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Os corpos e a terra: trilhas, linhas e vicinais nas matas de araucárias

CAPÍTULO 1 ANATOMIAS DOS ESPAÇOS

1.1 Os corpos e a terra: trilhas, linhas e vicinais nas matas de araucárias

A história da ocupação não indígena do território paranaense onde surgiu e se desenvolveu Mallet pode ser remetida inicialmente ao século XVII, quando ocorreram os

contatos entre indígenas Kaingans e Xoklengs com os exploradores castelhanos e lusitanos. A partir do século XVIII, tal espaço foi atravessado por bandeirantes paulistas, escravos foragidos ou indivíduos muitas vezes procurados pela justiça que adentraram nas matas de araucárias, misturaram-se com a população nativa e ali se estabeleceram, dando origem a população nomeada de cabocla. Esta ocupação do território feita por indivíduos isolados ou por pequenos grupos prosseguiu no decorrer do século XIX, quando, em meados de 1880, um contingente com cerca de quinze famílias vindas do leste do Paraná buscou cultivar os solos do sul daquela província. Após perambularem por cerca de dois meses em terras que contrastavam áreas planas com lugares de ondulações, relevos acidentados e serras, tal grupo se estabeleceu próximo a um rio, denominado Rio Claro, formando-se assim um pequeno povoado. 37

Não estando restrita apenas ao Rio Claro, que aumentava o volume de suas margens com as águas do Arroio da Serra e do Arroio do Monjolo, aquelas terras apresentavam uma rica hidrografia com diferentes extensões e correntezas. Longe de serem apenas componentes figurativos da paisagem natural, os rios estiveram diretamente ligados com o estabelecimento desses pequenos grupos que construíram as suas moradias nas áreas próximas das águas. Enquanto uma aglomeração de fogos se desenvolveu nas margens do Rio Claro, ainda na década de 1880, outra pequena concentração de casas foi formada próxima do Rio Xarqueada, lugar onde os agricultores construíram uma igreja dedicada a São Pedro, santo este que passou a nomear tal agrupamento. 38

Formados próximos de dois rios, os povoados de São Pedro e Rio Claro concentraram poucas casas e habitantes durante o século XIX, já que a maioria dos estabelecidos vivia dispersa pelas trilhas abertas em meio às extensões das matas. Esta população desenvolvia particularidades tanto no modo de se relacionar com o solo e com a vegetação, na assimilação da prática indígena da queimada, na criação dos animais em espaços comuns ou em períodos de deslocamento para explorar a erva-mate (Ilex

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Ver: MOTA, Lúcio Tadeu. As guerras dos índios Kaingang: a história épica dos índios Kaingang no Paraná (1769-1924). Maringá: Eduem, 2008. p. 81.; CAMPIGOTO, José Adilçon; SOCHODOLAK, Hélio. Os faxinais da região das araucárias. In. OLINTO, Beatriz Acelmo; MOTTA; Márcia Maria; OLIVEIRA, Oséias. (org.). História agrária: propriedade e conflito. Guarapuava: Unicentro, 2008. p. 173-175.; WOUK, Miguel. Estudo etnográfico – linguístico da comunidade ucraína de Dorizon. p. 26.

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Ver: INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Sinopse estatística do Município

de Mallet. p. 10. O modo como o nome deste rio era escrito apresentou variações como Rio Xarqueada ou

paraguariensis), aspectos estes que, segundo Campigoto e Sochodolak, estiveram ligados à

cultura cabocla nas florestas de araucárias. 39

Entre os períodos de cultivo de pequenas plantações e a pecuária de subsistência, a exploração rudimentar da erva-mate representava uma importante atividade para os caboclos no final daquele século. Com o aumento do consumo do chimarrão, bebida de origem indígena fabricada a partir das folhas da erva-mate, a possibilidade do comércio ervateiro instigou o trabalho de muitos caboclos que adentravam nas densas matas em busca das árvores nativas. Não foram somente as trilhas e os caminhos que se desenvolveram a partir destas aberturas nas florestas, mas os deslocamentos dos corpos por aqueles espaços propiciaram o contato com os diferentes aspectos da geografia produzindo, assim, os principais contornos daquele território.

Podemos considerar que as vivências dos caboclos eram indissociáveis das características espaciais daquelas áreas no século XIX. Enquanto o povoado de São Pedro foi estabelecido próximo ao Rio Xarqueada, o curso d’água desse rio se juntava com o de outras nascentes para compor o Braço do Potinga, que semelhante com o Rio Claro permitiam o escoamento da erva-mate que era cortada nas matas e transportada em pequenos botes. Comercializar as folhas dessas árvores implicava na proximidade com os rios, mas tanto a circulação dos caboclos, como também o fluxo das águas, sofriam os efeitos de um relevo acidentado que ao leste apresentava elevações com cerca de 800 metros de altitude, nomeadas como a Serra do Tigre. Já a oeste, a altitude se intensificava com os 1200 metros da Serra da Esperança, uma escarpa montanhosa que permeava aquele lugar seguindo até os Campos Gerais, no centro da então Província do Paraná. 40

Entre as elevações e os desníveis do relevo, os rios e as trilhas abertas pelos caboclos eram importantes vias de penetração daquele solo. A subsistência desses habitantes demandava um contato com os fluxos da própria terra, pois o escoamento da erva-mate ocorria graças à circulação constante de água em rios como o Braço do Potinga ou o Rio Claro, mas não podemos esquecer que tais rios ganhavam suas formas a partir dos riachos e arroios menores que emergiam dos mananciais. De maneira mais elementar, os povoados, o comércio e os rios maiores estavam relacionados com essas nascentes lentas que eram impulsionadas nos momentos de chuva ganhando potência e vigor.

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Ver: CAMPIGOTO, José Adilçon; SOCHODOLAK, Hélio. Os faxinais da região das araucárias. p. 174.

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A vida humana, vegetal, animal, ou melhor, a vida em sua dimensão mais ampla se relacionava com as águas que emergiam daquele chão. Tal como o sangue que percorria as veias dos corpos, as águas eram os fluxos que atravessavam, movimentavam e nutriam as múltiplas formas de vida que perambulavam pelo solo ou que nasciam da própria terra.41 Possibilitando os contatos dos caboclos com outros habitantes da Província do Paraná, todas as águas caudalosas dos rios maiores, com fluxos mais lentos nos riachos e arroios, ou borbulhantes nas nascentes, seguiam se misturando para compor o Rio Iguaçu, a maior bacia hidrográfica do Paraná. Ponto de deságue localizado ao extremo sul daquelas terras, o Rio Iguaçu possuía profundidades que permitiam a navegação de barcos maiores que transportavam a erva-mate retirada pelos caboclos para outros locais do Paraná no decorrer do século XIX.

A partir de 1882, com a instalação de barcos a vapor no Rio Iguaçu, a extração da erva-mate se acentuou ainda mais por toda aquela região. Tratando-se de uma planta nativa, a retirada das folhas da erva-mate demandava por parte dos caboclos um constante movimento de circulação pelas matas. Em meio às aberturas feitas na densa vegetação, os indivíduos sentiam fisicamente os efeitos decorrentes do cansaço, dos arranhões e dos machucados provocados pelo contato com os galhos das árvores, com as pedras ou com as plantas que cresciam do solo. Para que todos esses deslocamentos fossem possíveis, tornou-se necessário que os corpos dos caboclos se adaptassem às configurações dos espaços de maneira relacional. A vida, as sensações, os modos de cultivar, circular, e sobreviver demandavam uma interação e um conhecimento sobre a fauna e a flora. Era preciso a atenção do olhar para as diferentes plantas a fim de encontrar os pés de erva- mate, mas a presença de animais selvagens também afirmava a necessidade de que os outros sentidos se mantivessem em estado de alerta. Além da força e da rudeza, o trabalho no comércio ervateiro exigia que os corpos se misturassem com a própria vegetação para que os braços dos caboclos alcançassem os melhores ramos de erva-mate das árvores. Por alguns instantes os galhos e os membros dos corpos se entrelaçavam para se desfazerem

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Distantes das concepções que compreendem o espaço enquanto fixidez e imobilidade, Deleuze e Guattari nos instigam a compreender a terra tal como um corpo pleno, maquínico e pulsante. Para estes pensadores, a terra não seria imóvel, mas sim marcada por movimentos, por fluxos e deslocamentos com os quais a vida humana, animal e vegetal se relacionava. Ver: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2011. p. 194; 269; 434.

assim que os ramos eram cortados, desidratados (sapecada) e levados até as margens do Rio Iguaçu. 42

Além dos ervais, a vida dos caboclos era indissociável de vários outros aspectos que davam formas para as matas de araucárias. Como se descreveu anteriormente, mesmo que houvesse araucárias em quantidades menores em outros locais do Brasil, esta vegetação se intensificava no Paraná, implicando em lugares onde emergiram relações singulares entre os habitantes e o ecossistema. Eram nas matas de araucárias que os caboclos buscavam a subsistência ao colherem a erva-mate, ao garantirem a alimentação através dos frutos e sementes das árvores nativas, bem como a madeira para a construção de suas residências, habitações muitas vezes provisórias pela necessidade de deslocamento em busca dos ervais. 43

Viver e se movimentar por aquele território demandava o uso de sensibilidades especiais por parte dos caboclos, pois longe de compor uma paisagem uniforme, a mata de araucárias apresentava vários estratos, com a vegetação organizada em camadas. Ocupando a porção mais alta, as numerosas araucárias, chamadas pelos habitantes como pinheiros, eram visíveis mesmo de longas distâncias, predominando diante dos olhos. O destaque se justificava pelos troncos rugosos e colunares que poderiam ultrapassar os trinta metros de altura. Dispondo de uma base com longas raízes, a araucária possuía um topo com finos

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Com relação à historicidade dos contatos entre os seres humanos e a natureza. A partir de Ingold, podemos compreender que, diferente dos entendimentos que consideram a paisagem como a superfície material alterada temporalmente, é possível afirmarmos que as características culturais e as vivências humanas desenvolvidas na natureza não são impostas ou pré-dispostas pela materialidade do espaço, mas sim são resultado de condensações, cristalizações e atividades relacionais entre o homem e o meio. Os corpos, suas sensações e suas práticas sociais dependiam deste contato com as estações do ano, com as texturas do solo, com a fauna ou a flora. As relações dos homens com os espaços inscreviam marcas nos corpos demandando novos usos dos membros e novas formas de se adaptar na medida em que os contatos com o espaço se intensificavam. Das veredas de pé a posto até o desenvolvimento das frotas de comércio, podemos destacar que um importante exemplo destas perspectivas foi desenvolvido por Sérgio Buarque de Holanda ao analisar o lento processo de ocupação territorial do Brasil desde o século XVII. Sem negligenciar os corpos, este historiador partiu de narrativas que davam destaque para a capacidade de adaptação dos olhos indígenas, que conseguiam circular com facilidade nas matas fechadas durante as noites. Holanda também descreveu as pedras e galhos que se transformavam em utensílios; as folhas que se tornavam copos utilizados pelos bandeirantes; as águas que não eram empecilhos, mas sim caminhos para o interior do território; as vestimentas que precisaram se adaptar à vegetação e ao clima; ou mesmo as maneiras de caminhar que sofriam alterações conforme o solo e tantas outras situações que direta ou indiretamente apontavam para a historicidade das relações entre o a vida humana e a natureza, entre a carne, o solo, as plantas e animais, enfim, entre os corpos e os espaços. Ver: INGOLD, Tim. Estar vivo. p. 90-91.; HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e Fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p. 20-41.

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Ver: CAMPIGOTO, José Adilçon; SOCHODOLAK, Hélio. Os faxinais da região das araucárias. p. 174.; CARVALHO, Miguel Mundstock Xavier de. O desmatamento das florestas de araucária e o Médio Vale

do Iguaçu: uma história de riqueza madeireira e colonizações. 2006, 202 f. Dissertação (Mestrado em

História), Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. p. 117-119.; RIESEMBERG, Alvir. A

galhos em forma radial com volumosos tufos nas pontas. Em meio às folhas espinhentas que compunham os tufos, estas árvores desenvolviam uma pinha esférica, de até trinta centímetros, repleta de sementes (pinhões) que eram consumidas pelos caboclos. 44

Se a araucária ocupava a posição mais alta daquela vegetação, abaixo de seus alongados galhos encontrava-se a segunda camada, um estrato composto por árvores de médio porte como a imbuia (Ocotea porosa), a canela-guaicá (Ocotea purubela), a bracatinga (Mimosa scabrella), o araticum (Annona rugulosa) ou o araçá (Psidium

cattleianum). Algumas destas árvores possuíam madeiras propicias para as construções,

enquanto outras produziam frutos que compunham a dieta dos habitantes e dos animais como as aves e os porcos. Abaixo dos pinheiros e das diversas espécies que compunham o segundo estrato, a terceira camada da mata de araucária era caracterizada por árvores de pequeno porte, dentre as quais se destacava a erva-mate (Ilex paraguariensis) com suas folhas verdes de formato oval. 45

Possibilitando o comércio ervateiro, o desenvolvimento das casas e os alimentos para os moradores e suas criações, as matas de araucárias, os relevos onde elas estavam situadas, as configurações dos solos e dos rios eram indissociáveis dos fundamentos biológicos dos corpos, pois a própria vida só era possível naquele espaço dada a interação entre os habitantes e o ecossistema. A partir de Le Roy Ladurie, podemos apontar que a história das vidas dos caboclos tornava-se ligada com a histórica do mundo vegetal, com a história da hidrografia ou com a história das mudanças na plasticidade da natureza.46 Todavia, não podemos ter uma visão estável e harmônica dessas relações, pelo contrário, a abertura das trilhas e a construção das habitações implicavam na derrubada das árvores e no contato com animais perigosos. O desenvolvimento das plantações feitas para a sobrevivência era realizado a partir de queimadas que destruíam as extensões da floresta, e após o plantio, o cuidado com o nascimento das sementes demandava uma batalha com as

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Ver: CAMPOS, João Batista; SILVEIRA-FILHO, Leverci. Série Ecossistemas Paranaenses – Floresta

Estacional Semidecidual. s/p.

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ibidem., loc. cit.

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Le Roy Ladurie nos suscita a pensar que o próprio entendimento biológico da vida humana – o corpo – nos espaços rurais implicava em considerar a historicidade das folhas e árvores, das madeiras e pedras, das águas e do solo. Em uma perspectiva singular, Le Roy Ladurie analisou as transformações ocorridas entre os séculos XVI e XVIII na região agrícola de Languedoc, no sul da França. Dentre suas discussões, destacamos o tópico La civilisation végétale por trazer uma compreensão singular ao definir que os fundamentos biológicos da vida dos camponeses eram indissociáveis dos contatos com os espaços e as mudanças nele ocorridas. Para este historiador francês, a terra, as florestas e os rios eram inseparáveis das existências, pois os corpos e seus funcionamentos estavam intimamente ligados às transformações históricas do ambiente, das relações com o clima, com o chão e com os animais. Ver: LE ROY LADURIE, Emmanuel. Les paysans du

outras plantas que não cessavam de emergir do chão. Era preciso se manter atento, pois o nascimento de outras espécies poderia facilmente sufocar toda a colheita. Desde o início da ocupação desses territórios, a vida da população cabocla propiciava, direta ou indiretamente, um conflito dos homens que buscavam com o fogo, com as enxadas e foices rasgar constantemente a superfície viva da terra. Eram das lutas travadas com as forças da natureza, com a fauna e a flora, que a sobrevivência das mulheres e homens nesses espaços era possível.

Além do solo com seus relevos e rios, e da vegetação com suas camadas, os corpos dos caboclos que habitavam as matas de araucárias sentiam os efeitos ligados ao clima subtropical, característico de toda a região onde se desenvolveu Mallet. Com as estações bem definidas, o verão possuía máximas de até 30º C, já o inverno era rigoroso nos meses de abril a agosto, com temperaturas que oscilavam entre os -0,2º C a 16º C.47 Nestes períodos de inverno poderiam ocorrer as geadas, um fenômeno de baixa temperatura que alterava a paisagem formando camadas brancas de orvalho congelado. Como naquele local do Paraná o relevo possuía uma altitude média de 895 metros acima do nível do mar ocorriam ventos que intensificavam a queda das temperaturas. Entre os períodos de frio ou calor, o clima úmido era predominante, as chuvas eram um fenômeno frequente que poderia ser acompanhado de relâmpagos, raios e vendavais. 48

Da comunicação entre a fauna, a flora e o clima, produziam-se certos movimentos espacializantes dentre os quais se destaca o da germinação das araucárias. Por serem árvores dioicas, com divisões entre plantas masculinas e femininas, a reprodução só se tornava possível pelos frequentes ventos dos períodos amenos que levavam o pólen de uma árvore de floração masculina para outra com a floração feminina. Da polinização realizada pelos ventos nasciam as pinhas redondas com sementes que eram espalhadas por longas distâncias pelas aves como as gralhas-azuis, que cravavam os pinhões no solo possibilitando a reprodução da vegetação.49 Uma visão estática do espaço, mesmo o natural, torna-se impossível ao descrevermos esses movimentos, contatos e devires entre o

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Ver: INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Mallet, Coleção de Monografias

nº 247. Curitiba: Gráfica do IBGE, 1962. p. 05.

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Analisando os dados de medições pluviometrias realizadas em Mallet entre 1924 e 1944, Maack elaborou uma média na qual o mês de janeiro foi o mais chuvoso naquele período, com 209 milímetros, e o mês de julho era o período mais seco em todos os anos, com uma média de 62 milímetros. Ver: MAACK: Reinhard.

Geografia física do Estado do Paraná. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio; Curitiba: Secretaria de

Cultura e Esporte do Paraná, 1981. p. 166.

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Ver: SOUZA, Valderes Aparecida de; HATTEMER, Hans H.. Fenologia reprodutiva da Araucaria

animal e o vegetal naquele ecossistema.50 Mesmo antes dos povos indígenas, ou quando passou a ser povoada por caboclos e imigrantes, a mata de araucárias não cessou de se produzir e de se expandir constantemente, sua permanência estava ligada ao movimento dos ventos e das aves, aos fluxos dos rios e das chuvas, ou as mudanças operadas pelas serras, elevações e penhascos.

Em meio a essas interações, a vida na mata de araucárias produzia efeitos e sensações que impactavam os corpos dos caboclos. Era a partir da pele que se sentia o frio ou o calor, o olfato era afetado pelos odores das plantas ou pelo forte cheiro que emanava da madeira nas queimadas. Já a audição fazia-se necessária para perceber os pássaros e outros barulhos da floresta. Os corpos e seus sentidos eram atravessados por zonas de intensidades que emergiam dos espaços e afetavam as sensibilidades daqueles moradores do final do século XIX.51 Foi justamente nesse momento, ainda marcado pelo Período Imperial, que os lugares próximos das margens do Rio Iguaçu foram caracterizados pela indefinição dos limites. A crescente valorização da erva-mate ocorrida a partir da década de 1880 ocasionou conflitos de interesse entre as elites das províncias do Paraná e de Santa Catarina.52 Para legitimar as extensões de suas terras, as autoridades das duas províncias buscavam com urgência delinear os seus limites geográficos, contexto político este que foi figurado pela vinda de imigrantes europeus em grupos que eram distribuídos de maneira estratégica como garantia de controle territorial. 53

Situados nas matas de araucárias, os povoados de São Pedro e Rio Claro existiam há alguns anos e os caboclos habitavam aquelas terras quando, em 1888, os agrimensores do Departamento de Geografia, Terras e Colonização do Paraná (DGTC) iniciaram os primeiros mapeamentos dos lotes destinados aos imigrantes. A partir de Horbatiuk, podemos compreender que as grandes porções de terra daquele território foram

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A ideia de que a terra e as diferentes coisas que a compõe resultam de devires, interações e movimentos