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CAPÍTULO 1 ANATOMIAS DOS ESPAÇOS

1.5 A casa e a instabilidade dos espaços

Depois de cartografarmos as mudanças nas singularidades geográficas dos espaços amplos do município de Mallet, com suas localidades dispersas por linhas, distritos, estradas, matas e roças, abordaremos agora os espaços menores como os pátios, cômodos e edificações que caracterizavam as casas malletenses entre os anos de 1931 a 1950. Locais do sono, da alimentação, da vida familiar, dos desentendimentos e também de crimes, as

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Processo-Crime, Mallet, 1944, nº 257, Caixa 15, CEDOC/I. fls. 10.

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habitações de Mallet podem ser pensadas como componentes da própria corporeidade de sua população, dada a inseparabilidade entre a vida dos corpos e esses espaços de morada. Delimitada por superfícies interiores e exteriores, com seus lugares de refúgio ou de sofrimento, podemos considerar que a casa compunha uma espécie de outra camada de pele que protegia seus moradores do frio e do calor, da chuva e do sol.

Atravessadas por diferentes corpos que nela se abrigavam, tanto as casas da sede, como as demais residências do município eram construídas com madeira de pinheiros e imbuias. As porções de matas de araucárias e o comércio madeireiro ainda forte nas décadas de 1930 e 1940 propiciavam que as edificações fossem construídas, em sua maioria, com o uso de tábuas. A carpintaria das casas malletenses poderia apresentar algumas variações decorrentes do estilo arquitetônico ou do tamanho dos terrenos. Enquanto as habitações construídas nas áreas rurais poderiam utilizar superfícies amplas, muitas das residências da sede estavam limitadas ao tamanho do lote.

As diferentes formas das moradias malletenses aparecem nos dois processos criminais de 1936, pois tanto na morte de Inácio, como na de Paulo, a casa foi o palco dos crimes e o espaço privilegiado das investigações e dos relatos das testemunhas. Sabemos que Justina, a protagonista do primeiro crime, após confessar o assassinato do esposo em 21 de março de 1936, foi mantida presa na cadeia de Mallet até a data do seu primeiro julgamento, ocorrido em 18 de dezembro daquele mesmo ano. Neste período de cerca de dez meses, a investigação foi sendo construída gradualmente pela confissão da acusada, por dados médicos do auto de exumação, pelos depoimentos de seis testemunhas e por dois breves interrogatórios que questionavam se a indiciada agiu de modo intencional ou em legítima defesa. Em todos estes procedimentos jurídicos, a casa e a vida que transcorria no espaço residencial foram frequentemente relatadas.

Para entendermos o modo como se desenrolou a investigação deste homicídio é necessário que se apontem algumas especificidades do poder judiciário naquele período. Em 1936, ano em que Justina foi processada, Mallet era denominada como Termo Judiciário, pois se tratava de um município que integrava a Comarca Jurídica do município de União da Vitória.256 O fato de ser um termo judiciário implicava na necessidade do juiz de Mallet se reportar ao Juiz de Direito do município vizinho de União da Vitória. Uma denúncia se tornava procedente ou um crime resultaria em julgamento apenas quando os

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Mallet foi elevada a termo judiciário em 1923 pela lei nº 2193 e tornou-se comarca em 1943 com a lei nº 199. Ver: INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Mallet. Coleção de Monografias nº 247. Curitiba: Gráfica do IBGE, 1962. p. 04.

“autos” com as provas, descrições e depoimentos eram enviados ao Juiz de Direito da comarca que analisava se o processo seguiu todas as normas vigentes no Código do Processo Criminal do Estado do Paraná. 257

No caso de Justina, sua confissão ocorreu no mês de março de 1936, mas sua denúncia foi analisada na Comarca de União da Vitória apenas no início de junho daquele ano. Somente após este procedimento foi que as informações colhidas sobre o caso foram consideradas válidas. Entre as regras e sua observância nas etapas da investigação havia, quase sempre, um relevante hiato. Faz-se necessário romper com qualquer ideário de passividade absoluta dos agentes em relação à legislação quando se trata do modo como os materiais e as provas jurídicas eram produzidos. Ao fazermos a análise dos depoimentos sobre a vida doméstica de Inácio e Justina, da rotina cotidiana em sua residência de Mallet, foi necessário, antes de tudo, questionarmos quais foram os critérios adotados pelo promotor público para compor as informações do processo? Quais dados seriam aceitos? Quais seriam negligenciados? De que maneira o espaço das casas esteve ligado com a “verdade” sobre o crime? 258

No que tange as testemunhas, sabemos que poucas mantinham relações próximas com o casal. Dos seis convocados para depor apenas um deles era residente em Linha Norte, dois conheciam Inácio por seus serviços de carroceiro e três acompanharam a exumação do cadáver e nada sabiam sobre a vida da acusada ou as relações familiares ocorridas naquela casa. Por mais que outros vizinhos fossem mencionados em depoimentos não ocorreram novas intimações. Também já mostramos anteriormente o modo como se produziu a confissão de Justina, primeiro com a tradução do intérprete e segundo com o texto redigido pelo escrivão. O que podemos perceber é que toda a estrutura da investigação e suas informações foram marcadas por divergências entre o Termo Judiciário de Mallet e a Comarca de União da Vitória.

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A partir do Artigo 28 do Código de Processo Criminal do Paraná podemos compreender a estruturação do poder judiciário em Mallet na seguinte ordem de superioridade das instâncias: o Juiz Municipal de Mallet tinha foro sobre a polícia e os Juízes Distritais de Rio Claro, Dorizon e Paulo Frontin, mas respondia ao Juiz de Direito da Comarca de União da Vitória. Já o júri popular, quando convocado, tinha superioridade sobre as decisões do Juiz Municipal e do Juiz de Direito de União da Vitória, mas era inferior ao Supremo Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, em Curitiba. Ver: SECRETARIA GERAL DO ESTADO DO PARANÁ.

Código de Processo Criminal do Estado do Paraná. Curitiba: Tipografia A República, 1920. p. 09.

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A noção de verdade é compreendida neste texto como efeito de condições históricas, enquanto resultado de poderes e saberes. A verdade não se encontrava dada no âmbito jurídico, pelo contrário, ela era produto de relações de força, enfrentamentos e estratégias. Veremos no segundo capítulo que o corpo ocupava um papel central nos embates que deram forma aos procedimentos jurídicos e que em lugares como Mallet estas dinâmicas entre o corpo e o crime, ou, o corpo e a prova, ganharam formas singulares. Ver: FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU, 2002.

No dia 11 de junho de 1936, o juiz da comarca questionou o depoimento da acusada, pois “havia a falta de assinatura do intérprete Sr. Abel, como exige o Artº 181 do Código do Processo Criminal do Estado, que regula a matéria”.259

As autoridades da Comarca de União da Vitória também colocaram em questão o modo como a investigação foi realizada, estranhando o fato do filho de Justina não ter sido interrogado. Por que desconsiderar as informações que o menor poderia oferecer? As autoridades sabiam que a criança esteve próxima do acontecimento e que inclusive presenciou a ocultação do cadáver, mas em nenhum momento a criança foi procurada, as autoridades judiciárias desconheciam até mesmo a idade do filho de Justina. Cinco dias depois destes apontamentos, o parecer da investigação retornou para o Termo Judiciário de Mallet, mas o juiz municipal justificou a atitude da comarca como desnecessária, chamando-os de catadores de nulidades. 260

Após dez dias, já em 26 de junho de 1936, os autos do processo foram enviados novamente para a Comarca de União da Vitória que respondeu ao juiz municipal da seguinte forma: “Nada de irregularidades, ou quanto menos delas! Que este pensamento pertença a outros, que se convençam de menor responsabilidade e considerem que a Justiça não pode ser levada de trancos e barrancos!”.261

Após descrever o seu descontentamento, o juiz da Comarca de União da Vitória acabou por aceitar a denúncia do crime atribuído a Justina. Em nenhum momento as autoridades judiciais malletenses comentaram profundamente os questionamentos levantados pela sede da Comarca.

As pequenas provocações e os silêncios se tornam indícios do caráter institucional conflituoso em que ocorreu a investigação. Entre discordâncias e ausências de justificativas, é perceptível que as informações descritas nos processos criminais não compunham uma “essência verdadeira” sobre o ocorrido. Talvez seja por causa dessas contradições e incoerências, que de alguma maneira os corpos ali descritos e narrados puderam deixar indícios de suas resistências e rebeldias diante das leis e dos costumes socialmente legitimados. As narrativas conflituosas talvez tenham sido a única maneira desses corpos se expressarem, gritarem, se fazer vistos e se fazerem ouvir, só as custas do

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Processo-Crime, Mallet, 1936, nº 3670, Caixa 09, CEDOC/I. fls. 37.

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ibidem., fls. 51.

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sangue derramado é que esses corpos e seus espaços ganharam formas em fragmentos dos textos jurídicos. 262

Não podemos negar que Inácio ou Justina existiram, mas foi nas folhas dos processos, no curso das investigações e na linguagem jurídica que suas vivências, seus corpos, suas vidas, seus espaços foram gradualmente sendo construídos. Assim como os corpos eram apagados ou redescritos e ressignificados na texto do escrivão, os espaços narrados na investigação de Justina foram rapidamente transformados. Logo após a confissão, a casa situada em Linha Norte tornou-se o lugar da ocorrência, o terreiro da residência, onde Inácio foi morto a machadadas, passou a ser a cena do crime e o potreiro, onde o corpo foi enterrado, ganhou o estatuto de prova jurídica do delito de ocultação de cadáver.

Ainda em junho de 1936, durante o tempo em que Justina era mantida presa, um segundo crime recebeu destaque: a morte do ucraniano Paulo. Enquanto a polícia buscava indícios da autoria do crime, o suspeito Tadeu se escondeu nas matas, sendo preso no dia 28 de junho, dois dias após o ocorrido. Nas suas declarações, o polonês disse que tinha 23 anos, era casado e trabalhava como lavrador em Colônia Três, lugar onde residia. Tadeu contou que voltava embriagado da casa do seu sogro, na vila de Mallet, quando passou em frente à residência de Gregório e notou que o ambiente estava animado e resolvera entrar. O lavrador polonês também afirmou que fugiu após saber do ocorrido, pois estava com medo.263 A demora em se apresentar as autoridades somada a camisa com manchas de sangue, bem como os relatos de seis testemunhas, tornavam-se as evidências jurídicas que o acusavam de ter assassinado Paulo.

Dois crimes ocorridos em duas casas diferentes, enquanto um corpo perfurado por facadas na cintura compunha o centro da cena ocorrida na casa de Gregório, localizada na vila de Mallet; o corpo de Inácio, estraçalhado a golpes de machado, marcou com sangue o espaço do pátio de uma casa da Linha Norte. Ao observarmos a confissão de Justina, percebe-se que a residência onde ela habitava com o marido se localizava diante da estrada, uma posição comum para as casas nas áreas rurais de Mallet. Enquanto em um dos

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Assim, mesmo que o discurso feito seja confuso, misturando a verdade com a mentira, o ódio com a astúcia, a submissão com o desafio, isso não compromete em sua “verdade”. Talvez o arquivo não diga a verdade, mas ele diz da verdade, tal como o entendia Michel Foucault, isto é, dessa maneira única que ele tem de expor o falar do outro, premido entre relações de poder e ele mesmo, relações às quais ele se submete, mas que também concretiza ao verbalizá-las. O que se vê aí, nessas palavras esparsas, são elementos da realidade que, por sua aparição em um determinado momento histórico, produzem sentido. FARGE, Arlette.

O sabor do arquivo. p. 35.

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lados da estrada havia uma plantação de mandiocas, o lado oposto, onde se situava a residência, era protegido por uma cerca de ripas de madeira igualmente cortadas e enterradas verticalmente lado a lado, impedindo assim a entrada de animais.

Visíveis aos que passavam pelas estradas, as casas eram construídas com os alicerces de madeira nos cantos, tal como pequenas colunas que elevavam a construção em até um metro acima do solo. Esta base sustentava o assoalho com tábuas de pinheiro ou imbuia pregadas em posição horizontal. Estão ausentes em nossa documentação as casas de chão de terra batida, o que não implicava na inexistência desse modelo de construção de residência no município. A predominância dos assoalhos de madeira era justificada diante de fatores climáticos como as chuvas e a umidade, mas também devido à geografia acidentada do solo, motivos importantes para que os assoalhos fossem construídos acima do chão não só nas casas, mas em comércios, igrejas, celeiros, etc.264 Enquanto a fundação e os assoalhos eram semelhantes nas residências, as paredes e o modo de construção acima desta base horizontal apresentavam algumas variações.

O primeiro modelo utilizado para a construção das casas e outros edifícios pode ser nomeado como “zrub”, uma tipologia arquitetônica de madeira encaixada desenvolvida pelos habitantes da Galícia Oriental (Halych) e que se fez presente entre os imigrantes dessa nacionalidade e seus descendentes, em Mallet. Com esta técnica, os habitantes levantavam as casas sem a utilização de pregos, pois os troncos ou tábuas de madeira eram colocados horizontalmente em camadas que possuíam encaixes que travavam as partes umas nas outras.265 Além do “zrub”, o segundo modelo de edificações era também formado por tábuas de madeira, mas na posição vertical, uma ao lado da outra. Para que o vento de inverno não adentrasse nas aberturas entre as tábuas pregavam-se nas brechas entre as tábuas, cortes estreitos de madeira, os sarrafos, que garantiam assim a vedação e o acabamento das paredes. 266

Construções de altura elevada, as casas com os modelos “zrub” ou com sarrafos tinham coberturas inclinadas que poderiam ser feitas por pequenas tabuinhas de madeira encaixadas ou pregadas uma sobre as outras formando uma espécie de escama. Muitas das casas que já possuíam as paredes altas tornavam-se ainda maiores com a inclinação das

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Ver: Processo-Crime, Mallet, 1931, nº 2, Caixa 02, CEDOC/I. fls. 04. ; Processo-Crime, Mallet, 1937, nº 25, Caixa 08, CEDOC/I. fls. 03.

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BATISTA, Fábio Domingos; IMAGUIRE, Marialba Rocha Gaspar; CORRÊA, Sandra Rafaela Magalhães. Igrejas Ucranianas: Arquitetura da imigração no Paraná. Curitiba: Instituto Arquibrasil/Petrobrás Cultural, 2009. p. 73.

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coberturas escamadas, formava-se assim um pequeno andar superior com aspecto triangular que abrigava o sótão, utilizado como quarto de dormir ou depósito. Abaixo de tal andar estava o interior da residência, um espaço dividido por paredes de madeira que demarcavam ambientes como a cozinha, a sala ou os quartos.

Peça mais importante da casa malletense, o espaço da cozinha era atravessado pelo movimento constante dos membros da família, dos vizinhos próximos e também de cães e gatos. Compondo a superfície mais ampla da residência, as cozinhas eram preenchidas com mesas, bancos e armários de madeira feitos por familiares ou vizinhos.267 Enquanto a mobília estava disposta pelo cômodo, em uma das extremidades funcionava o fogão à lenha com suas refeições cozidas ou fritas. Em uma dieta composta por ovos, leite e carnes de diversos animais, a alimentação dos moradores de Mallet incluía o consumo de batatas, mandiocas, repolhos, abóboras, milho, feijão preto e arroz. Entre uma refeição e outra, as cozinhas repletas de mobílias e com uma temperatura mais cálida, no inverno, devido o calor que emanava do fogão, eram também ideais para receber as visitas de parentes e vizinhos próximos em encontros seguidos pelo consumo do chimarrão. 268

Ao atravessarem a porta interior da cozinha, os malletenses poderiam seguir para os quartos de dormir, com camas guarnecidas de colchões feitos de palhas. Nestes percursos entre a cozinha, os quartos, a escada e o sótão, as casas da sede e das extensões do município possuíam muitas aberturas que ventilavam os cômodos e permitiam a entrada de luz. Na maioria dos casos, estas aberturas eram janelas feitas com tábuas de madeira em formato quadrado ou retangular. Já as portas estavam presentes entre as divisões dos cômodos e nas principais entradas e saídas das casas, apresentando neste caso o reforço especial de trancas e fechaduras para garantir a segurança.269 Outra característica das habitações de Mallet, nas duas décadas que analisamos, era a de que os cômodos nem sempre se localizavam em uma mesma edificação, em algumas casas construiu-se a sala ou uma segunda cozinha como peças à parte. Situadas de modo visível ao lado das habitações, as salas externas não apresentavam divisórias, tratava-se de um único cômodo de assoalho com alguns bancos e por vezes uma mesa. As salas externas eram pouco frequentadas

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Processo-Crime, Mallet, 1931, nº 3, Caixa 02, CEDOC/I. fls. 05.; Processo-Crime, Mallet, 1936, nº 3670, Caixa 09, CEDOC/I. fls. 37.; Processo-Crime, Mallet, 1936, s/nº, Caixa 09, CEDOC/I.; Processo-Crime, Mallet, 1937, nº 86, Caixa 08, CEDOC/I. fls. 12.

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Ver: WOUK, Miguel. Estudo etnográfico – linguístico da comunidade ucraína de Dorizon. p. 54.; Processo-Crime, Mallet, 1931, nº 3, Caixa 02, CEDOC/I. fls. 06.

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Processo-Crime, Mallet, 1931, nº 3, Caixa 02, CEDOC/I. fls. 05-09.; Processo-Crime, Mallet, 1947, nº 329, Caixa 18, CEDOC/I. fls.02.

pelos moradores no decorrer do ano, sendo utilizadas apenas em ocasiões de visitas importantes ou em velórios. 270

Além da sala, outro cômodo que poderia ser externo a casa era a chamada cozinha velha. Construídas atrás das residências, sendo menos visível aos que passavam pela estrada, as cozinhas velhas não possuíam o mesmo acabamento das outras edificações, sua cobertura era sustentada por vigas de madeira onde os malletenses penduravam réstias de cebolas e alhos trançados. As aberturas das janelas e do teto sem revestimento de madeira no interior eram ideais para fogões com chamas intensas nos quais o toucinho era derretido no tacho e se transformava na banha de porco. Era junto à lenha que queimava com vigor que se preparavam os alimentos que precisavam de longas horas de cozimento.

A residência, a sala e a cozinha velha estavam localizadas em uma área comum, espaço nomeado como terreiro ou pátio. Esta superfície visível aos passantes da estrada poderia ser coberta por diferentes plantas, desde a grama rasteira até árvores de diferentes tamanhos.271É necessário lembrarmos, como havia relatado Justina, em 1936, que o assassinato do marido ocorreu no terreiro, entre a casa e a cozinha velha, edificações separadas por uma distância regular de seis metros. Foi tamanha a quantidade de sangue que se espalhou do corpo de Inácio que o gramado que cobria o solo entre as duas construções precisou ser lavado para que o ocorrido não fosse descoberto. 272

Preocupada com o estado em que se encontrava o terreiro, Justina viu a necessidade de esconder temporariamente o corpo de Inácio até que a cena do crime fosse limpa. Arrastando o cadáver pelas pernas, a esposa seguiu por alguns metros do terreiro até um quintal onde cobriu o corpo com palhas. Esta proximidade das casas com o quintal era importante para os malletenses, pois eram nos quintais que ocorria o cultivo de parte das verduras, tubérculos e ervas. Era provável que as palhas usadas para esconder o corpo fossem utilizadas como adubo e proteção para as plantas. Após apagar as marcas de sangue, Justina esperou o início da noite, fez uma cova no potreiro de sua propriedade e levou o cadáver até lá em um carrinho, com a ajuda do filho. 273

Já descrevemos anteriormente o modo como Justina cobriu a cova e quais procedimentos foram tomados para esconder os indícios do ocorrido, mas o que também

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Ver: Processo-Crime, Mallet, 1937, nº 86, Caixa 08, CEDOC/I. fls. 10.; WOUK, Miguel. Estudo

etnográfico – linguístico da comunidade ucraína de Dorizon. p. 53.