho e nos conflitos daqueles que circulavam pelas matas de araucárias.

Ao analisar os costumes da população cabocla localizada em terras próximas à Mallet, entre 1912 a 1916, Duglas Monteiro ressaltou que, independente da renda dos habitantes, todos os homens andavam armados. Segundo o sociólogo:

O generalizado uso de um equipamento ofensivo e defensivo, parte integrante da indumentária masculina, mesmo entre adolescentes, é, ao meu ver, um traço significativo de uma autonomia que ficava, deste modo garantida, quaisquer que fossem as diferenças sociais porventura existentes, e – sob um aspecto de modo nenhum irrelevante – elas se anulavam na eventualidade do conflito.232

Andar armado com facas e saber manuseá-las com destreza era a garantia de sobrevivência em caso de uma briga. Como a ocorrência de rixas e conflitos era comum, o ato de carregar uma faca dava condições iguais de luta entre dois homens, mas o vencedor

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Adjetivo para se referir aos poloneses e ucranianos que viviam naquelas colônias.

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STRAUBE, Fernando Costa; URBEN-FILHO, Alberto; KOPIJ, Grzegorz. A imigração polonesa e suas

colônias no Paraná, segundo Tadeusz Chrostowski. p. 74.

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